sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Balanço de dois mil e dez; Prólogo.

Sistematizarei este balanço diferentemente do precedente. Pra começar, tem um prólogo!


Prólogo

Esse primeiro texto eu o escrevi em 2009, na segunda metade do ano. Acho que demorei uns três ou quatro meses para concebê-lo, já que eu não me debrucei sobre ele de forma sistemática, mas apenas ocasional. Ainda assim o considero um dos mais bem acabados que eu já fiz.
Não tive coragem de publicá-lo pela sua extensão e pelo caráter extremamente subjetivo do texto -ele é um pouco autobiográfico. Mas a estética me agrada muito. Não sei se seria capaz hoje de reescrevê-lo. Mas acho que ele representa muito bem como uma crônica os meus dezessete anos.
Até agora não achei um título satisfatório.
Semelhança com Oswald de Andrade não é mera coincidência.
En-fim.



s/t
ou
Admnistrador de Vícios
Vida e Peste


1.Prelúdio

-Se o metrô desligasse meia noite, não haveria toda essa folga!
A lógica só pode ser um instrumento divino, pela imperfeição terrena.
Por entre divagações e divulgações similares, passava, até experimentar as duas longas pernas metálicas e elétricas, sra. Eros. Outra administradora de vícios, preocupada com o horário que queria ter, quando enfim tudo beijaria o que contempla.
-Existem sujeitos bacanas.
Suspirava. A noite fora. E amanhã iria novamente.


2.Da meia-noite

Pronto. Era a presa.
-Algumas notas podem não parecer tão rápidas.
Seria isto?
-Notas que perderam o som.
Era sua imaginação trabalhando. Mas não importava.
-Bastet ou Foucaultlino?
Era o nome de seu filho em questão. Mas ainda não era tão tarde, e o passeio foi desviado. Como em todos os âmbitos, era a hora de investir. Sra. Eros e sua bolsa de valores morais seguiam.
-Finalmente descobrirei se existe de fato vida pós-Clínicas.
Não. Não permitiria mais a si sonhar. Queria ainda desperdiçar sua estética cerebral.
-Oi.
Aquele inferno chamado espera.
-Oi.
-Err... Qual é a sua operadora?
Esboçou um sonho.
-Depois da meia-noite, todo escravo vira um ligador.


3.Platonismo

Durante a aula de Psicologia Prática Relacionada aos Problemas Interpessoais (PPRPI), vegetava. Seus amigos até lhe contavam.
-'Cê pode tentar. Não! 'Cê vai até conseguir.
Não era o desafio, era o tédio. Arriscou-se ainda assim, e lá era. Todavia, um ser permanecível. E vegetante de tantos nutrientes.
-A esse fenômeno daremos o nome de Sabedoria Absoluta Pessoal e Democrática, que chamaremos de SAPD.
Também odiava as pessoas estilo stand up, feito a professora parcial, mas o importante era a ternura d'outro.
-Depois da meia-noite, todo escravo vira um ligador.
Risos.
-Como você se chama?
-É Augusto.
-Belo nome.
Pieguices e burocracia.
-E o teu?
-É Ynglid.
-Como?
-Ynglid. Tipo Ingrid, mas com L no lugar do R.
Risos.
-Inusitado.
Cada palavra soava mais impossível, mas o sujeito era de uma autoridade tão incrivelmente vaticinante que sra. Eros lhe desabou.
-A arbitrariedade da SAPD se dá com a coerção psicológica.
Abandonou a lição.


4.Escalpelar

Mas, como é sempre para os ateus, quem dita as regras é o corredor.
Ynglid era apenas uma plebéia, não tinha direito ao carnaval dos grandes. Era ali, na diagonalidade do seu espaço, apenas a porca da seção inferior da infinita máquina social.
-Sociabilismo! Doença!
Mas tapava os ouvidos de alienar.
-Destruir o dinheiro! Destruir o dinheiro!
A crise era intra; exoesqueleticamente, tudo indicava normalidade; o índice geral de proteínas mantinha-se, como as manhãs.

Certa folga um sujeito aleatoriamente chegou-lhe.
-A moda para o inverno agora é o convívio.
Não lhe deu muita bola.
-Poético.
-Não! Real!
Não esperava a réplica. Quando se dera conta da dimensão da filosofia, o inconfidente já zarpara, estava à sombra de alguma maravilha arquitetônica.
Sra. Eros olhou para fora, a procurá-lo, e só achou o que acharia naquele lugar; faraonismos exclusivistas.
Apoiou a cabeça sobre os braços, no jazz.
Dormiu tarde.


5.Anti-gravitacional

Sobrancelhava pra tudo. Depois de uma fase percevejante resolvera nascer, e desconfiava dos lados, dos ângulos, das linhas, das bissetrizes e todas as Beatrizes que lhe emboscava.
Com os amigos, era uma lixa.
-Comida de tiozão não rola.
E eles tentavam engolir, mas não ajudava.
-Você lembra lembra lembra lembra?
-Por que eu ainda insisto em me afirmar imbecil saindo convosco?
E o mal-estar então coloria além das placas de queratina. Mas os pobres pobres não desistiam de tentar calmar-lhe.

Quase-sucesso. Extraíram-lhe, aquele dia, um mol de civilidade. A calmaria, contudo, estatuetava-se em platonismo.
-Talvez até guarde uma ternura secreta pelo meu pai. Mais cenoura?
-Não, obrigado. Como assim, Ynglid?
Eram brisas de aspirantes a psicólogos, com seqüelas de lisergia física e artificial.
-Não sei. É um sentimento azul.
E a trupe gargarejava de solidariedade.


6.Selvageria

Como tendia a sexualizar tudo. Carecia demais. Pensava amplificado, e isso já lhe causara tensões. Mas sua linha de morte era uma linha de trem, e vocês sabem como isto funciona pós-revolução industrial.
-Que eu vou com tanta intensidade que lhe arranco a língua a dentada.
O susto era dela, dele, de todas e todos. Se apaixonava, e depois pensava com tanta intensidade que abria os olhos e já estava no metrô.
-Como a vida tem sido dura.
Clichezismos e lágrimas crocodilavam pelas suas curvas satanistas e salmão. Era um muro desabando.
Tijolos de abstração.


7.Ocorrência

Sra. Eros era errante corpo dentre aquela gaiola chamada parque. Suas banhas sorvetantes choravam litros de suor agridoce.
Na sua cabeça um foguetório; que ela nadava em banheiras de uma geléia brancacenta e amarga, vinda de vários televisores boa-pinta, de bons pintos e muito dinheiro na conta. Dissecando a Lua, quase um acidente. Ou melhor, um acidente.
-Uff! Caramba. Perdão, moço!
-Porra, presta mais atenção por onde anda, véi!
-Desculpa, não vai acontecer de novo.
No que me apóio? Não havia nada mais obrigatório naquele sujeito do que a sua semelhança com o outro.
-Depois da meia-noite, todo escravo vira um ligador.
Flashes plasmáticos e plasmas traumáticos.
-Ei. Eu... eu, te conheço?
-Hein? 'Cê 'tá é maluca!
-Guto?
-Que mané, Guto! Vá dormir, sua louca.
Contrariando a sugestão do quase-quebro-um-braço daquela noite preta e engaiolada, sra. Eros esforçou-se para continuar acordada.
Na manhã seguinte, era uma equação disposta.


8.Discussão

Rebanho subterrâneo.
Um sujeito de cima, do céu, aponta pra baixo e, randomicamente, escolhe a sra. Eros.
-Desce agora e rapa aquela tia.
O pobre pobrezinho fluidamente escorre pela plataforma e domina todo o pasto. É de uma geografia ímpar, sua sensibilidade o orienta até a bolsa da coadjuvante.
-Ei! Trombadinha! Pega ladrão!
Registrando o Boleto de Ocasionismos, era um humano áspero perdido entre a lã onírica.
-Escuta! Se vocês sabem que aqui é onde tem mais trombadinha, por que não aumentam a fiscalização?
-Veja bem, minha senhora, a gente não adivinha o momento e o lugar exato onde um furto vai ocorrer.
-Mas vocês sabem que ali é um lugar perigoso, por que insistem em abandoná-lo?
-Olha, minha senhora, nós não abandonamos o local, a senhora está exaltada...
Queria, como todos os demais administradores de vícios com cérebros preparados para o mercado de trabalho, ter toda a razão.
-Abandonaram sim!
Silêncio.
-E eu não estou exaltada.
Em casa era inconsolável. O ovomaltine ia ficar pra a próxima semana.


9.Tentativa

-Faz tempo que eu não falo com o Senhor.
-Você se comunica com Ele?
Só podia ser balela.


10.Cidadania

Seus amigos curupiravam no boteco e ela com sua indignada história apenas era.
Luzes de emergência.
-Porra, presta mais atenção por onde anda, véi!
Outros olhos e armadilhas.
-A senhora está exaltada!
Recostava-se na imbuia, imbuída em instantes, e percevejava o silêncio. Suas companhias, no entanto, cervejavam em decibéis mil.
-Um brinde ao último semestre!
-Viva!
E vivavam.

Para sra. Eros, cada dia era um romance.
Depois que se responsabilizara pelo cumprimento masoquista de tarefas desnecessariamente imprescindíveis, seu dia passou a contar com mais horas, toda hora um amor.
Sua respiração era uma mixórdia de termos como dialética, academicismo, masdeísmo, látex e barbárie. Cada humor é um quilômetro e cada quilômetro são mil bipolares.
E o sono era só uma descarga.


11.Anunciação

É claro que não era fada, porque ela não existe. Tampouco deus. Esquizofrenia, talvez. Sonho, então. Alucinação pelo estresse. Só não podia ser lisergia.
Mas era. Pelo menos pareceu ser.
-Viva!
-Como?
-Sofra, e então viva!
-Do que 'cê 'tá falando?
-Você só pode saber sofrendo!
Talvez fosse Cristo.
-Sofrendo? Como assim?
-A felicidade não é o objetivo, mas sim a estrada!
-Kafka? É você?
-O limite da felicidade, é a morte!
-Alô!? C-como?
-O limite da felicidade, minha cara, é a morte!
-Q-quê? Kafka?

Mas não acreditava em fantasmas.


12.Adendo

Mas não duvidou desse.


13.Procura

E o sono era uma só descarga. Relampiava de exaustão, e logo a grande nuvem ameixante cedia.
Luzes de emergência.
Deixara de sobrancelhar, e agora claraboiava nas ruas.
Elegia uma cena e sonhava em tê-la, guardada num pote sufocado, exposta na estante, no instante.
Alguém lhe dissera para deixar os zebrismos em um tapperware hermeticamente distante.
Sra. Eros tentava. Não! Ela até conseguia.

-Você eu me esqueço.
E que vantagem leva Maria nisso?


14.Achado

Mas cada poça era um açude.
Cada rua era um sulco.
E estudava as coisas nas escalas mais malucas.
E já chegara no ponto onde a rua é a casa, quando a noite é o mundo.
-Acho que vou procurar uma Psicóloga.
Porque não podia procurar a si.
Mas achava. Era um poço de poesia, de um kafkianismo ímpar e de uma auto-negação par.
E culpava a aparição.
-Maldição! Aquilo só podia ser coisa da minha cabeça!
Mas era.
-Eu só posso 'tá maluca.
E ia se imaginando presa em um número irracional, enquanto mutilava chicletante as suas unhas.


