Sistematizarei este balanço diferentemente do precedente. Pra começar, tem um prólogo!
Prólogo
Esse primeiro texto eu o escrevi em 2009, na segunda metade do ano. Acho que demorei uns três ou quatro meses para concebê-lo, já que eu não me debrucei sobre ele de forma sistemática, mas apenas ocasional. Ainda assim o considero um dos mais bem acabados que eu já fiz.
Não tive coragem de publicá-lo pela sua extensão e pelo caráter extremamente subjetivo do texto -ele é um pouco autobiográfico. Mas a estética me agrada muito. Não sei se seria capaz hoje de reescrevê-lo. Mas acho que ele representa muito bem como uma crônica os meus dezessete anos.
Até agora não achei um título satisfatório.
Semelhança com Oswald de Andrade não é mera coincidência.
En-fim.
s/t
ou
Admnistrador de Vícios
Vida e Peste
1.Prelúdio
-Se o metrô desligasse meia noite, não haveria toda essa folga!
A lógica só pode ser um instrumento divino, pela imperfeição terrena.
Por entre divagações e divulgações similares, passava, até experimentar as duas longas pernas metálicas e elétricas, sra. Eros. Outra administradora de vícios, preocupada com o horário que queria ter, quando enfim tudo beijaria o que contempla.
-Existem sujeitos bacanas.
Suspirava. A noite fora. E amanhã iria novamente.
2.Da meia-noite
Pronto. Era a presa.
-Algumas notas podem não parecer tão rápidas.
Seria isto?
-Notas que perderam o som.
Era sua imaginação trabalhando. Mas não importava.
-Bastet ou Foucaultlino?
Era o nome de seu filho em questão. Mas ainda não era tão tarde, e o passeio foi desviado. Como em todos os âmbitos, era a hora de investir. Sra. Eros e sua bolsa de valores morais seguiam.
-Finalmente descobrirei se existe de fato vida pós-Clínicas.
Não. Não permitiria mais a si sonhar. Queria ainda desperdiçar sua estética cerebral.
-Oi.
Aquele inferno chamado espera.
-Oi.
-Err... Qual é a sua operadora?
Esboçou um sonho.
-Depois da meia-noite, todo escravo vira um ligador.
3.Platonismo
Durante a aula de Psicologia Prática Relacionada aos Problemas Interpessoais (PPRPI), vegetava. Seus amigos até lhe contavam.
-'Cê pode tentar. Não! 'Cê vai até conseguir.
Não era o desafio, era o tédio. Arriscou-se ainda assim, e lá era. Todavia, um ser permanecível. E vegetante de tantos nutrientes.
-A esse fenômeno daremos o nome de Sabedoria Absoluta Pessoal e Democrática, que chamaremos de SAPD.
Também odiava as pessoas estilo stand up, feito a professora parcial, mas o importante era a ternura d'outro.
-Depois da meia-noite, todo escravo vira um ligador.
Risos.
-Como você se chama?
-É Augusto.
-Belo nome.
Pieguices e burocracia.
-E o teu?
-É Ynglid.
-Como?
-Ynglid. Tipo Ingrid, mas com L no lugar do R.
Risos.
-Inusitado.
Cada palavra soava mais impossível, mas o sujeito era de uma autoridade tão incrivelmente vaticinante que sra. Eros lhe desabou.
-A arbitrariedade da SAPD se dá com a coerção psicológica.
Abandonou a lição.
4.Escalpelar
Mas, como é sempre para os ateus, quem dita as regras é o corredor.
Ynglid era apenas uma plebéia, não tinha direito ao carnaval dos grandes. Era ali, na diagonalidade do seu espaço, apenas a porca da seção inferior da infinita máquina social.
-Sociabilismo! Doença!
Mas tapava os ouvidos de alienar.
-Destruir o dinheiro! Destruir o dinheiro!
