domingo, 29 de agosto de 2010

Arte como forma de segregação II

Quando falamos em termos como academia, indústria cultural e alguns outros conceitos, devemos ter a cautela de situá-los em seus devidos contextos, de encaixá-los em seu lugar reservado.
Quando falo em Arte como agente de segregação, estou me referindo a uma dimensão específica das sociedades ocidentais humanas. Simplesmente sabemos precisamente tudo quanto foi descoberto acerca das manifestações artísticas desde Lascaux até Damien Hirst. Entretanto, essa História se refere quase que exclusivamente à História Ocidental (tudo aquilo quanto não for considerado de importância para a consolidação do oriente apenas surge como relevante quando tangencia o enredo dos vencedores coadjuvantemente).
Logo, a historiografia se preocupou durante muito tempo em apagar todas as manifestações artísticas que fugissem a um determinado padrão cultural de determinada época, ou simplesmente que não fossem reconhecidas socialmente pelas camadas mais influentes e poderosas das sociedades históricas. A simples preocupação que nós dos séculos XX e XXI temos em criticar e classificar as "baixas" manifestações é apenas um sintoma de que nos foi permitido descer do dogmático altar da arrogância do conhecimento esclarecido e absoluto (mesmo porque cada vez mais se dá conta da importância da dialética).
Contudo, nosso olhar moderno treinado reconhece facilmente as categorias de Arte segundo as clivagens artificiais que a crítica (popular ou não) cria para classificar. Temos então os conceitos de erudito, popular, folclórico, e cada um deles representa uma determinada estima social e, por conseguinte, valores morais. O sonho situacionista da supressão do artista talvez tenha a ver com essas clivagens que a sociedade moderna deixou mais nítidas e, ipso facto, as tornou mais deliberativas e arbitrárias.
Hakim Bey provavelmente se refere à morte da Arte justamente como aquela que a academia vem legitimando ultimamente. Mas justamente o fato de que elite intelectual perdeu os parâmetros artísticos é ao mesmo tempo reflexo e causador de um colapso total, pois a orientação artística da elite é justamente o que legitima ou deslegitima as manifestações culturais dentro da História. Considerar Damien Hirst, que nada mais é uma mercadoria sobre a qual os milionários do cassino global (termo de Cristóvam Buarque) especulam, como sendo o grande expoente da contemporaneidade é simplesmente explicitar que o espetáculo (aqui falo em Debord) se apropriou de todas as possibilidades de exercício do intelecto (e destruiu qualquer capacidade de estímulo à criatividade, fator que para Vaneigem é sine qua non para, mais do que a existência da Arte per se, um sentido para a existência da Arte que remeta à realização pessoal).
No final das contas, temos uma contemplação alienada.



Da Teimosia

Eu acho a teimosia a grande virtude do homem, e a sua contribuição para o processo histórico.
O desrespeito é uma coisa tão bela. Ele é uma roldana sem a qual a máquina dialética simplesmente não faria sentido.
Me falam que é importante respeitar os mais velhos, afinal, um dia o serei também eu. Eu não quero respeitar nada, terei orgulho do desrespeito da minha geração posterior, pois dele e dela nascerá uma nova História.
Me falam que o respeito entre gerações deve ser recíproco. Mas eu não quero ser respeitado pelos mais velhos. Ter que ser tolerado seria simplesmente a chatice maior do mundo.
Afinal de contas, a maior das virtudes humanas é a teimosia.



Canção do Ódio III (deprimido)

Os meus amores são projetos natimortos.
A maior parte deles não passou de dez minutos.
Entre aqueles que passaram desse limite estão os puramente sexuais e também os exclusivamente sexuais. Além dos praticamente sexuais. Uma minoria era geralmente sexual.
E tinha você.
Depois de você qualquer tentativa de estabelecer um relacionamento nos mesmos moldes se torna artificial.
É como se tudo que não dissesse respeito ao teu jeito estivesse fora de qualquer possibilidade de ser considerado.
Você jogou sobre mim a maldição da verdade.
Mas você não existe mais, não existe, não existe, não existe!