15.Aflição

E sonhou em ser uma estátua.
Imaginou a conveniência do desdispêndio e da corrosão bostal das pombas, do terror escatófago das bactérias filomérdeas, do postalismo de atentados, da tentação das câmeras, da poluição celestial e da impotência sentimental.
Mas o pior, o que lhe causava a maior aflição, era a unha tapada.
Vejam só, unha tapada!
Unha tapada.

-Então, Ynglid, o que você tem pra me contar?
Aquela voz cálida e gélida e agudo-grave e fétida e despeculiar.
-Eu ouvi um fantasma, ou sei lá o quê! Eu sei que não foi deus porque deus não existe, mas não sei o que pode ter sido. Só sei que isso mudou minha vida... Err... Eu fiquei assustada, resolvi procurar ajuda, mas eu 'tô vendo a vida de outro jeito agora e... Err... Espero que isso ajude, porque eu não gostaria que isso acontecesse de novo e... De novo, porque eu fiquei assustada, e eu não sei o que pode ter acontecido. Quer dizer, não sei o que pode ser sido aquilo, né? Por isso que eu estou aqui, pelo... Pra procurar ajuda, mesmo, queria alguém especializado, né?
Desenredava com letras maiúsculas de criança.
E a psicóloga classificou como resistência à terapia, mas sra. Eros não pisou mais naquele consultório durante bons cometas.
E voltou a fumar.


16.Ligação

-Alô!
-Alô! Almeida!?
-Quem?
-Almeida? É do Almeida?
-Não, foi engano.
E sentava exausta de tédio, feito alegoria machadiana, lasciva e comercial, embora ninguém a encontrasse. O mundo era uma esfera abandonada no universo, esperando apenas ser atingida por um taco de golfe enorme.
Seu suspiro carbônico era um convite à náusea, desmeninava-se a cada tragada.
-Eu não sou maluca.
Enormemente, sua imagem no espelho contorcia-se de risos a juro, endividando sra. Eros de superar-se.
-Amar é uma overdose de azul.
Não entendia como aqueles morfemas sinestésicos saíam de sua garganta alicerçando orações tão estúpidas e insuportavelmente floridas.
Tocava.
-Alô!
-Alô! Almeida!?
Quantos séculos esperaríamos pelo taco de golfe?


17.Lavanderia

Porque o mar era um vômito limpo.
Na viagem era uma esperança, no passeio uma angústia.
Olhava pra todo aquele brilho e morria.
-Porque eu sou apenas uma plebéia.
O acesso que àquilo tudo teria não passaria do mero masturbatório. Pelo menos era nisso que pesadelava, e o dizia vida, e o maldizia vida.
Cachoeirava-se de céus cristalinos e infláveis. Enqüanto tudo à sua volta sorria, desdentava-se de mutilar, mangueirava seu pranto radialmente.
Enfim, pedrachutava, mas não perdeu a culinária local.
Luzes de emergência.
Não houve de volta à cidade.


18.Isolamento

Um tant'antes d'acabar a excursão, zebrou-se em uma árvore, solitária e minhocante.
As velhas haviam ido à cidade chocolatear o mundo com as suas unhas postiças, tingindo de azul-petróleo o resto do que sobrava de calor. Mas sra. Eros não queria tanto vestir uma alegria postiça, e zebrava-se a dois metros do inferno.
-Viva!
-Você de novo?
-Sofra, e então viva!
-Escuta, eu não sou maluca, sai daqui da minha vida, da minha árvore, da minha excursão...
-Calma, meu amigo, eu tenho várias notícias pra te dar.
-Em primeiro lugar, eu sou mulher! Em segundo, você não tem nada pra me contar porque você não existe!
-Então... A primeira diz respeito ao seu sexo.
Nesse instante, sra. Eros se despede de seu galho, e mergulha ao sul.


19.Do acordar

Sr. Eros levanta-se sujo de petróleo, panoramiza, pirâmides e prédios avulsos, maravilhas da genética, cores conhecidas que não pagaram a conta do analista, velhos números que conquistaram a anistia, Raoul Vaneigem e construções flutuantes de Duchamp, De Chirico, Do Campo, deduzidas e dedadas hospitalares, romances e cavaleiros, romãs e covinhas, menestréis e trovas pornocálidas, sujeitos tulipantes e escravidão das flores, escravidão das cores, tons de tabaco, cafezais trigueiros e muito Van Gogh, passeando entre as mangas, os maracujás e as jabuticabas, muitos janeiros e agostos, talvez outubros, cachaça que jorrava das picas, puteiros, palhaços discutindo Marx, caralhos voadores, céu de azia, carros subcelestiais, experimentalismos etílicos, acarajés no céu, sociologia da química espacial e curatoria especulativa, retórica mágica e feitiçaria láctea, intolerância a rã, espadas de latão, chaves-de-fenda de Cabo Verde, MDF, PVC, o Partido Canhoto de esquerda, hippies e impressoras suvinílicas do tamanho de um terremoto. Um pouco acima, alguém em um trono de aipim e vime. Conclusões precípites.
-Eu 'tô fudido.


20.Do garçom

Lhe chega um garçom e oferece um beijinho.
-Escuta! Que lugar é esse?
-Estamos no Céu. Vai querer um beijinho ou não?
-Ando meio sem fome.
-Quer falar com alguém?
-Seu superior.
-Siga ali.
Apontou um escorregador aquático.
-Muito obrigada.
O garçom sobrancelhou-se.
-Oh! Perdão, ainda não estou muito acostumado com minha mudança de sexo.
-Ah! Normal, troquei de sexo há dois dias, às vezes me confundo também.
-Estou indo.
-Boa sorte!
-Obrigado.
Ynglid Eros, que agora pensava em trocar de nome, já esboçava um salto no tobogã, então periquitou-lhe novamente o garçom.
-Mas tem uma coisa!
-Que é?
-Meu superior pode te pedir um beijão.


21.Do rei

Pernambucodonosor era o Estado daquele reino. Era até ele que sr. Eros deveria chegar para saber de todo aquele atum.
Despiscinou-se e vagou em busca de um cheiro tutti-frutti. Eram ecléticos os assuntos nas vias.
-Sempre bate uma crise à tardinha.
-Isso é tão semana passada...
Pestanava a cada saco de café. Era um sinal gráfico. E os ruídos continuavam.
-Qual é o seu trabalho?
-Eu detenho pessoas.
Tanta pizza.
-Você cheira a manjericão.
Aulas de inglês.
-You have a hair, don't you?
Particularidades mil. Virgulava entre consertos concertantes.
-Meu pai é taxista.
-Amor, pega um tijolo?
-Eu tenho um amigo que tomou chá-de-fita e 'tá vestido de palhaço até hoje!
-É, vó! Cada um no seu quadrado!
Eram tantas cenas convexas que sua desquebrada cabeça concavava no solo em busca de novos compartimentos, eram galerias lotadas, sapateiras e gaveteiras tão fortemente agregadas que era um tanto mais e novo universo explodia. Lhe sumiam as tintas dos olhos.
-Por que eu mudei tanto?
E rumava a tal Pernambucodonosor.


22.Da loucura

Sequer entendia por que já se desengavetara tanto, mas era parte de tudo aquilo, sonho que aquela fada maluca, que ela não existe, certa estrela lhe argüiu.
-Eu vi, eu vi! O amor é o meu país!
E ia tijolando vazios, em busca do seu.
Aquilo que era vida.


23.Movimento

-Viva!
-Vai tomar no cu!
-Sofra, e então viva!
Ynglid Eros tirou de dentro das urtigas uma pistola, e assassinou seu fantasma com circunstância de pompoarismo. Poupou a arma abandonando-a em um movimento retilíneo uniforme, variado e bem longe, mais campos urtigados.
-Mas já não era sem tempo!


24.Notícias

Um outro garçom lhe chegou.
-Ficaste sabendo, senhor? Nosso brigadeiríssimo chefe Estratífico Pernambucodonosor Terceiro morreu, de operetas amendoístas.
Era de sr. Eros uma peregrinação caçambada.
-Puta que pariu!
Era apenas uma pejoração.

Não tinha tanta importância naquele lugar.
Como possível, se toda essência e doce era capaz de algodoar qualquer ternura?


25.A democracia

As vias eram uma só descarga, haviam naus que escapavam de medo, caravelas apagadas e vários guris e garis comemorando e criando enormes labaredas com suas vassouras.
-Somos um povo livre!
Ninguém nunca ia pensar que o governador do Céu seria deposto por uma revolução anafrodita, sr. Eros soluçava um gelo de pedra, ou uma pedra de gelo.
-Ninguém vai acreditar em mim quando eu contar o que vi aqui.
Mas já não sabia se vazava. Se acostumara tanto com a sua recém-calculada peregrinação até o soberano, aquele lugar tão redondo, com ciclovias, urbanismo gay e vitrolas-de-esquina. Viraram para si feito uma família.
Um alto-falante pensou.
-Decretamos esta nação como laica, tolerante a todas as crenças e descrenças de seus cidadãos. Meus amigos, o Céu é livre!
Um grito ecoou por entre todas aquelas nuvens roxas, cinzas e vermelhas.
O céu era livre.


26.Vida

Esquiatava-se todas as manhãs.
Era um gelo quando quisesse, a lua eram duas palmas, e toda a noite tinha a matinê no Cinema Olímpia. Sim, porque atrás da esquina estava o Olimpo, o futuro e a manufatura de cerveja.
Tinha casinha, parceiros, parceiras, wireless, comodidade e tolerância a lactose. E tudo isso sem moeda alguma, o Estado fora abolido pelos anafroditas. A demografia era constante, nunca havia problemas populacionais, a questão geográfica era vaginal. Quando alguém morria no Céu, e ia para o cemitério do Araçá, outro vinha -escolhido ao acaso em um lugar avulso, tipo o banheiro- e supria o pódio.
E, o melhor, quando você quisesse ser uma estátua, era só ir ali no Congelador Público, do lado dos Correios, e saudar a tiazinha da Cantina.


27.Do teste

E foi com a tiazinha da cantina que sr. Eros descobriu sua verdadeira vocação.
Era, naquela bola azul e verdejantemente podre, senhor de sua tragédia, num serviço de merda, numa firma que o explorava (os anafroditas haviam abolido a mais-valia), numa faculdade que dele demandava newtons de paciência e cafeína. No Céu tinha liberdade plena e assimétrica para traçar os seus limites, as suas buscas, e os seus próprios chás-gelados.
-Ei! Que ótimo! Como faz isso?
Pacientava-se morfinante, e seu suspiro tóxico significava "eu vou ter que ensinar mais um", mas no fundo era aquela a graça de se estar de no Céu, independente do sistema político.
Revirava.
-Meu filho, tudo começa com a virtude. Você tem virtude?
-N-não sei.
-Vamos descobrir.
Pegou um tijolo que estava sob a pia e o fez vir ao chão, ceramizando estrelas.
-O que você vê?
-Cacos.
Vomitou mais um suspiro.
-Apenas cacos?
Olhou pra velha.
-Ué! Apenas cacos!
Furou-lhe o rosto com seu globo a laser.
-Tem certeza?
Sr. Eros olhou mais uma vez para sua alma pedaçada em despedaços cor-de-carne. Então, um prazer súbito lhe arrancou a eletricidade dos órgãos e um estalo navegou em seu sangue em um segundo na velocidade da luz. Suas retinas piscaram natalinamente.
-Eu vejo... Um prato a menos.
A velha então sorriu.