A crise era intra; exoesqueleticamente, tudo indicava normalidade; o índice geral de proteínas mantinha-se, como as manhãs.
Certa folga um sujeito aleatoriamente chegou-lhe.
-A moda para o inverno agora é o convívio.
Não lhe deu muita bola.
-Poético.
-Não! Real!
Não esperava a réplica. Quando se dera conta da dimensão da filosofia, o inconfidente já zarpara, estava à sombra de alguma maravilha arquitetônica.
Sra. Eros olhou para fora, a procurá-lo, e só achou o que acharia naquele lugar; faraonismos exclusivistas.
Apoiou a cabeça sobre os braços, no jazz.
Dormiu tarde.
5.Anti-gravitacional
Sobrancelhava pra tudo. Depois de uma fase percevejante resolvera nascer, e desconfiava dos lados, dos ângulos, das linhas, das bissetrizes e todas as Beatrizes que lhe emboscava.
Com os amigos, era uma lixa.
-Comida de tiozão não rola.
E eles tentavam engolir, mas não ajudava.
-Você lembra lembra lembra lembra?
-Por que eu ainda insisto em me afirmar imbecil saindo convosco?
E o mal-estar então coloria além das placas de queratina. Mas os pobres pobres não desistiam de tentar calmar-lhe.
Quase-sucesso. Extraíram-lhe, aquele dia, um mol de civilidade. A calmaria, contudo, estatuetava-se em platonismo.
-Talvez até guarde uma ternura secreta pelo meu pai. Mais cenoura?
-Não, obrigado. Como assim, Ynglid?
Eram brisas de aspirantes a psicólogos, com seqüelas de lisergia física e artificial.
-Não sei. É um sentimento azul.
E a trupe gargarejava de solidariedade.
6.Selvageria
Como tendia a sexualizar tudo. Carecia demais. Pensava amplificado, e isso já lhe causara tensões. Mas sua linha de morte era uma linha de trem, e vocês sabem como isto funciona pós-revolução industrial.
-Que eu vou com tanta intensidade que lhe arranco a língua a dentada.
O susto era dela, dele, de todas e todos. Se apaixonava, e depois pensava com tanta intensidade que abria os olhos e já estava no metrô.
-Como a vida tem sido dura.
Clichezismos e lágrimas crocodilavam pelas suas curvas satanistas e salmão. Era um muro desabando.
Tijolos de abstração.
7.Ocorrência
Sra. Eros era errante corpo dentre aquela gaiola chamada parque. Suas banhas sorvetantes choravam litros de suor agridoce.
Na sua cabeça um foguetório; que ela nadava em banheiras de uma geléia brancacenta e amarga, vinda de vários televisores boa-pinta, de bons pintos e muito dinheiro na conta. Dissecando a Lua, quase um acidente. Ou melhor, um acidente.
-Uff! Caramba. Perdão, moço!
-Porra, presta mais atenção por onde anda, véi!
-Desculpa, não vai acontecer de novo.
No que me apóio? Não havia nada mais obrigatório naquele sujeito do que a sua semelhança com o outro.
-Depois da meia-noite, todo escravo vira um ligador.
Flashes plasmáticos e plasmas traumáticos.
-Ei. Eu... eu, te conheço?
-Hein? 'Cê 'tá é maluca!
-Guto?
-Que mané, Guto! Vá dormir, sua louca.
Contrariando a sugestão do quase-quebro-um-braço daquela noite preta e engaiolada, sra. Eros esforçou-se para continuar acordada.
Na manhã seguinte, era uma equação disposta.
8.Discussão
Rebanho subterrâneo.
Um sujeito de cima, do céu, aponta pra baixo e, randomicamente, escolhe a sra. Eros.
-Desce agora e rapa aquela tia.
O pobre pobrezinho fluidamente escorre pela plataforma e domina todo o pasto. É de uma geografia ímpar, sua sensibilidade o orienta até a bolsa da coadjuvante.