Declaração Póstuma do Amor das Segundas-Feiras

você [passa por mim e] me deixa louco
não vem mais não -mas que inferno!, eu me esforço em te achar-, não vem, eu sou de outro -ou quero [não querer/querendo] ser d'outro.
-É claro que eu te escuto! Consciência minha não falha.
Mas você -e/ou eu, nós- insiste(imos) em aparecer-fantasmagorizar-assombrar (belamente). mas é uma surpresa. porque cada vez que você está mais distante de mim [e eu de você] mais fascinado fico com os nossos cumprimentos aperiódicos -em termos, você era o meu amor de segunda-feira, de segunda mão, de segunda categoria. um amor, segundamente.
então você parece melhor vestido, e o seu corpo mais convidativo, e o seu boné mais transado (embora eu o quisesse transando -será que você fica de boné na cama?), e a tua pele mais quente, e a tua barba mais amiga, e a tua boca mais saborosa (com aquele sorriso mais encantador). e é claro, os teus olhos, que são cada vez mais tudo aquilo que eram, só que em dobro. enigmáticos. enigmaticamente olhos de segunda. [olhos de menino, de ingênuo, de certeza, segurança, de amor ou de paixão, olhos multivisuais.]
te gosto de longe. você me cumprimenta no seu estilo espartano. deve estar namorando. alguém menos legal do que eu. a vida a tua. não posso fazer nada: eu gosto de outros. [ou melhor, eu gostaria d'outros.]
te gosto passando. acho que se nós tivéssemos ido para a cama eu não sentiria hoje esse amor de segunda com prólogo, introdução, meio, fim e epílogo, assim bem-acabado (feliz e não-felizmente bem acabado).
se me zombas por querer ou não, só saberia se pudesse retornar ao quebra-cabeça dos teus olhos. o fato é apenas um. segundamente, enigmaticamente, feliz ou não-felizmente. [ou não] que... ainda...
você me deixa louco.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Nada Quase Audível

I
pensando em termos do que viria a ser um nada quase, ou, nada-quase, em seu significado estrito, rejeita tudo que não for absoluto. (veremos de que forma essa leitura confronta e dialoga com a outra.)
aquilo que é nada quase é absolutamente.
absolutamente audível remete àquilo que é categoricamente passível de ser ouvido.
o é em sua forma pura (tem potência) ou efetivada (escutável ou sujeito ao silêncio).

II
quase [passível de ser ouvido]; aquilo que o é quase, não pode, em última análise, sê-lo. portanto, quase audível diz respeito àquilo que é ou absoluta e obrigatoriamente audível ou absolutamente inaudível.
quase-audível representa, portanto, a uma dessas condições.
o nada as nega categoricamente, o que remete simplesmente à impossibilidade de se usar aquelas classificações absolutas.
voltamos novamente, portanto, a considerar aquilo que está no limiar do escutável e do inescutável. leia-se, sua potência.

III
estamos falando, afinal, de uma condição que implica a potência de uma vibração sonora de ser considerada pelos nossos sensores auriculares.
uma proposta de discussão de nome Nada Quase Audível, concluindo, deve sugerir, ao menos, que aquilo que for considerado, o seja com investigação, sem se atribuir juízos absolutos.


Da Arte e sua faceta segregacionista

Meu namorado diz que eu concebo a Arte como forma de segregação. Sem ser desonesto, não posso conceber um tipo de Arte que, em níveis práticos, não o seja ela mesma uma dimensão cuja imprescindibilidade do fator segregador é absolutamente efetiva.
O sonho da supressão do artista, utopia dos situacionistas em que durante certo tempo cri -e ainda cegamente creio fazê-lo-, isto é, a ressignificação (ou dessignificação) do conceito de Arte por meio da emersão de toda individualidade à estima de produtor artístico -afinal, todos são artistas em potencial-, é, para Hakim Bey, uma hipótese tão absurda quanto a hipótese de simplesmente se encarar o fim da Arte assinando seu documento de óbito.
O criador dos conceitos de Terrorismo Poético e Arte-Sabotagem pensa sobretudo em uma realização pessoal (e aqui, corro o risco de diacronismo, me perdoem) onde a experiência da vida é o próprio happening, ou então uma que está relacionada com a convivência em Zonas Autônomas Temporárias (labirintos de ratos nas brechas da máquina social capitalista).
A proposta defendida por Bey, entretanto, também não passa de mais uma daquelas teorias (embora também convicente) faca-e-queijo-na-mão.
Supondo que a Arte ainda exista -contrariando Bey, para quem ela teve fim na rouca gargalhada de desabafo dos dadaístas-, não vejo de que outra maneira eu possa encará-la senão como essencialmente segregacionista.
Se até antes da Idade Moderna não haviam os especialistas que a legitimavam -isto é, os críticos da classe dominante-, antes de tal a Arte ao menos exercia uma função social -do artesão antigo, do cidadão com direitos, do religioso que possui um dom, até assumir o formato de um artesão moderno.
Talvez a questão da Arte tenha se tornado uma grande neurose -daqueles que se esforçaram e ainda se esforçam por delimitá-la- a partir do momento em que ela se tornou democrática, ou simplesmente a partir do momento em que ficaram nítidas as divisões sociais para se pensar em arte-modelo e arte-excêntrica.
Arte é sim uma forma de segregação. Mas também a mais bonita delas.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