28.Descoberta

Era, em pouco tempo, oficial de massas, em um distrito chamado Pasta. Olimpiava-se em nuvens de melodia, trabalhava no barulho mais calado e gasoso horas a fios de óleo, e de ovos, todos os dentes, todas as bocas, todos as pastas.
Farelava até o tardecer, quando flutuava até a noite, em um jet lag desconfuso e imaginário, vislumbrando aquela bacante negra, que era seu plano sonhado de cada dia, sua vida perfeita, o Céu, sob o império dos anafroditas.
Seus estudos in loco eram travelling abroad, chuva de farinha e ventanias de pedidos; cada prato era um vórtice. A alface era o mundo onde clorofilavam os amigos, as paixões, o tesão.
Sr. Eros era feliz e sabia.


29.Cinema

Tensão. Naus caravelantes. Cervejas nacionais. Explosões rádio-passivas e violinantes. Semiótica camoniana e outras piadas abortadas. Gramática pederasta e perversão extra-cristã, resistência anafrodita. Auto-felação.
-Eu acho que tenho bastante sorte.
A filosofia era fácil como um pé-de-cabra.
-Se eu fosse um buraco, provavelmente me preocuparia menos.
A filosofia era fácil como o inverno.
-Então eu certamente tenho bastante sorte mesmo.


30.Intermezzo

Ynglid trocou de nome. Fez a festa. Preparou os robalos. Sobrou sozinho na cozinha. Olhou pro canto e ladrou uma metáfora. De um canhão saiu uma lata. Cancioneiro obituário atualizado.


31.Nota de falecimento

O queridíssimo Róbson Eros, oficial de massas, do distrito de Pasta, Céu, vulgarmente conhecido como senhorita Ynglid Eros, estudante de psicologia e teleoperadora, latino-americana, Terra, foi atropelado por quinhentos gramas de ervilha, no dia de sua promoção para o cargo de Celebrista Oficial das Lêndeas Anafroditas.


32.Ontem

No cemitério do Araçá, era uma só alegria.
-Ah! Que bom! Verei minha família, meus tios, amigos, professores, colegas, o Donizete...
Exultava-se de tanta folia guarda-chuvante.
-Imagina só quando eu contar pr'eles tud'o que aconteceu!
Com um precário pára-quedas teleguiado dirigia-se a um lugar pouco visitado.
Quando desceu encontrou anjos, estátuas majestosas, cheiro de primaveras e árvores floridas e ensolaradas, cujo néctar atraía certa fauna voadora insetívora e grande contigente de artrópodes. Gatos viravam as pequenas esquinas, donde vez ou outra surpreendia um faxineiro.
Sr. Eros soltou um suspiro sorridente e satisfarto de porra:
-E eu que pensava que era assim o céu.
O céu era muito mais legal que aquele parque, o qual alcunham cemitério.


33.Eletricidade

Pensou em perguntar-lhe qualquer coisa, só pra saber se estava vivo.
-Ô camarada!
O sujeito olhou.
-Tem aí as horas?
-É nove e vinte e cinco.
-Valeu, irmão! Bom dia!
-Disponha.
Virou as costas e deu um salto de felicidade tão grande quanto o mausoléu dos Matarazzo.
Não se conteve, precisava de um pouco de preocupação terrena também.
A primeira, a saber, foi a de como voltar pra casa.

A segunda era o jeito de explicar a sexual e tão repentina troca. Sim, porque ainda era senhor.


34.Apelido

Na porta do cemitério uma criança pivetava certos trocos.
-Ei! Moleque! Sabe quem eu sou?
Já exausto pela sua atividade matinal de esmolar, farelar, apanhar e cheirar cola, impetava encapetamentos o garoto, mas sua fome, sua obrigação, era maior do que sua paciência.
-Quem é, tio?
-O senhor Oficial de Massas de Pasta! Grã-Pasta! Lugar para poucos!
Sr. Róbson Eros, outrora Ynglid, moça escalafobética e desvaginista, agora orgulhava-se da fotografia masculina.
Tem coisas que nem Freud explica.
-Como assim, tio?
-Eu era chef.
-Chefe de quem, tio?
-Chef de cozinha.
-E cozinha tem chefe, tio?
-Eu não sou seu tio.
E o pobre pobre ficou sem o trocado das nove e meia.


35.Intervencionismo involuntário

Pulou a catraca. Vieram uns quinhentos.
-Ei, ei, ei, amigo. Onde 'cê pensa que vai? Volta aqui!
A carteirada não funcionaria.
-Sou Oficial de Pasta, vim do Céu, o pára-quedas me deixou aqui no cemitério...
Nem terminou o texto, escoltavam-lhe.
-Vixe! Esse aí tomou um dos bons.
-A gente tem é cara de palhaço, né?
-É o quinto só hoje. Deve ser trote, estudante de teatro, sei lá!
Intervenções urbanas são fenômenos característicos da pequeno-burguesia em bairros ricos do Centro-Sul.


36.Amizade

Subiu as escadas do metrô.
-Ei, amigo! Me dá um troco, eu vim do Céu e lá eles não usam dinheiro.
As meninas umbigavam debochantes, os rapazes ignoravam com narigadas de desprezo.
Mudança de tática.
-Putz, velho! Eu pensei que tivesse o dinheiro da passagem, mas eu calculei mal e...
-Ei, camarada!
Era o responsável pelo pivete.
-Aqui a área é nossa, a gente precisa comer, não enche mais o saco.
Desceu novamente as escadas e foi pedir lá embaixo.


37.Prostituição visual

Mas ainda catracava de esperança.
Bem vestido, uns tons groselhavam, com notas tabacantes de restos de bacantes sortidas, avulsas e randômicas pela calça, e bochechas empinadas, gola xadrez.
Era feito uma árvore de lembranças, incrivelmente disposta, como se tivesse dormido e o céu tivesse passado por uma revolução anafrodita.
E nem demorou muito, uma velha lhe deu uns trocos. E deu muitos trocos. Um tanto mais e dava pra comprar um Bilhete Único.
-Eu não sou puto, tia.
Em frente a eles, zombou-lhes a sina, os funcionários do metrô.


38.Visitado

Mas era um olhar só.
Era suas roupas anafroditas, seu corpo simetricamente apolíneo, sua boca dionisiacamente afrodisiaca, algum quê de engolir.
Arrepios à flor da imagem.


39.Do inferno

Mas nada podia ser mais diferente, nesse esterco povoado que chamam de Brasil.
No metrô os teventes piscavam ao nada, bando de desencontrados oculares, frota de passageiros rumando ao cálice mortífero de suas vidas, sobre uma minhoca metálica e magnética, da qual nada sabiam além da tarifa e do serviço, pessoas precisando dos néctares e alucinógenos sociais, pessoas hipnotizadas por uma caixa, esticados os olhos até a palma ótica das fibras, pessoas situadas no limite de convergência entre o saber tecnológico e a novela tectônica, pessoas situadas pela geografia dos mapas metropolitanos, pessoas que não conheciam o Céu, nem os anafroditas, nem as jabuticabas.
Pessoas sem amor, e sr. Eros as deprimiu durante um segundo gelado.


40.Pausa

Aceleração negativa. As duas longas pernas metálicas e magnéticas agulharam a minhoca cardíaca.
-Atenção, senhores passageiros. Há um assassino a bordo!
Nossa, que grave falta.
-Mas não há motivo para pânico, o problema já está em vias de ser resolvido. O metrô agradece a compreensão.
Da caverna de concreto surgiram vultos apagados, silhuetas que eram pesadelos, que forçaram a porta do vagão de Sr. Eros. Este, capturado.
-Puta que pariu!
Era um sortudo ou um azarado.
Melhor os dois.


41.Sob grilos

Gritos de protestante, de subjugado lumpemproletário.
-Ei! Senhor! Senhor!
Ofegante, sufocado, transportado em uma velocidade judiante.
-Que eu fiz agora?
Trancado numa sala escura. Grilhões.
-De que tamanho é este metrô?

Sob trilhos, só sr. Eros e sua disposição recém-grilada, prestes a grelhar-se os miolos, a porta desapartou-lhe.
-Senhor Camilo?
-Eu me chamo Róbson.
-Pode ser. Ocupação?
-Antes de trocar de sexo, era registrado como Ynglid Eros na Teí Telemarketing, também estudante de Psicologia pela Universidade Metropolitana de Psicociências. Depois fui para o Céu, hoje me chamo Róbson Eros e fui aluno de Lis, cantineira de Pasta, até a minha promoção de Celebrista Oficial das Lêndeas do Partido.
Um saco repetir as mesmas coisas. No céu as pessoas não dão tanta satisfação da vida. A Terra é um lugar para desapontados.
-Não entendi nada do que você falou. Dá pra repetir?
Pensando bem, no céu não tem metrô.
-Senhor. Por favor, me chame de Senhor.
Mas arrogância não era uma boa opção naquele instante. O outro sobrancelhou-se.
-Me chamo Róbson. 'Tava voltando pra casa. Trabalho de chef de cozinha num restaurante lá do Tatuapé, onde moro.
Pragmatismo. Ainda não entendia do rapto.
-Por que vocês querem me pegar?
-Tem documento aí?
-Esqueci antes de sair de casa.
-O motivo de sua captura é o fato de nós termos te confundido com um traficante que estaria no trem. Mas ele fala apenas espanhol. Você deu azar, ele 'tava vestido exatamente igual a você, mas já percebemos que o seu rosto difere bastante do dele.
-Err... Jura?
-Só um instante.
Tirou uma folha do bolso e mostrou uma foto do traficante, a que rodava por aí com a legenda de "Procurado", destacando que ele estava de fato vestido igual ao sr. Eros.
O interrogador abriu a porta e disse que sr. Eros saísse, enqüanto atendia seu celular.


43.Campainha

Sr. Eros então percebeu que as pessoas só olhavam pra ele por causa de suas roupas.


44.Crise

Ponteiros apontavam o final da tarde. Desistiu do Tatuapé. Queria um chá-gelado. Não queria a vida de antes. Não queria horas suicidantes, apenas sucrilhantes momentos, doces como as luas, corajosas como satélites e cometas. Queria a luta de ser e não ser. Queria sobretudo morrer nadando em paletas impressionistas, expressamente cafeinantes, altos teores de lipo-pregadores, varar os varais, sabonetando o céu, enxugando o chão, conquistando o inferno seu de cada longo centímetro.


45.Abandono

Desistiu inclusive do seu cachorro chamado Donizete.


46.Com leite

Chutando as pedras de sua vida, encontrou uma oportunidade amassada. Agarrou a nota. Eram dois reais.
Passara uma época no céu, todavia as coisas pareciam nada ter mudado. Nem seus preços.
Parou no boteco e pediu um pingado.