-Ei! Trombadinha! Pega ladrão!
Registrando o Boleto de Ocasionismos, era um humano áspero perdido entre a lã onírica.
-Escuta! Se vocês sabem que aqui é onde tem mais trombadinha, por que não aumentam a fiscalização?
-Veja bem, minha senhora, a gente não adivinha o momento e o lugar exato onde um furto vai ocorrer.
-Mas vocês sabem que ali é um lugar perigoso, por que insistem em abandoná-lo?
-Olha, minha senhora, nós não abandonamos o local, a senhora está exaltada...
Queria, como todos os demais administradores de vícios com cérebros preparados para o mercado de trabalho, ter toda a razão.
-Abandonaram sim!
Silêncio.
-E eu não estou exaltada.
Em casa era inconsolável. O ovomaltine ia ficar pra a próxima semana.
9.Tentativa
-Faz tempo que eu não falo com o Senhor.
-Você se comunica com Ele?
Só podia ser balela.
10.Cidadania
Seus amigos curupiravam no boteco e ela com sua indignada história apenas era.
Luzes de emergência.
-Porra, presta mais atenção por onde anda, véi!
Outros olhos e armadilhas.
-A senhora está exaltada!
Recostava-se na imbuia, imbuída em instantes, e percevejava o silêncio. Suas companhias, no entanto, cervejavam em decibéis mil.
-Um brinde ao último semestre!
-Viva!
E vivavam.
Para sra. Eros, cada dia era um romance.
Depois que se responsabilizara pelo cumprimento masoquista de tarefas desnecessariamente imprescindíveis, seu dia passou a contar com mais horas, toda hora um amor.
Sua respiração era uma mixórdia de termos como dialética, academicismo, masdeísmo, látex e barbárie. Cada humor é um quilômetro e cada quilômetro são mil bipolares.
E o sono era só uma descarga.
11.Anunciação
É claro que não era fada, porque ela não existe. Tampouco deus. Esquizofrenia, talvez. Sonho, então. Alucinação pelo estresse. Só não podia ser lisergia.
Mas era. Pelo menos pareceu ser.
-Viva!
-Como?
-Sofra, e então viva!
-Do que 'cê 'tá falando?
-Você só pode saber sofrendo!
Talvez fosse Cristo.
-Sofrendo? Como assim?
-A felicidade não é o objetivo, mas sim a estrada!
-Kafka? É você?
-O limite da felicidade, é a morte!
-Alô!? C-como?
-O limite da felicidade, minha cara, é a morte!
-Q-quê? Kafka?
Mas não acreditava em fantasmas.
12.Adendo
Mas não duvidou desse.
13.Procura
E o sono era uma só descarga. Relampiava de exaustão, e logo a grande nuvem ameixante cedia.
Luzes de emergência.
Deixara de sobrancelhar, e agora claraboiava nas ruas.
Elegia uma cena e sonhava em tê-la, guardada num pote sufocado, exposta na estante, no instante.
Alguém lhe dissera para deixar os zebrismos em um tapperware hermeticamente distante.
Sra. Eros tentava. Não! Ela até conseguia.
-Você eu me esqueço.
E que vantagem leva Maria nisso?
14.Achado
Mas cada poça era um açude.
Cada rua era um sulco.
E estudava as coisas nas escalas mais malucas.
E já chegara no ponto onde a rua é a casa, quando a noite é o mundo.
-Acho que vou procurar uma Psicóloga.
Porque não podia procurar a si.
Mas achava. Era um poço de poesia, de um kafkianismo ímpar e de uma auto-negação par.
E culpava a aparição.
-Maldição! Aquilo só podia ser coisa da minha cabeça!
Mas era.
-Eu só posso 'tá maluca.
E ia se imaginando presa em um número irracional, enquanto mutilava chicletante as suas unhas.
15.Aflição
E sonhou em ser uma estátua.