turquesa
um surto de bela
de bela beleza
me esmago por ela
-por ela que é bela-
a linha turquesa



as câmeras se desmontaram.
falaram assim, que a maneira revolucionária de filmar está em não filmar. em outras palavras, elas reivindicaram por uma revolução cinematográfica de forma que elas deixassem de ser ferramenta para serem espectadoras de suas próprias vontades.
elas queriam apreender suas rotinas. então, se desmontaram, e o cinema deixou de ser desonesto, porque não podia ser mais nada.

e os homens cortaram seus pulsos, porque não suportaram ver a própria paisagem subverter os papéis, e se tornar cenário, uma parte da vida do cinematografador.
foram em busca de um mundo espetacular, na forma mais fácil de escapar do veneno da pessoalidade.
e a falta de solidão é
i n s u p o r t á v e l .



talvez a vibe não seja tanto mostrar o mal-estar, mas sim a realidade com o mal-estar intrínseco ao (seu) imaginário (real); explicitadas as fraquezas, o mal-estar, cuja iminência será objetivada na experiência do espectador, refletirá a realidade utópica produzida pela ferramenta.
esse "tornar-se objetivo" será o instigar o público automaticamente.
I - um desafio seria o da fidedignidade com o real
II - outro seria a parcimonialidade (aparente, afinal, a parcimonialidade -esse parâmetro baseado em valores- é relativa; a única coisa -além dos fatores extrínsecos a esta análise, como a desonestidade implícita na câmera-, portanto, que é inevitável neste viés das coisas objetivas, é a parcialidade, ao menos, social)
III - o terceiro desafio é instigar o público. tentativas serão feitas com a) o interesse da reflexão e b) o interesse da percepção
IV - talvez o maior desafio seja o de mostrar o mal-estar sem este estigma; simplesmente o de escancarar questões em uma realidade utópica (ao menos social, parcialmente)
estes serão os fundamentos-ideais desta técnica de audiovisualização que busca tornar cognoscíveis, inteligíveis e apreciáveis os cotidianos das vidas modernas.



capivaras

nós odiamos as capivaras porque elas são totalmente passivas e inanimadas em relação às nossas tentativas de estimulá-las.



para Eu que faço Ciências Sociais a realidade nua e crua é belíssima. ela me instiga. para quem não está acostumado a objetivá-la em uma experiência sócio-contemplativa, recomendo esfregá-la na cara. essa realidade pode causar mal-estar, embora eu a admire, e se isto acontece, regozijo. nada mais arrebatadoramente excitante do que o mal-estar dos outros.

domingo, 1 de agosto de 2010

Balada Afônica

Estas foram minhas férias mais irreversíveis.
No sentido e direção mais doentios.
Evoluíram em um vetor exponencial e atingiram níveis supra-perplexos.
Minha literatura foi um manual de que alguma pulsão de morte demoníaca se apossou.
Minhas férias foram um triste. Foram um feliz. Foram um qualquer coisa de sentimentos.
Preocupantes.
Estou com medo.
Algo me quer derrotar quando abraço.
Quando faz frio.
Algo que me chora. Internamente. Como uma hemorragia insistente, porque não se pode ser paulistano e querer ser amante ao mesmo tempo.
A vida está excluída da sociedade do tédio paulistana. Resta uma balada sem som, uma polifonia afônica.
Tenho a impressão de ter sido vítima de um trote do meu inconsciente, este responsável por testar todas as teorias por mim admitidas.
Resta a metáfora.
Insistentes, as senhoras sentadas em estrelas riem, pilheriam, com tanto, mas com tanto sarcasmo e tanto afinco que fazem (até) faltar o sono a São Pedro, que tem uma overdose de pó-de-guaraná -ou melhor, em termos paulistanos, de Red Bull- para manter o serviço otimizado. É exatamente neste instante que as estrelas decidem deixar a cidade.