Do balcão via a estação de trem do Brás, onde resolvera abandonar de vez sua vida. Vivendo.
O pingado evaporava corações.


47.Do tempo

São Pedro é para quem os cristãos oram quando querem se ferrar.
De repente o céu descarregou toda a sua vontade em balões redondos e quentes. Piratas urbanos sacolejavam de desespero, nem sequer os pivetes e as ninfetas viam poesia naquele aguaceiro. O tempo quando as pessoas celebravam o cinzento celestial era um tempo dos livros, cérebros dissimulando.
-Passam uns séculos, esses cabaços do futuro me dissecarão. Vão achar até a chuva bonita.
Passado o sarcasmo, o escritor atordoado auto-mutilava.
A História é cheia de malucos e superstições cretinas.
Uma delas, é orar pra São Pedro.


48.Pingado

Entrou um molhado, sentou-se ao lado se sr. Eros e ordenou um pingado. Puxou papo.
-'Cê viu o negócio dos César? Que absurdo.
A voz era cega como uma meia-caverna.
-Ando meio desatualizado...
Uma gargalhada pontuda feito uma estalactite. Sr. Eros não entende, e atém-se aos discursos espermaculados dos tiozões do balcão. Todavia, o sujeito molhado insiste.
-Você não vai acreditar. Eu acabei de voltar de uma reunião de AA. Sabe o que é AA, né?
-Alcoólicos Anônimos?
-É! A minha mulher me deixou faz um mês porque eu apareci bêbado uma vez em casa. Uma vez! -enfatizava a quantidade de vezes como se elas invalidassem a atitude da mulher.
Sr. Eros fingia dar-lhe atenção com olhos sepulcrais, de quem está submerso há quinze séculos.
-Na verdade, ela me expulsou de casa. Falou pra eu nunca mais voltar. Então eu quero mostrar pra ela que eu posso mudar, já 'tô procurando um emprego, indo no AA, fazendo o diabo que posso...
-E você 'tá morando onde, agora?
-Aluguei um pedacinho por aqui com o dinheiro da poupança.
-Camarada, você não vai acreditar.
Sr. Eros olhava fundo como uma fossa abissal.
-O quê?
-Minha mulher também me expulsou de casa.


49.Samanta

Andaram umas cinco, seis quadras, estavam lá.
Sr. Eros prometeu-lhe ajuda nas despesas da casa (só não sabia como). Quando olhou a portinhola, uma saudade longitudinal fez-lhe nostalgia insuportável. Por quanto tempo aturaria aquela solidão? E nem se passara um dia ainda. Pediu roupas, que seu novo parceiro as tinha.
-Como te chama?
-É Rogério, mas todo mundo no AA me chama pelo sobrenome, Albuquerque.
-Então eu te chamo de Albuquerque?
Tinha uma aranha alojada na janela do banheiro. Batizou-lhe Samanta.
Mas ninguém sabe quando morre uma aranha, e nem sr. Eros sabia.
Pobre futura indigente.


50.Insônia

Durante a noite, acordou barras metálicas e as fechou, poucos cegos ruídos. Era um cigarro na sua boca, porque sr. Eros gostava de tutelá-los, todos os pobres, apagados, mortos, dentados. O cigarro em seus lábios sentia uma angústia de ser não-fumado, não tinha lágrimas nem labaredas, é isso que significa o inferno.
Sr. Eros via as moças que vendiam seus corpos porque não mais os queriam, dissimulando a sensualidade que não tinham, o amor que não tinham, porque não sabiam o que era o amor.
Nem sr. Eros e seu solitário e depressivo cigarro deveriam saber. Olhou para o céu.
Nem a Lua devia saber.
Voltou para a casa do novo parceiro e dormiu um sono perfumado.


51.Souvenirs

Na manhã dos gigantes de concreto, eram minhocas despedindo-se. Cada uma um lado. O Albuquerque pagou o bilhete e foi caçar uma morte, sr. Eros pulava as pululantes catracas de sua vida. Lembrava de um lugar na Avenida Paulista, onde daria um calote alimentar bem-sucedido. Às vezes a logística dos planos nutritivos cedia a uma ou outra imagem avulsa. Riu-se de pensar no "vida pós-Clínicas".
-Depois da meia-noite, todo escravo vira um ligador.
E então no curso de Psicologia que abandonara, nos amigos que às vezes os tratava indiferentemente, no incidente da bicicleta no parque, no assalto no metrô, na psicóloga, na fada, na excursão e no tombo, na sua jornada atrás de um líder que foi deposto, na sua feliz vida no céu, sua carreira na gastronomia, sua volta involuntária à Terra, nos incidentes do dia passado, quando o confundiram com o criminoso da moda, quando sentou no bar e desistiu do passado, e então um recém-abstêmio lhe fez companhia no pingado.
E então já havia esquecido dos planos iniciais do passeio.
Aliás, os abandonara por completo.


52.Poslúdio

-Se o metrô desligasse meia noite, não haveria toda essa folga!
A lógica só pode ser um instrumento divino, pela imperfeição terrena.
Por entre divagações e divulgações similares, pecava, até experimentar as duas longas pernas metálicas e elétricas, sr. Eros. Outro administrador de vícios, não mais preocupado com horário nenhum, sujeito nenhum, beijo nenhum.
-Que preguiça...
Suspirava. A manhã fora.
E se matou. E nunca mais viveu.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Minha Namorada é um Homem

Devaneios de um Octubro

1. Traga Sua Bandana Rosa
em troca de título melhor

Cheguei em casa agora, e comecei a digitar nisso que parece ser as vinte e uma e trinta e um de algo que parece um domingo -que parece quente- de algo aparentemente novembrino. E inspiradíssima para iniciar essa grande empreitada de explicar para mim mesmo -e o meu hipotético interlocutora- o que foi este último outubro -o que deve parecer estranho, já que, além das vinte e uma horas, me situo também no vigésimo primeiro dia de -nada mais nada menos que- um NOVEMBRO! Na real, uma tentativa -tive esse insight há pouquíssimos minutos, pode ser uma grande mentira- de tornar patentes as razões de um vórtice criativo -impassível de ser canalizado simplesmente em um texto de blogue. Este (vórtice)!
E vou começar a contar do avesso, e não farei um texto necessariamente artístico ou necessariamente jornalístico, ou necessariamente necessário a algum gênero (algum gênero!) de, de, DE, de algo generalizável (no sentido de compositor).
Do avesso, ai céus, explico, primeiro pela tarde/noite fantástica de hoje (meu nariz tem sangrado), depois passando para uma análise da minha experiência do Show do Gongo e do festival de cinema de "diversidade sexual" Mix Brasil (droga! não estou achando o meu tilibra -bom e barato LITERALMENTE moleskine), tratando de uma descobertinha-UNIFESP (marota!), e culminando (ai caralho, tenho uma prova sobre O Capital inteiro quinta, não me fará mal continuar falando, hein, hum, han), como uma forma de, de, de, tornar excitante, NÃO, como uma forma de tornar interessante isto aqui (isto aqui?), desculpa!, como uma forma de tornar MAIS interessante o ensaio (ensaio?), no enredar, no contar a grã-história, de responsabilidade de tudo ISTO AQUI, o que fui eu e o resto naquilo de nome ENUDS, o evento que mudou tudo, tudo... Ah! talvez vocês entendam, talvez eu esteja blefando CRUZES! nunca escrevi assim antes. mentira Mentira.

A-ny-way,
posso começar assim falando algo, uma citação, aproximada, de uma das falas, algo como eu falando algo que foi falado (dito)
[não sei se: 'okay, então temos de rejeitar -certa forma- a identidade', mas]
aqui muita gente fala SOU ANARQUISTA, bate no peito, e não interessa que corrente, mas -assumindo preceitos básicos- são anarquistas mesmo,
muita gente é punk, faz parte da cena punk, a gente assume até uma ESTÉTICA punk [pra mim essa parte é a melhor],
muita gente aqui também é vegetariana, ou vegana, e assume essa identidade,
agora, quando chega na sexualidade, a gente não pode simplesmente adotar uma identidade!
Sensacional a observação do rapaz no Espaço Impróprio, calor pós-pulos, na discussão sobre (In)Visibilidade Bissexual, um primor, um primor! Experimentei, finalmente, depois de uma certa curiosidade, o que é aquilo que está mais próximo do outro extremo do leque de tipos ativistas (o outro extremo em relação à academia, que tem sido a minha casa), e foi gostoso, e foi ótimo, 'inda que eu não tivesse como me entrosar muito bem no ambiente (mas é isso aí, quer dar uma de cientista social, antropologiza na marra!), porque eu vi o queerpunk, vi os bissexuais envolvidos com causas sociais, partindo de uma perspectiva que DETESTA a macroestrutura e se deparando também com problemas comuns à macroestrutura. Eu vi a galera dos zines, as superfeministas -já, as que eu vi lá, remediadas (teoria queer na veia) em relação ao rótulo "xiitas"-, vi os vegans, bikers, pansexuais, [se eu fosse chutar, eu diria que tinham também] poliamantes, todos unidos em um espaço, lutando entre a ciência rudimentar e a prática cotidiana para simplesmente se encontrarem, e PARA SE ENCONTRAR, porque não se sentem amparados -estes INDIVÍDUOS, se é que o termo pode ser empregado sem conotação pejorativa- pelas identidades comuns e coercitivas -afinal, no limite, ninguém pertence a nenhuma dessas identidades-, simplesmente para continuarem vivos moral, física e psicologicamente.
E vi o show do Teu Pai Já Sabe?, e cantei, e vibrei, a suei, e me realizei, no sentido em que venho inaugurando esse novo realizar, essa nova sensação. Puta, viado, travesti é engraçado!
Não consigo entender que tanto se importar com a minha sexualidade, se vai ou não aceitar. Minha vida só pertence a mim, eu não devo nada dela a você, faço o que eu estiver afim e não me importo com o que você vê! E gritos e braços e vidas saltando rumo ao limite dos músculos (e também aos limites dos fluidos músico-espaciais -bateria e guitarra e baixo e voz e vidas de verdade!) em um uníssono: GAY! GAY! GAY!
Mas obviamente são/éramos todos QUEER.
Definitivamente, fodeu o meu re-seio pré-rolê. Trombei uma conhecida tagarela, e isso ajudou. Mas, não tem como falar se não for assim como estou, emotivamente, porque o rolê foi alg'assim, tipo, precisamente emocional. Quando eu falar do festival de cinema Mix Brasil o tom será outro. Enfim, uh!
Desejo desejos e beijo a vida no -acho!- morno domingo. E vamos à luta proletária, que o professor Musse (que não é necessariamente um doce) me espera -na porta das manhãs ou- quinta-feira.
Decidi agora contar a minha aparição na revista Época, e, portanto, sobre o grupo DS e what the fuck, e isto será depois da análise do rolê Mix Brasil, porque aconteceu antes. É, acho bom fechar este texto em cinco partes.
Ai, melhor! Vou falar da bicicletada também. Vocês verão, vocês-verão, whatever.
Para o resto, para a vida, para os dias, as manhãs,
tragam sua bandana rosa e entrem no mote frenético.