Imaginou a conveniência do desdispêndio e da corrosão bostal das pombas, do terror escatófago das bactérias filomérdeas, do postalismo de atentados, da tentação das câmeras, da poluição celestial e da impotência sentimental.
Mas o pior, o que lhe causava a maior aflição, era a unha tapada.
Vejam só, unha tapada!
Unha tapada.
-Então, Ynglid, o que você tem pra me contar?
Aquela voz cálida e gélida e agudo-grave e fétida e despeculiar.
-Eu ouvi um fantasma, ou sei lá o quê! Eu sei que não foi deus porque deus não existe, mas não sei o que pode ter sido. Só sei que isso mudou minha vida... Err... Eu fiquei assustada, resolvi procurar ajuda, mas eu 'tô vendo a vida de outro jeito agora e... Err... Espero que isso ajude, porque eu não gostaria que isso acontecesse de novo e... De novo, porque eu fiquei assustada, e eu não sei o que pode ter acontecido. Quer dizer, não sei o que pode ser sido aquilo, né? Por isso que eu estou aqui, pelo... Pra procurar ajuda, mesmo, queria alguém especializado, né?
Desenredava com letras maiúsculas de criança.
E a psicóloga classificou como resistência à terapia, mas sra. Eros não pisou mais naquele consultório durante bons cometas.
E voltou a fumar.
16.Ligação
-Alô!
-Alô! Almeida!?
-Quem?
-Almeida? É do Almeida?
-Não, foi engano.
E sentava exausta de tédio, feito alegoria machadiana, lasciva e comercial, embora ninguém a encontrasse. O mundo era uma esfera abandonada no universo, esperando apenas ser atingida por um taco de golfe enorme.
Seu suspiro carbônico era um convite à náusea, desmeninava-se a cada tragada.
-Eu não sou maluca.
Enormemente, sua imagem no espelho contorcia-se de risos a juro, endividando sra. Eros de superar-se.
-Amar é uma overdose de azul.
Não entendia como aqueles morfemas sinestésicos saíam de sua garganta alicerçando orações tão estúpidas e insuportavelmente floridas.
Tocava.
-Alô!
-Alô! Almeida!?
Quantos séculos esperaríamos pelo taco de golfe?
17.Lavanderia
Porque o mar era um vômito limpo.
Na viagem era uma esperança, no passeio uma angústia.
Olhava pra todo aquele brilho e morria.
-Porque eu sou apenas uma plebéia.
O acesso que àquilo tudo teria não passaria do mero masturbatório. Pelo menos era nisso que pesadelava, e o dizia vida, e o maldizia vida.
Cachoeirava-se de céus cristalinos e infláveis. Enqüanto tudo à sua volta sorria, desdentava-se de mutilar, mangueirava seu pranto radialmente.
Enfim, pedrachutava, mas não perdeu a culinária local.
Luzes de emergência.
Não houve de volta à cidade.
18.Isolamento
Um tant'antes d'acabar a excursão, zebrou-se em uma árvore, solitária e minhocante.
As velhas haviam ido à cidade chocolatear o mundo com as suas unhas postiças, tingindo de azul-petróleo o resto do que sobrava de calor. Mas sra. Eros não queria tanto vestir uma alegria postiça, e zebrava-se a dois metros do inferno.
-Viva!
-Você de novo?
-Sofra, e então viva!
-Escuta, eu não sou maluca, sai daqui da minha vida, da minha árvore, da minha excursão...
-Calma, meu amigo, eu tenho várias notícias pra te dar.
-Em primeiro lugar, eu sou mulher! Em segundo, você não tem nada pra me contar porque você não existe!
-Então... A primeira diz respeito ao seu sexo.
Nesse instante, sra. Eros se despede de seu galho, e mergulha ao sul.