O Amor Irreversível V

O amor da porta das manhãs é clandestino. É definitivo seu batom de mentira com que se pinta, a sombra que passa delineia sua própria sombra na rua, contra a luz dos postes, contra a luz da Lua. O amor da porta das manhãs não quer ser verdadeiro, não se importa com nada que possa dizer respeito a fidelidade particular, compromissos extra-instantâneos e outras pieguices da pré-modernidade: ele espera que simplesmente o efeito da função que proponho no meu marketing pessoal alcance o limite esperado. Nunca é, e é por isso que as empresas de Serviço de Atendimento ao Consumidor já estão mais ricas do que as de produtos básicos (como as indústrias do sexo, da felicidade e do poder).
Quando o eu-líquido escorregou pelos degraus imundos do tão límpido shopping center, não pensei em casamento, ou nenhum outro tipo de contrato satânico. O requinte diabólico estava, pelo contrário, na desonra do casamento, que se tornou uma casamentira. Sei que na cabine do banheiro, não o prazer da aventura, mas o do novo, óbvio, nos tomou imediatamente, pois ao ponto de ônibus contíguo à galeria nos direcionamos: o meio que encontramos para tornar mais confortável esse amor irreversível.
Complacente me ofereceu suco, carambola, conversas fenomenalmente acríticas a respeito de espiritualidade -ou melhor, espiritualismo, porque o sufixo me remete a doença-, mas isso tudo era apenas acessório: estávamos ali -eu estava ali, em sua casa- apenas pelo sexo.
Transamos como eu jamais faria com outra pessoa, o que é bom. É sinal de que eu pelo menos consigo identificar e distinguir atividades e condutas pontuais no sexo dentro do universo de relações que eu já tive. Esta, aliás, está na lista das irreversíveis.
No ônibus disse qualquer coisa de engraçado ao cobrador. Não sei se propositalmente ou não, o fato é que ele riu e respondeu algo até que simpático, ainda que ininteligível. Pensei baixo a respeito dos discursos dos amigos -que são meus psicólogos, embora não sejam formados nem por uma faculdade federal- que comigo tentaram tornar cognoscíveis as minhas noções a respeito das questões que envolvem a preocupação que a noite irreversível tentara solver.
A noite sem estrelas da cidade por um instante pareceu perigosa. Mas obviamente não passa de ilusão. Afinal, o amor verdadeiro me espera na porta das manhãs.


st (incrivelmente)

Até sexo como um paulistano ele faz.


História das Brincadeiras

Sobre o móvel de imbuia, no qual se encontravam um cofre noventista do Garfield (dentro do qual os indivíduos se amoedavam), um pote cilíndrico com desenho de abelha (dentro do qual funcionava uma dimensão composta de cereais, bactérias, déficit de oxigênio e um breu quase entediante), uma flanela azul, esquecida e manchada (sobre a qual multidões de bactérias e protozoários -talvez fungos- lutavam para a sobrevivência e para o domínio sobre os restos -de qualquer coisa que reste- do móvel, da mesa e da pia, compilados), e também três outros potes metálicos encostados no canto (dentro de um dos quais havia um saco de pipoca -que poderia ser descoberto segundo uma conta matemática fabulosa) acumulando poeira do lado de fora e tétano dentro de si mesmos, duas formigas apostavam corrida.
Na prática, porque na teoria elas estavam fazendo algo que apenas diz respeito à bio-sociologia.
-Eu duvido que você chegue antes de mim!
-Que pena, porque eu que vou chegar!
Estavam em um embate desgraçado.
A cozinha estava vazia, mas a luz havia sido esquecida acesa. Os objetos sobre o móvel de imbuia não se preocupavam em criar vida, entretanto.
-Olha só, a malhada vai ganhar! -diria o Garfield banqueiro se pudesse.
-Vai nada, eu aposto é na retinta! -diria a abelha-silo.
Mas as formigas estavam apenas correndo rumo a alguma coisa que lhes dissesse respeito segundo o diagnóstico do zoólogo.
Mas eu insisto que estavam apostando corrida.
-Você está comendo poeira!
-Você vai ver só! Vou falar que você é uma formiga preguiçosa!
-Isso só se você conseguir chegar até lá! -e esta soltaria uma gargalhada que até os ímãs de geladeira estremeceriam -e olha que ímã de geladeira nunca sente calafrio.
Mas a geladeira continuava no ritmo monótono -e assustador ao mesmo tempo- de sempre. Enfim as duas chegavam ao limite imposto pelo móvel.
-Não falei que era a retinta?
-Tudo bem, o dono do dinheiro sou eu mesmo!
Mas as formigas desafiam a gravidade, e elas subiram rumo ao céu, que é o teto.
-Eu ainda vou te alcançar!
-Estou só vendo!
Algum barulho de porta.
Foi apenas impressão.
As coisas continuavam intactas. Na teoria.
Porque na prática, eu insisto, elas acompanhavam a acirrada competição entre a formiga malhada e a retinta, preocupadas apenas em serem tudo, menos um inseto.