talvez 22h40
21112010dc


2. Impressões sobre o 18º Festival de Cinema Mix Brasil

Hoje, em mais um morno (abafadíssimo) domingo, me sinto inspirado para escrever mais sobre as minhas últimas incursões, talvez conclua o serviço, talvez não.
Enfim, não posso falar sobre o Mix Brasil sem declarar opinião a respeito de dois marcantes e recentes acontecimentos, mais precisamente ligados à disposição social desta cidade sem estrelas.
Sem mais delongas, nas três ou quatro últimas semanas a mídia tornou públicos três, quatro ou cinco casos de crime de ódio na cidade (estabelecendo ainda um diálogo com a população -massa- de cunho -chuto!- inédito). O julgamento dos envolvidos em um desses casos teve direito a remake, dada a pressão civil. Dada a pressão civil, quem diria.
Hoje rolou um "beijaço" (um evento estranhíssimo, confesso, mas tudo vale a pena se a alma não é pequena) em oposição a uma ação homofóbica da parte da Ofner versus dois boys que apenas se beijavam no estabelecimento e foram expulsos, há poucos dias. O rolê partiu da Ofner, na Alameda Campinas, um point familiar, chique e grã-fino situado no meio do Jardim Paulista, subiu até a Paulista e culminou no 777, endereço onde um boy foi agredido por cinco playboys há três ou quatro semanas, o que gerou repercussão absurda -e, quem sabe, positiva- no espaço do debate.
O mais interessante hoje, foi o fato de (impossível não usar categorias de classe para tornar mais claro) o beijaço ter partido de uma iniciativa da classe alta. A luta política por direitos de exercer a sexualidade na classe alta, com direito a cartolina e palavras de ordem -algo a que, visivelmente, as pessoas ali presentes não estavam muito acostumadas. Acho que isso representa alguma coisa.
O segundo -fantástico!- evento que gostaria de relatar, foi o ato realizado na frente da Universidade Mackenzie, em virtude do manifesto que o chanceler (algo parecido com o reitor, não está muito claro comigo) Augustus Nicodemus (será que é assim que escreve?), um representante da Presbiteriana (mais dela do que do Mackenzie, pelo que se viu), emitiu -como sendo da Universidade-, se pronunciando contra a aprovação do Projeto de Lei Constitucional que legaliza a união civil entre homossexuais e criminaliza a nível federal a discriminação por orientação sexual.
A comunidade não recebeu o manifesto de bom grado.
Não há como explicar como uma mobilização planejada por quatro estudantes inter-universitários se transformou naquele monstruoso ato de quatrocentas pessoa na frente do Mackenzie que, numa expontaneidade enudiana (mais tarde vocês entenderão o termo), transmutou-se, o ato, em uma passeata que mudava de objetivo conforme a disposição da multidão aumentava. Do Mack para o Maria Antônia, para a Augusta e depois para a Paulista e, por fim, para o 777. Repercutiu na mídia (a não ser a televisiva, tenho a impressão).
E eu me senti mais contemplado nesse dia (talvez mais precisamente pelo caráter não-institucional do evento) do que na Parada Gay, aquele grande carnaval fora de época.
Fundamentalistas, as bichas invadiram a Paulista!

O que se deve esperar de um festival que promove no próprio slogan a bandeira da diversidade? Oras, a diversidade.
O projeto democrático do Festival de Cinema Mix Brasil, pareceu-me, em uma análise rudimentar, uma tentativa de reproduzir -ou de adequar-se- a classes de indivíduos socialmente representativos de contextos sociais categorizados segundo um status econômico e cultural.
Assim, a classe alta foi contemplada com o Museu da Imagem e do Som (situado no meio das mansões do Jardim Europa), onde foram exibidas as mostras competitivas de curtas (já me detenho a estes) com direito a caipirinha de maracujá, tomate, cachaça de primeira linha e o escambau.
A classe média alta foi agraciada com o alto preço do tíquete do CineSESC e do Espaço Unibanco de cinema, e com a sessão do Show do Gongo (mas neste não me deterei, é uma experiência muito estranha, não sei se estou apto a explicar este fenômeno).
A classe média média e média baixa interessada foi até a Galeria Olido.
E a classe dos subrepresentados e marginais amantes irreversíveis ganharam da mostra um filme pornô de zumbis gays no Cine Dom José.
Sessões em dois SESCs também aconteceram, contemplando, enfim, o que viria a ser uma quase-periferia.
O público do Mix Brasil foi majoritariamente branco, masculino e, suponho, homossexual -ou quase isso. Então de diversidade não tinha muita coisa.
A expectativa do público talvez reflita a escolha dos curtas da mostra competitiva (e eu nem procurei ainda quais foram os ganhadores). Cinco dos dez curtas contemplavam o universo dos jovens de classe média no colégio -mais precisamente na adolescência, lugar em que a socialização secundária dá os grandes pontapés, no Ocidente, nos valores familiares "cristalizados"-, período em que descobrem determinados anseios e desejos: uma expectativa do público do MIS, onde os curtas foram exibidos. Um curta contemplou o ABC Bailão e as histórias dos 'cinemões' do centro; algo que compõe efetivamente a história da homossexualidade em São Paulo, a importante perspectiva da marginalização. Alguns dos curtas da mostra traziam a sexualidade como acessórios, e não como eixo central da narrativa. O que é uma pena.
E, pelo vista, a diversidade nos curtas, que anyway eram bons, não foi muito contemplada.
Mas tive oportunidade de ver boas sessões, como a Modern Family, de curtas sobre famílias compostas por membros de natureza sexual diversa. E também um filme ótimo chamado Revolução no Rock, sobre -muitas- bandas americanas formadas por transexuais e afins (leia-se travestis, gays, lésbicas etc) e, pasmem!, algumas muito boas. E de muitos estilos.
Contudo, toda maneira de amor vale a pena, e as manifestações supracitadas, assim como o projeto comercial do Mix Brasil, aparecem como maneiras de performatizar politicamente o nosso lugar na cidadania; seja nas ruas ou no comércio (embora a luta seja bem mais frutífera e menos problemática no primeiro local).
En-fim.

talvez 23h56
12122010dc


3.

GENSEX, primeira semana de gênero e sexualidade da Universidade Federal de São Paulo, um evento pós-ENUDS (com pequeníssima margem de tempo entre um e outro) na tal universidade.

Rolou uma falta de organização dos meninos da UNIFESP. Nada que não pudesse ser esperado.
Ficou patente pra mim diversas falhas organizacionais. Desde falhas básicas de etiqueta (desde quando moderador de mesa sai pra interagir com colegas?) até falhas grotescas do tipo 'pedir a um professor de especialidade X para falar sobre algo Y, de forma a preencher um calendário temático ideal utópico' -algo que foi, contudo, pelo visto, superado pelos professores, que tiveram relativa autonomia para o desenvolvimento das mesas.
Contudo, um evento programado por menos de dez estudantes, sem nenhuma verba cedida pela instituição, na semana em que a universidade entra em greve, e com convidados do naipe da Helô Buarque, Pedro Paulo, Larissa Pelúcio e Berenice Bento merece, no mínimo, respeito.
Fui em quatro dos cinco dias de evento (o dia em que não fui gerou certa polêmica, fiquei sabendo -meu namorado incendiário). Apenas duas pessoas da minha faculdade (a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo) compareceram ao evento -sendo que eu fui em quatro dias e o Aryel em um, e, além disso, cerca de três pessoas -que pelo menos eu conheço- não estudantes ou ex-estudantes também compareceram. A UNIFESP campus Guarulhos fica muito longe, em um bairro de péssima urbanização, pobre, com nenhuma referência interessante. A comunicação deve ter sido precariamente realizada. Enfim, tinham poucos não-UNIFESP lá.
Prestei bastante atenção nas palestras do evento (em especial nas dos supracitados professores), mais do que talvez no ENUDS (onde a ressaca bloqueou parte das informações irradiadas nas mesas). A Heloísa Buarque da USP deu uma belíssima palestra sobre a história da teoria de gênero, o Pedro Paulo (acho que foi da UNIFESP) deu uma palestra fabulosa sobre pornografia -excelente!-, a Larissa Pelúcio mostrou seu trabalho sobre as travestis e a Berenice Bento sobre transexualidade (sua especialidade).

Ia ter uma festa pós-GENSEX, mas... mas... enfim.

talvez 1h27
27122010dc


4. Minha Namorada é um Homem!
ou De como eu virei um viado

No ônibus expectativas ingênuas. No campus matéria esperando para ser tingida das maravilhosas cores. Da paleta da diversidade as faculdades ali ovais -ou quase isso- eram. Em um ginásio uns quinhentos corpos estavam instalados, em barracas e sacos de dormir abertos como a disposição coletiva.
Afinal, aquela era a igualdade, algo muito próximo do sonho queer, estávamos todas lá, e o que nos unia era o cu! Vivíamos, e bastava isso.

Em São Paulo me cantaram uma prévia-prévia sobre o que seria Teoria Queer, um assunto que instantaneamente me cativou: pré-intuições preenchidas.
Sexta me instalei no ginásio com a caravana mais ou menos desinteressada da USP, fui a uma mesa inaugural do rolê e bandejei -tendo contato com a condimentação florida unicampense. Talvez tenha tomado um banho. Talvez não. Mas muito provavelmente eu tomei banho todos os dias. O vestiário era um lugar para se fazer amizades. Como em qualquer outro dos prédios enudianos, já que a faculdade estava relativamente calma: feriado prolongado. Era tudo nosso.
Enfim, no sábado consegui acordar cedo suficiente para tomar o breakfast e fui ver um Grupo de Apresentação de Trabalhos na área de educação, bom, por sinal, com uma das minhas maravilhosas roupas a dedo escolhidas em São Paulo para em Campinas arrasar.
Almoço. E fui conhecendo melhor as pessoas da minha universidade, que eram -nossa!- peculiar e particularmente interessantes -ou, no limite, legais! E oficina de Teoria Queer com o Leandro Colling da UFBA.
Uau! Incrível! Incrível!
Então janta, então festa!
Peregrinação até a república tal, com maracatu, um maracatu! A coisa mais linda do mundo, um maracatu LGBTT-Queer com jovens e quase-jovens e ex-jovens estudantes ou ex-estudantes brancas, pretos, rosa & etc. purpurinado, da UFAC até a UFRGS, altas e baixas, vaginais e penianas ou nem isso, marchando-andando-ando!
Ressaca dominical.
No GAT marquei presença. Depois voltei para o saco de dormir, devo ter dito algo para os meus vizinhos de colchão, um carioca, um paranaense, um pernambucano etc. e voltei a dormir até a hora do almoço. A palestra do Richard Misckolci da UFSCAR deveria estar ótima de fato mas a ressaca ainda doía, então voltei ao saco. À noite, após uma mesa (e as mesas em geral foram ótimas, a melhor foi a sobre feminismo na segunda-feira -polemíssima), rolou a TransENUDS, a tradicional festa do ENUDS, que rolou numa balada fechada lá em Campinas, devido a restrições de festas nas faculdades da UNI -ou alg'assim. Comecei praguejando mas terminei pulando de excitação. 'Té beijei o paranaense bonito, chamado Heverton. Na fila do banheiro. Aliás, fiz vários BFF's em filas de banheiro, muitos. Não me lembro de um só. Lembro da Renata Facchini no banheiro unisex, da performance da mina seminua chupando uma manga, dos cus sendo mostrados no palco, das performances e do Rauni, o chubby bear direito-Mackenzie que eu conheci no busão de volta pro ginásio. Fomos para o quarto em que estava hospedado, numa república próxima da UNICAMP e tive u'a experiência ótima. Era como um tapete felpudo e gelatinoso, sei lá, peculiaríssimamente gostoso. Perdi um rolê cultural na cidade por causa a) da ressaca e b) por causa do sexo; e também quase perdi o almoço, pois saí da república 13:45, e o RU fechava às duas. Fui a todas as -ótimas!- mesas daquele dia e à noite aconteceu a última festa no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Ótimas músicas, bebi até não cair -o que é bom!- e curti lindamente, com mais amigos e quase-amigos, ex-conhecidos virtuais, beijos instantâneos, esnobadas -o Rauni me trolou! me trolou!-, e o Anderson, com quem casei. Um moço bonito, muito bonito, homem, muito homem, muito homem, muito homem, inesquecivelmente homem, demais homem, homem, homem, homem, homem, homem, homem, homem, homem, homem, homem, homem, como era homem... A Tawne ia lá chamá-lo, e de sua barraca saí, semi-ressacado, direto para o meu saco de dormir (que só foi desconfortável e duro no primeiro dia, que foi aquele em que não bebi nada).
No fim de tarde, terça-feira, a assembleia, engraçadíssima, ônibus, São Paulo, táxi, casa do Poli e DR com o boy. Mas eu whatever sabia que jamais seria o mesmo. Tinha voltado uma viada. Sem dúvida estou outra. Só 'tando lá pra entender com precisão. Tentem.
Kisses mil.