19.Do acordar
Sr. Eros levanta-se sujo de petróleo, panoramiza, pirâmides e prédios avulsos, maravilhas da genética, cores conhecidas que não pagaram a conta do analista, velhos números que conquistaram a anistia, Raoul Vaneigem e construções flutuantes de Duchamp, De Chirico, Do Campo, deduzidas e dedadas hospitalares, romances e cavaleiros, romãs e covinhas, menestréis e trovas pornocálidas, sujeitos tulipantes e escravidão das flores, escravidão das cores, tons de tabaco, cafezais trigueiros e muito Van Gogh, passeando entre as mangas, os maracujás e as jabuticabas, muitos janeiros e agostos, talvez outubros, cachaça que jorrava das picas, puteiros, palhaços discutindo Marx, caralhos voadores, céu de azia, carros subcelestiais, experimentalismos etílicos, acarajés no céu, sociologia da química espacial e curatoria especulativa, retórica mágica e feitiçaria láctea, intolerância a rã, espadas de latão, chaves-de-fenda de Cabo Verde, MDF, PVC, o Partido Canhoto de esquerda, hippies e impressoras suvinílicas do tamanho de um terremoto. Um pouco acima, alguém em um trono de aipim e vime. Conclusões precípites.
-Eu 'tô fudido.
20.Do garçom
Lhe chega um garçom e oferece um beijinho.
-Escuta! Que lugar é esse?
-Estamos no Céu. Vai querer um beijinho ou não?
-Ando meio sem fome.
-Quer falar com alguém?
-Seu superior.
-Siga ali.
Apontou um escorregador aquático.
-Muito obrigada.
O garçom sobrancelhou-se.
-Oh! Perdão, ainda não estou muito acostumado com minha mudança de sexo.
-Ah! Normal, troquei de sexo há dois dias, às vezes me confundo também.
-Estou indo.
-Boa sorte!
-Obrigado.
Ynglid Eros, que agora pensava em trocar de nome, já esboçava um salto no tobogã, então periquitou-lhe novamente o garçom.
-Mas tem uma coisa!
-Que é?
-Meu superior pode te pedir um beijão.
21.Do rei
Pernambucodonosor era o Estado daquele reino. Era até ele que sr. Eros deveria chegar para saber de todo aquele atum.
Despiscinou-se e vagou em busca de um cheiro tutti-frutti. Eram ecléticos os assuntos nas vias.
-Sempre bate uma crise à tardinha.
-Isso é tão semana passada...
Pestanava a cada saco de café. Era um sinal gráfico. E os ruídos continuavam.
-Qual é o seu trabalho?
-Eu detenho pessoas.
Tanta pizza.
-Você cheira a manjericão.
Aulas de inglês.
-You have a hair, don't you?
Particularidades mil. Virgulava entre consertos concertantes.
-Meu pai é taxista.
-Amor, pega um tijolo?
-Eu tenho um amigo que tomou chá-de-fita e 'tá vestido de palhaço até hoje!
-É, vó! Cada um no seu quadrado!
Eram tantas cenas convexas que sua desquebrada cabeça concavava no solo em busca de novos compartimentos, eram galerias lotadas, sapateiras e gaveteiras tão fortemente agregadas que era um tanto mais e novo universo explodia. Lhe sumiam as tintas dos olhos.
-Por que eu mudei tanto?
E rumava a tal Pernambucodonosor.
22.Da loucura
Sequer entendia por que já se desengavetara tanto, mas era parte de tudo aquilo, sonho que aquela fada maluca, que ela não existe, certa estrela lhe argüiu.
-Eu vi, eu vi! O amor é o meu país!
E ia tijolando vazios, em busca do seu.
Aquilo que era vida.
23.Movimento
-Viva!
-Vai tomar no cu!
-Sofra, e então viva!
Ynglid Eros tirou de dentro das urtigas uma pistola, e assassinou seu fantasma com circunstância de pompoarismo. Poupou a arma abandonando-a em um movimento retilíneo uniforme, variado e bem longe, mais campos urtigados.
-Mas já não era sem tempo!
24.Notícias
Um outro garçom lhe chegou.
-Ficaste sabendo, senhor? Nosso brigadeiríssimo chefe Estratífico Pernambucodonosor Terceiro morreu, de operetas amendoístas.
Era de sr. Eros uma peregrinação caçambada.
-Puta que pariu!
Era apenas uma pejoração.
Não tinha tanta importância naquele lugar.
Como possível, se toda essência e doce era capaz de algodoar qualquer ternura?
25.A democracia
As vias eram uma só descarga, haviam naus que escapavam de medo, caravelas apagadas e vários guris e garis comemorando e criando enormes labaredas com suas vassouras.
-Somos um povo livre!
Ninguém nunca ia pensar que o governador do Céu seria deposto por uma revolução anafrodita, sr. Eros soluçava um gelo de pedra, ou uma pedra de gelo.
-Ninguém vai acreditar em mim quando eu contar o que vi aqui.
Mas já não sabia se vazava. Se acostumara tanto com a sua recém-calculada peregrinação até o soberano, aquele lugar tão redondo, com ciclovias, urbanismo gay e vitrolas-de-esquina. Viraram para si feito uma família.
Um alto-falante pensou.
-Decretamos esta nação como laica, tolerante a todas as crenças e descrenças de seus cidadãos. Meus amigos, o Céu é livre!
Um grito ecoou por entre todas aquelas nuvens roxas, cinzas e vermelhas.
O céu era livre.
26.Vida
Esquiatava-se todas as manhãs.
Era um gelo quando quisesse, a lua eram duas palmas, e toda a noite tinha a matinê no Cinema Olímpia. Sim, porque atrás da esquina estava o Olimpo, o futuro e a manufatura de cerveja.
Tinha casinha, parceiros, parceiras, wireless, comodidade e tolerância a lactose. E tudo isso sem moeda alguma, o Estado fora abolido pelos anafroditas. A demografia era constante, nunca havia problemas populacionais, a questão geográfica era vaginal. Quando alguém morria no Céu, e ia para o cemitério do Araçá, outro vinha -escolhido ao acaso em um lugar avulso, tipo o banheiro- e supria o pódio.
E, o melhor, quando você quisesse ser uma estátua, era só ir ali no Congelador Público, do lado dos Correios, e saudar a tiazinha da Cantina.
27.Do teste
E foi com a tiazinha da cantina que sr. Eros descobriu sua verdadeira vocação.
Era, naquela bola azul e verdejantemente podre, senhor de sua tragédia, num serviço de merda, numa firma que o explorava (os anafroditas haviam abolido a mais-valia), numa faculdade que dele demandava newtons de paciência e cafeína. No Céu tinha liberdade plena e assimétrica para traçar os seus limites, as suas buscas, e os seus próprios chás-gelados.
-Ei! Que ótimo! Como faz isso?
Pacientava-se morfinante, e seu suspiro tóxico significava "eu vou ter que ensinar mais um", mas no fundo era aquela a graça de se estar de no Céu, independente do sistema político.
Revirava.
-Meu filho, tudo começa com a virtude. Você tem virtude?
-N-não sei.
-Vamos descobrir.
Pegou um tijolo que estava sob a pia e o fez vir ao chão, ceramizando estrelas.
-O que você vê?
-Cacos.
Vomitou mais um suspiro.
-Apenas cacos?
Olhou pra velha.
-Ué! Apenas cacos!
Furou-lhe o rosto com seu globo a laser.
-Tem certeza?
Sr. Eros olhou mais uma vez para sua alma pedaçada em despedaços cor-de-carne. Então, um prazer súbito lhe arrancou a eletricidade dos órgãos e um estalo navegou em seu sangue em um segundo na velocidade da luz. Suas retinas piscaram natalinamente.
-Eu vejo... Um prato a menos.
A velha então sorriu.