talvez zero horas e 46 min.
31122010



Sabe o outro?

Então, imagina que ele aparece na forma de substrato virtual no seu portátil em um dia de chuva enquanto você e o seu namorado estão presos em um brechó no meio do Ipiranga (ou melhor, Cambuci) porque as gotas são muitas e muito -muito mesmo!- violentas, onde as paredes vermelhas e uma senhora, ao estímulo das gotículas rebeldes, fazem de tudo, como um trem de penas em queda livre, para te chamar toda a atenção do mundo.
Agora imagina que a única coisa mentirosa disso tudo é que as paredes não eram propriamente vermelhas, mas meus olhos de alguma forma projetam esse tom sobre a cena de ontem à tarde.
Então depois de mais de um ano sem dar as caras, depois de três quartos de ano sem responder um e-mail, depois de toda a dúvida, toda a angústia da dúvida e todo o inconveniente da angústia, inconvenientemente ele me acha (no número que talvez nem mesmo fosse o mesmo, mas o da história que nunca tivemos), com o sucesso que -talvez- esperasse: eu respondo-ondo-ondo! na fissura-ura-ura da curiosidade-ade-ade-ade-ade...
E até agora cada cheiro de fumaça na chuvosa cidade sem estrelas é reflexo-odor da nuvem que a caixa -esqueleto- de chocolate que me dera exalou na combustão do fogão do meu desespero cinco meses atrás. E, irônico, com meu novo quase-homem comemos no restaurante das nossas (minhas e do outro) madrugadas marginais & gente fina.
Ele digitou nas letrinhas da comunicação impessoal os tipos do nada-sei, papo que estava comigo mesmo quedando ausente, o que é convicente para o meu umbigo, que quer enredar um tricot, que é engendrar um novo tricô, ou que, não, não, não, Eros, não.
E a viagem para o litoral sul, como na viagem que fiz na metade de certo passado ano, será expectativa, ou expectorante? Sei não, inda esperava história de passeio, pode ser mera balela, mas, mas, não imaginava isso do moço, coisa de saudade, não, não podia esperar, filhadaputagem isso sim, não, é, não, Eros, não.
Você está feliz, moço. Com o seu excêntrico dançarino goiano de balé na gordura do chão gelo-banha paulistano-ano, não precisa desse, desse lapso-relapso. Que, que, como era? um, dois, quatro meses, você está aqui direitinho aos seis, por que de revivals, nostalgia do que tanto te fez só-sozinho-solitário-otário-ário-o.
Mas era um sedutor, me seduzia -eu certamente o rechaço-boicoto, provo para mim mesmo-, apartamento & batatas & madrugadas -não deve ser tão bom quanto hoje, né? será?- & línguas...
Sabe o outro?
O outro é o meu passado.

23h06
14122010dc



Um prólogo da invisibilidade

Já me sinto um traidor. Me sinto um traidor pelos olhares.
Mesmo que as retinas não se fundam já me considero um traidor. Agora sim. Sei lá. Estou traindo a confiança não só do meu, mas a minha com o respeito alheio, do hétero -que, olha ele, olha o olho dele! será que é hétero mesmo?- (confiança/responsabilidade), traindo seu sigilo atmosférico-invisível, seus silogismos, meus silogismos, a lógica toda das coisas estabelecidas na galera-era-era-era. Não me olha mais, não me olha não. Me olha sim. Me olha mais! Vamos fugir juntos para o Canadá, e teremos uma vida feliz, eu, você, eu, você, e nossos olhinhos casados.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Teoria Geral das Coisas I: Notas de rodapé

Anexo A: Do Sexo

A revolução estética será iminente quando da supressão da dualidade (e bipolaridade) sexual. Durkheim, Mauss, Hertz e todos esses antropólogos nos tentaram provar a a recíproca entre sociabilidade e religiosidade, polaridade "estrutural" e funções sociais. A mulher sexual é socialmente construída enquanto função para ser submissa na relação de poder entre os gêneros sexuais. Não é tanto uma relação natural e necessária com fins de reprodução como Aristóteles o concebeu: é antes um efeito do movimento social, algo cujo pioneirismo de Mead acusou, tornando patente a condição de maleabilidade das funções sociais sexuais. A polaridade religiosa portanto não responde totalmente às intenções da dimensão sexual.
Eu nunca li Clarice Lispector. Isto é, não a li por enquanto. Entretanto, certa vez um amigo disse em uma discussão -que por sua causa tornou-se caótica (seja lá o que possa ser interpretado como caótico)- que a celebrada ucraniana escrevia como uma mulher. O comentário pode ser considerado incendiário, polêmico, radical e perigoso como uma porta -que, para machucar alguém necessita que tal alguém seja talentoso. Entretanto, existe algo que escapa do alcance da interpretação de que se tratou de puro machismo. Não sei se é verdade, porque a minha ignorância acerca do assunto -como já colocado- não me permite conjecturar nada consistente (apenas hipotético, mas vocês entenderão o porquê de tudo isto logo), mas eu creio que, no fundo, o que o meu amigo queria dizer, era que a condição de mulher inevitavelmente trazia uma carga de feminilidade patente na obra da autora (o que soa como óbvio), o que para o meu amigo -e aí haveria um pouco de machismo, de fato- seria a dificuldade das mulheres, em relação às quais os homens seriam mais versáteis.
Quis dizer isso tudo porque hoje, ouvindo a feminíssima Andreia Dias, que é um produto pop, entendi com precisão que, pressupondo que a sociedade é sujeita a mudanças de seus membros sexuais e sociais, a supressão da polaridade tradicional nesse aspecto, que me soa como uma tendência da metrópole. Acho que posso citar Regina Spektor como um símbolo dessa geração de mulheres que impõe seu respeito na concepção de um estilo pretensamente inovador, mas inequivocamente feminino, não apenas vaginal.
No fundo, o sonho universal pós-tropicalista (e talvez neo-tropicalista), o sonho da brasilidade paulistana, me aparece intuitivamente -e agora eu posso explicá-lo racionalmente- simpático à androgenia e à teoria queer; ontem os Dzi Croquettes (talvez Secos & Molhados também), e hoje Solange, Tô Aberta! e Teu Pai Já Sabe?, contribuintes underground (o último, contudo, em menor medida, simplesmente pelo pedante caráter doutrinário da cultura punk) da subversão das funções sociais (inclusive das extra-heterossexuais) são personagens de biologia masculina (e aqui eu de fato corro o risco de parecer controverso com meu próprio argumento). Entendo agora o projeto político d'Os Mutantes e da banda americana The United States Of America; Arnaldo, Sérgio e Rita, Moskowitz e Byrd: pioneiros do som universal que efetivamente suprimiram as divisões sexuais em suas carreiras.
Dentre as mulheres cito Hilda Hilst (que conheço pouquíssimo, a única referência que tenho de sua versatilidade é de duas páginas de um texto ótimo -cujo nome não faço ideia qual seja- que foi recitado para mim há um ou dois anos) e Marli. Aquilo que portanto não foi realizado nas duas bandas supracitadas -no fim do último parágrafo- foi, para além da inclusão, a subversão dos papéis sexuais.
A crescente liberalidade sexual, em relação à qual os pais da geração do ego-herói citadina fazem parte por seu legado, é um dos termos da brasilidade paulistana.
Tentei, neste anexo, esclarecer as mudanças da dimensão sexual e social que são patentes na brasilidade paulistana. Tentei fazê-lo explorando os padrões de gosto, o movimento contemporâneo da arte pop e, especificamente e predominantemente, dentro disto tudo, o gênero musical de massa. A Arte de uma sociedade é reflexo da produção efetiva dos homens dessa sociedade (codificada ou não em pluralidade, ideologia, espetáculo, indústria cultural e todos esses termos). Espero que tenham entendido por que este texto é um anexo da Teoria Geral das Coisas I: a subversão dos papéis, a revolução estética, o sonho do domínio da brasilidade paulistana devidamente historiografado etcætera, são algumas de suas facetas.
Discordarão de mim do caos da universalização? Discordarão do quão bom será? Discordarão do processo? Discordarão de conceber juntas esteticamente a sub-humanização do Projeto B, a política de Marli, a agressividade de Solange, Tô Aberta! e a feminilidade elétrica da Andreia Dias?
O surf acontece aqui efetivamente. Espero ter contribuído para a cognoscibilidade dessa teoria geral.


Funcionalismo Sexual

Mais ou menos bonito, o que é em medida controverso.
-Opa, você sabe onde é o puteiro?
-O puteiro?
-É, onde tem um puteirinho aqui. Não tem um puteiro aqui na região?
-Olha amigo, tem um mas, hum, eu acho que 'tá fechado. Lá na Bonsucesso.
-Ah é? Mas como eu chego lá, é...
-Segue aqui e vira a direita e é lá na esquina, você vai ver, é uma casa amarela, mas eu não sei se 'tá aberto, não 'tá com jeito.
-Ah, beleza, eu vou lá. Obrigado!
-Por nada.
Eu fui para casa, e ele foi tentar dar uminha na noite sem estrelas.


Amor Irreversível VI

Não apenas difícil, mas impossível amar outro.
Penso nas possíveis noites regadas a beijos, madrugadas beijadas até o suspirar do dia, no êxtase da vida na mais potente das atemporalidades.
Impotente, na verdade, na mentira o luxo do hedonismo.
Hedonismo na cidade tem nome, e se chama impotência.
A ciência não descobriu ainda o milagre do prazer pleno. Simplesmente porque o prazer pleno não deve existir mesmo; se existisse fórmula que efetivasse essa quimera onírica, certamente ela seria o tiro no pé da humanidade. Pois olha só o que nós fizemos com essa fração minúscula do que podemos chamar de amor pleno: desvastamos cidades, engravidamos crianças (com moralismo e amor-alismo), passamos em décadas a seres vegetantes e carentes de anti-depressivos.
Não dá, não dá, e não é nem fruto da crítica social moderna.
Não dá pra amar se não for você. Não dá pra gozar se não contigo. Eu não quero ter que lamentar simbiose, porque a real graça de viver é justamente acompanhar os altos e baixos dos diversos vínculos nos quais estamos acorrentados. E aquele que não tem vínculos certamente, se nunca os teve, é o mais feliz, e se os já teve no passado, é o mais infeliz dos homens.
Não dá pra ser feliz se não for com você.
Não me importo se daqui a dez anos eu direi esta mesma frase para outro. Me importa agora, a saber você, que eu não posso me imaginar sem que você consista em parte, que a minha vida seria outra, intuitivamente uma menor, sem você, que te estimo, e esta estima só tem uma inimiga, ou amiga incondicional, que é o tempo.
Não dá pra ser feliz se não for com você.
Eu te amo.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Peça: Domingos na vida (Não faz a'loca!)

Deve acontecer na cidade sem estrelas, e absolutamente ao acaso.
A cena é composta por um vagão de trem razoavelmente vazio, em um metrô de um bairro médio de emergentes, também um polo social da região. Acontece no limiar entre as quinze e as dezesseis horas, em um domingo mais ou menos frio em medida nublado.


Personagens:

o homofóbico militante gay: roupas escuras, calça, blusa de manga comprida deixando à mostra algumas tatuagens (uma delas lembra uma cruz), boné, provavelmente tênis, cabelo curto ma non troppo, alargador, óculos sem contorno de armação em volta das lentes, magro, cara de louco;
o bissexual discreto: barba por fazer, inchado, óculos de armação unissex, cabelo curto ma non troppo, camiseta preta de manga comprida, calça jeans, tênis, segurando uma folha do jornal da Igreja Universal do Reino de Deus, que tinha cruzadinhas (o miolo do jornal havia sido recém-jogado fora, por motivos evidentes);
o homossexual havaiano: camisa florida, bermuda xadrez marrom com azul claro, chinelo, mais inchado que o homofóbico gay mas menos inchado que o bissexual discreto, ponta do cabelo com gel descolorida e mezzo desbotada mezzo violeta versus rosa.


Prólogo

O bissexual discreto senta em um banco duplo paralelo ao do metrô, enquanto o homossexual havaiano no banco duplo perpendicular. O homofóbico gay militante senta no banco duplo perpendicular que forma uma linha contínua com o banco perpendicular em que está sentado o homossexual havaiano. As portas fecham. O metrô começa a andar, deixando à mostra a pequena ponte estaiada prestes a ser inaugurada.
O homofóbico gay militante começa a encarar o bissexual discreto. Olha fixamente para ele, em uma expressão crescente que aparentemente misturava medo, perplexidade, ódio e vários outros sentimentos mistos. Ainda não estava evidente que de fato ele olhava para o bissexual discreto, que apenas achava graça.
Tem início o diálogo.


O Diálogo
HH: I guess, he's with a fork, and he's going to start killing us.
Risos.
O homofóbico gay militante se levanta põe o dedo em riste, acusando o bissexual discreto. Quando fala, fala gravemente, com muito sentimento, misturando alerta com ameaça, e com assustador fôlego. O primeiro clímax.
HGM: Não faz a'loca! Não faz a'loca.
Acusa o bissexual discreto mais um tempo, fazendo ameaças e também com sentido de ofensa. Vai se afastando de repente em passos largos e desajeitados, e também hesitantes e chega até próximo do fim do vagão em pouco tempo. Entretanto, o homossexual havaiano não parava de provocá-lo.
HH: Ei, cara, vamos conversar, vamos conversar! Vamos bater um papo! [E quando ele se afasta,] Olha só, mas que homem nós temos aqui!
Enfurecido com a última provocação, o homofóbico gay militante volta rapidamente, enquanto o homossexual havaiano levanta, e posteriormente o bissexual discreto. Enquanto o primeiro, peitando reciprocamente o segundo (de forma que este notou o doce hálito daquele) continua a praguejar, e o terceiro se esforça em previnir qualquer contato físico apartando os dois primeiros, o segundo consegue engendrar uma conversa mais ou menos lógica no sentido narrativo, que consiste no segundo clímax da peça.
HH: Cara, vamo bater um papinho. A gente desce na próxima estação e vai conversar com os policiais.
HGM: Pra quê?
HH: Porque você está me discriminando.
HGM, surpreendemente, em uma voz mais ou menos audível: Você acha que eu não sou veado igual a você?
Chegavam à seguida estação. Encaminhavam-se para a porta de saída, as vítimas insistentes para que o louco (como se as próprias vítimas fossem sãs) com elas descesse para que a conversa chegasse de fato em termos mais sérios e efetivos -não necessariamente graves. A porta se abre, o homossexual havaiano desce, o homofóbico gay militante fica do lado de dentro mas próximo do limite da porta para o lado de fora, e o bissexual discreto entre o chão da plataforma e o trem. E é este último que engendra o terceiro grande clímax (logo, as três principais personagens da peça são suas três protagonistas).
BD, acusando: Você está preso! Eu como cidadão estou te prendendo por discriminação!
A porta apita. O bissexual discreto tenta trazê-lo para a plataforma, mas não conseguindo, empurra o homofóbico gay militante, que neste ato arranca do primeiro o resto do jornal da Igreja Universal do Reino de Deus que continha as cruzadinhas.
A porta se fecha. O bissexual discreto mostra-lhe o dedo do meio, o homossexual havaiano manda-lhe um beijo, o homofóbico gay militante continua olhando odiosamente através do vidro da porta do metrô.


Epílogo

HH: Gente, que cara loucão, velho!
BD: Eu prendi ele!
Risos.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Teoria Geral das Coisas I

Lendo um artigo de política (sobre a desconfiança como vetor de ação no mundo democrático), logo após assistir a um documentário de um dos acontecimentos históricos que mais me fascinam (este, em especial, desde a minha infância, o Terceiro Festival Nacional de Música Popular Brasileira produzido na Record no ano de 1967), tive um insight mais ou menos fosco a respeito de mais um dos membros da teoria geral das coisas, no sentido que esta se apresenta para mim.
Estou numa curva que, segundo o meu palpite esperançoso, jamais acabará até que o próprio sistema social do homo sapiens finde. Essa curva é esta sociedade para mim palpável, aquela que conhecemos por moderna ou pós-moderna, e que pode, com esforço, ainda ser reconhecida enquanto era representada (ainda que, para os historiografadores, seja cada vez mais incomensurável e evolua sem qualquer tipo de estratégia narrativa definida para traçar marcos definitivos).
Sou parte deste monstro mutante cuja maior tensão é a expressão fabulosa do diálogo com o passado: a pessoalidade versus a impessoalidade.
Viver em uma sociedade que se diz civilizada, embora arbitre estimas e estigmas aos seus estratos (e, aliás, suponha a existência de camadas e níveis), permitindo-os viver conforme uma vontade que os homens não conhecem (e aqui nós tentamos diversas teorias, desde a metafísica, a fortuna divina, o liberalismo, o marxismo, o ces't la vie, até o sonho positivista, a teoria da conspiração, a física quântica, o anarquismo ontológico), é sem dúvida a experiência mais prazerosa para aquele que acredita que a vida pode ser divertida -embora este, eu não duvido, esteja mais sujeito ao suicídio em uma queda da fortuna do que o republicano que pode simplesmente escapar ileso e viver até o fim fingindo todas as noites que ainda é um conselheiro do magistrado-mor: as coisas na cidade são, sem pieguice, mais intensas.
O anarquismo ontológico funcionaria muito bem nesse sentido (ou não, nós nunca saberemos), se os homens fossem diretamente catequizados para serem ratos na brecha do sistema em uma socialização primária (mas também, nada que para uma socialização secundária violenta não fosse também impossível, apenas menos viável). Fora disso parece que reina aquele velho ciclo das coisas; existe uma idade em que os pequeno-burgueses têm de extravasar seus sentimentos impetuosos em relação às mazelas da sociedade. É um grande axioma dos grupos escolarizados: não ser comunista antes dos trinta é falta de sensibilidade, ser comunista depois dos trinta é burrice.
E o discurso sempre se resume a isto.
O caso brasileiro é peculiar nesse sentido. Às vezes, em busca de uma identidade legítima brasileira, penso que os pós-tropicalistas (porque nós não tivemos neo-tropicalistas; a arte brasileira estacionou no Hélio Oiticica, e o documento de óbito foi assinado pelo Cildo Meireles), estes jovens e quase-jovens da classe média alta, cuja ilustração predileta para mim seria a Praça Benedito Calixto aos sábados, são heróis de si próprios que representam aquilo que tenho vontade de chamar de brasilidade paulistana (não duvido que no Rio de Janeiro ou em Brasília seja muito diferente). Parece que não teremos mais heróis de fato, e a História se mostra uma empreitada tão absurdamente intransitável que não duvidaria que os historiografadores simplesmente passem a esquecer a pluralidade e a legitimar os costumes brasileiros no futuro como simples reflexos da Lady GaGa.
Sinto vindo no ar uma réplica neo-marxista, me acusando de fascismo simplesmente pelo fato de que, nessa minha visão romântica do que é a juventude, possivelmente enviesei meu discurso em um foco classista, acadêmico, segregacionista e o escambau. A minha resposta é mais ou menos frustrante: as guerrilhas em São Paulo (e aqui me refiro às tribos urbanas legítimas -e não às tribos civilizadas ou às tribos policiais), as feiras de troca-troca nos bairros paupérrimos, o patriotismo do teatro político, os shoppings, a novela, o futebol e as rádios brasileiras não podem, para mim, servir de critérios para delinear o que é o brasileiro e seu estilo-de-vida, simplesmente porque não há unidade. Os brasileiros nunca sempre foram apenas pretos, índios, pícaros, varguistas, corruptos, dançarinos de teatro de revista, cangaceiros, honestos, estudantes, caras-pintadas, baladeiros, teventes ou brasileiros; o meu esforço em eleger um tipo de estilo-de-vida como representante da nossa identidade, é um capricho subjetivo. Está claro?
Recapitulando. Parto do pressuposto de que minhas interpretações não fogem do contexto social em que eu, por exemplo, como homossexual, sou caçado, ao mesmo tempo que vários homossexuais vão atrás de se afirmar como seres sociais, seja como integrantes emergentes de um mercado em expansão que enxergam no horizonte a possibilidade de obter respeito com a estima econômica, seja como defensores dos seus direitos civis, políticos e sociais que -em virtude de um processo histórico que, obviamente, como histórico, teve origem no passado (neste caso, mais ou menos longínquo)- são sistematicamente negados a ponto de ainda serem caçados por isso. Ou seja, pessoalidade versus impessoalidade; o controle exercido por uma ideologia local versus o dissipar dos conflitos dos indivíduos qualitativos através do reconhecimento das funções quantitativas.
Tendo esse pressuposto claro, quero fazer entender como se dá a vida e a criação de estratégias de exercício dos vínculos sociais nesta sociedade de curva, em especial no caso brasileiro, e na expressão de uma juventude artificial, qual seja, a escolarizada, que vive: a) copiando uma trajetória paterna (porque ainda somos os mesmos e vivemos como eles); b) segundo critérios normativos (que são uma mistura dos valores tradicionais brasileiros, da disciplina europeia e da estética americana), que acompanham a identidade que nomeio como brasilidade paulistana; e c) sem definir de forma concreta personagens muito bem delimitadas como heróis de seu tempo.
Definitivamente, a sociedade pós-moderna e toda a sua confusão semântica simplesmente deu um nó na cuca da História. Não consigo definir de maneira clara a expressão da juventude, e nem unificar em uma só palavra e faceta o modo de viver desse grupo. Meu último argumento, entretanto, diz respeito justamente ao tentar. Já que simplesmente não posso convencer ninguém a conseguir. Imagino as coisas e os fatos como no surf bem surfado; algo previsível, perigoso e cansativo, mas também emocionante, ativo e prazeroso.



Arte como forma de segregação III

Talvez o mais sensato seja mostrar de uma vez por todas quais são os pressupostos da minha análise a respeito do fenômeno Arte.

Podemos vê-la segundo, por exemplo, uma dimensão histórica. Essa dimensão consiste na divisão entre a Arte legitimada pela História e tudo aquilo que está fora dessa legitimação. Aquilo que está dentro funciona como forma de segregação; o que está fora fica guardado ou não em registros ou documentos históricos, tutelados pela biblioteconomia, arqueologia, etnografia, e demais artes do empacotamento.
Sem querer parecer polar ou maniqueísta demais, reconheço ainda aquelas clivagens artificiais que a nossa sociedade adora: a Arte popular, a Arte folclórica e a Arte erudita (como se, em níveis práticos, toda a produção artística possa ser mensurada nesses termos).
A nossa sociedade democrática então consideraria essas três modalidades de Arte e as estudaria segundo um viés próprio. Embora, portanto, nos livros de História da Arte já se veja um esforço em tratar dos três tipos (ainda que, por enquanto, em medidas obscenamente díspares), admite-se tal estudo segundo um viés específico: o erudito é reconhecidamente o carro-chefe (mesmo porque a tarefa implícita do erudito sempre foi destruir sistematicamente aquilo que não o represente; na atual sociedade em que as relações de poder se dão de forma microscópica essa análise se torna mais complexa). Nietzsche já nos mostrou, na sua Genealogia da Moral, que aquilo que nasce com uma estima negativa, só pode ser a negação (e ele o prova por meio da filologia) de uma estima positiva precedente. A Arte que não seja boa jamais terá uma estima que não seja pejorativa. Acho que toda a teoria marxista corrobora esta tese.

A Arte, segundo uma outra dimensão, a conceitual, pode ser vista em termos, não de uma disputa histórica, mas de uma conceitualização que justamente só foi possível com a margem dada pela democratização dos meios de acesso à produção e contemplação artística no século XX. Por democratização da contemplação artística estou me referindo ao fato da Arte adquirir um lugar definitivo no debate cultural (um dos legados da indústria cultural, talvez), seja por meio da abertura pública dos museus ou através da veiculação artística pelo rádio, televisão ou internet.
Posso dizer que tem relação com o quadro geral a descoberta de que a Arte Contemporânea é pluri-significativa e multi-interpretativa; isto é, ela supõe a superação do conceito de observação como imprescindível para a contemplação artística, abrindo espaço para interpretações muito variadas. Muito variadas, porque observações distintas geram obrigatoriamente interpretações distintas, e mesmo observações equivalentes geram em grande medida também interpretações díspares entre si.
Gosto de definir, portanto, a experiência artística como aquela em que sua contemplação (tal como se contempla uma obra de Arte, uma experiência subjetiva) se dá por um ou mais espectadores em um tempo e espaço quaisquer.
No fundo, essa máxima é uma tentativa de a) tornar palpável o que viria a ser o sonho situacionista da supressão do artista, pois na concepção supracitada qualquer um tem potência de ser ao mesmo tempo um produtor e um crítico de Arte, e b) persuadir quem quer que seja que a paradoxal relativização da Arte tem que ter um limite, que é o critério subjetivo, compartilhado ou não, em parte ou inteiramente, com outros indivíduos (sendo este indivíduo uma personagem específica da nossa sociedade, aquela em que há a democratização da contemplação artística).

Tentei levar o alcance do significado artístico às últimas consequências. Mas quero fazer entender também que é essa mesma aparentemente vazia filosofia, dialogando com os limites da sociedade, que determina dentro desta aquilo que pode ser considerado Arte.
Temos um mundo incomensurável. Nossa Ciência, nossa Filosofia e nossa História serão sempre falhas nesse sentido. A Sociologia também. Mas eu simplesmente prefiro esta última porque é a que me permite tornar analiticamente articuláveis movimentos sócio-culturais (algo que a História não conhece com tanta profundidade), sem necessariamente me debruçar sobre a teoria geral das coisas para continuar fluindo (algo em que a Ciência em geral e a Filosofia vivem esbarrando sempre).
Vivemos a posteriori.

domingo, 29 de agosto de 2010

Arte como forma de segregação II

Quando falamos em termos como academia, indústria cultural e alguns outros conceitos, devemos ter a cautela de situá-los em seus devidos contextos, de encaixá-los em seu lugar reservado.
Quando falo em Arte como agente de segregação, estou me referindo a uma dimensão específica das sociedades ocidentais humanas. Simplesmente sabemos precisamente tudo quanto foi descoberto acerca das manifestações artísticas desde Lascaux até Damien Hirst. Entretanto, essa História se refere quase que exclusivamente à História Ocidental (tudo aquilo quanto não for considerado de importância para a consolidação do oriente apenas surge como relevante quando tangencia o enredo dos vencedores coadjuvantemente).
Logo, a historiografia se preocupou durante muito tempo em apagar todas as manifestações artísticas que fugissem a um determinado padrão cultural de determinada época, ou simplesmente que não fossem reconhecidas socialmente pelas camadas mais influentes e poderosas das sociedades históricas. A simples preocupação que nós dos séculos XX e XXI temos em criticar e classificar as "baixas" manifestações é apenas um sintoma de que nos foi permitido descer do dogmático altar da arrogância do conhecimento esclarecido e absoluto (mesmo porque cada vez mais se dá conta da importância da dialética).
Contudo, nosso olhar moderno treinado reconhece facilmente as categorias de Arte segundo as clivagens artificiais que a crítica (popular ou não) cria para classificar. Temos então os conceitos de erudito, popular, folclórico, e cada um deles representa uma determinada estima social e, por conseguinte, valores morais. O sonho situacionista da supressão do artista talvez tenha a ver com essas clivagens que a sociedade moderna deixou mais nítidas e, ipso facto, as tornou mais deliberativas e arbitrárias.
Hakim Bey provavelmente se refere à morte da Arte justamente como aquela que a academia vem legitimando ultimamente. Mas justamente o fato de que elite intelectual perdeu os parâmetros artísticos é ao mesmo tempo reflexo e causador de um colapso total, pois a orientação artística da elite é justamente o que legitima ou deslegitima as manifestações culturais dentro da História. Considerar Damien Hirst, que nada mais é uma mercadoria sobre a qual os milionários do cassino global (termo de Cristóvam Buarque) especulam, como sendo o grande expoente da contemporaneidade é simplesmente explicitar que o espetáculo (aqui falo em Debord) se apropriou de todas as possibilidades de exercício do intelecto (e destruiu qualquer capacidade de estímulo à criatividade, fator que para Vaneigem é sine qua non para, mais do que a existência da Arte per se, um sentido para a existência da Arte que remeta à realização pessoal).
No final das contas, temos uma contemplação alienada.



Da Teimosia

Eu acho a teimosia a grande virtude do homem, e a sua contribuição para o processo histórico.
O desrespeito é uma coisa tão bela. Ele é uma roldana sem a qual a máquina dialética simplesmente não faria sentido.
Me falam que é importante respeitar os mais velhos, afinal, um dia o serei também eu. Eu não quero respeitar nada, terei orgulho do desrespeito da minha geração posterior, pois dele e dela nascerá uma nova História.
Me falam que o respeito entre gerações deve ser recíproco. Mas eu não quero ser respeitado pelos mais velhos. Ter que ser tolerado seria simplesmente a chatice maior do mundo.
Afinal de contas, a maior das virtudes humanas é a teimosia.



Canção do Ódio III (deprimido)

Os meus amores são projetos natimortos.
A maior parte deles não passou de dez minutos.
Entre aqueles que passaram desse limite estão os puramente sexuais e também os exclusivamente sexuais. Além dos praticamente sexuais. Uma minoria era geralmente sexual.
E tinha você.
Depois de você qualquer tentativa de estabelecer um relacionamento nos mesmos moldes se torna artificial.
É como se tudo que não dissesse respeito ao teu jeito estivesse fora de qualquer possibilidade de ser considerado.
Você jogou sobre mim a maldição da verdade.
Mas você não existe mais, não existe, não existe, não existe!



Declaração Póstuma do Amor das Segundas-Feiras

você [passa por mim e] me deixa louco
não vem mais não -mas que inferno!, eu me esforço em te achar-, não vem, eu sou de outro -ou quero [não querer/querendo] ser d'outro.
-É claro que eu te escuto! Consciência minha não falha.
Mas você -e/ou eu, nós- insiste(imos) em aparecer-fantasmagorizar-assombrar (belamente). mas é uma surpresa. porque cada vez que você está mais distante de mim [e eu de você] mais fascinado fico com os nossos cumprimentos aperiódicos -em termos, você era o meu amor de segunda-feira, de segunda mão, de segunda categoria. um amor, segundamente.
então você parece melhor vestido, e o seu corpo mais convidativo, e o seu boné mais transado (embora eu o quisesse transando -será que você fica de boné na cama?), e a tua pele mais quente, e a tua barba mais amiga, e a tua boca mais saborosa (com aquele sorriso mais encantador). e é claro, os teus olhos, que são cada vez mais tudo aquilo que eram, só que em dobro. enigmáticos. enigmaticamente olhos de segunda. [olhos de menino, de ingênuo, de certeza, segurança, de amor ou de paixão, olhos multivisuais.]
te gosto de longe. você me cumprimenta no seu estilo espartano. deve estar namorando. alguém menos legal do que eu. a vida a tua. não posso fazer nada: eu gosto de outros. [ou melhor, eu gostaria d'outros.]
te gosto passando. acho que se nós tivéssemos ido para a cama eu não sentiria hoje esse amor de segunda com prólogo, introdução, meio, fim e epílogo, assim bem-acabado (feliz e não-felizmente bem acabado).
se me zombas por querer ou não, só saberia se pudesse retornar ao quebra-cabeça dos teus olhos. o fato é apenas um. segundamente, enigmaticamente, feliz ou não-felizmente. [ou não] que... ainda...
você me deixa louco.