28.Descoberta
Era, em pouco tempo, oficial de massas, em um distrito chamado Pasta. Olimpiava-se em nuvens de melodia, trabalhava no barulho mais calado e gasoso horas a fios de óleo, e de ovos, todos os dentes, todas as bocas, todos as pastas.
Farelava até o tardecer, quando flutuava até a noite, em um jet lag desconfuso e imaginário, vislumbrando aquela bacante negra, que era seu plano sonhado de cada dia, sua vida perfeita, o Céu, sob o império dos anafroditas.
Seus estudos in loco eram travelling abroad, chuva de farinha e ventanias de pedidos; cada prato era um vórtice. A alface era o mundo onde clorofilavam os amigos, as paixões, o tesão.
Sr. Eros era feliz e sabia.
29.Cinema
Tensão. Naus caravelantes. Cervejas nacionais. Explosões rádio-passivas e violinantes. Semiótica camoniana e outras piadas abortadas. Gramática pederasta e perversão extra-cristã, resistência anafrodita. Auto-felação.
-Eu acho que tenho bastante sorte.
A filosofia era fácil como um pé-de-cabra.
-Se eu fosse um buraco, provavelmente me preocuparia menos.
A filosofia era fácil como o inverno.
-Então eu certamente tenho bastante sorte mesmo.
30.Intermezzo
Ynglid trocou de nome. Fez a festa. Preparou os robalos. Sobrou sozinho na cozinha. Olhou pro canto e ladrou uma metáfora. De um canhão saiu uma lata. Cancioneiro obituário atualizado.
31.Nota de falecimento
O queridíssimo Róbson Eros, oficial de massas, do distrito de Pasta, Céu, vulgarmente conhecido como senhorita Ynglid Eros, estudante de psicologia e teleoperadora, latino-americana, Terra, foi atropelado por quinhentos gramas de ervilha, no dia de sua promoção para o cargo de Celebrista Oficial das Lêndeas Anafroditas.
32.Ontem
No cemitério do Araçá, era uma só alegria.
-Ah! Que bom! Verei minha família, meus tios, amigos, professores, colegas, o Donizete...
Exultava-se de tanta folia guarda-chuvante.
-Imagina só quando eu contar pr'eles tud'o que aconteceu!
Com um precário pára-quedas teleguiado dirigia-se a um lugar pouco visitado.
Quando desceu encontrou anjos, estátuas majestosas, cheiro de primaveras e árvores floridas e ensolaradas, cujo néctar atraía certa fauna voadora insetívora e grande contigente de artrópodes. Gatos viravam as pequenas esquinas, donde vez ou outra surpreendia um faxineiro.
Sr. Eros soltou um suspiro sorridente e satisfarto de porra:
-E eu que pensava que era assim o céu.
O céu era muito mais legal que aquele parque, o qual alcunham cemitério.
33.Eletricidade
Pensou em perguntar-lhe qualquer coisa, só pra saber se estava vivo.
-Ô camarada!
O sujeito olhou.
-Tem aí as horas?
-É nove e vinte e cinco.
-Valeu, irmão! Bom dia!
-Disponha.
Virou as costas e deu um salto de felicidade tão grande quanto o mausoléu dos Matarazzo.
Não se conteve, precisava de um pouco de preocupação terrena também.
A primeira, a saber, foi a de como voltar pra casa.
A segunda era o jeito de explicar a sexual e tão repentina troca. Sim, porque ainda era senhor.
34.Apelido
Na porta do cemitério uma criança pivetava certos trocos.
-Ei! Moleque! Sabe quem eu sou?
Já exausto pela sua atividade matinal de esmolar, farelar, apanhar e cheirar cola, impetava encapetamentos o garoto, mas sua fome, sua obrigação, era maior do que sua paciência.
-Quem é, tio?
-O senhor Oficial de Massas de Pasta! Grã-Pasta! Lugar para poucos!
Sr. Róbson Eros, outrora Ynglid, moça escalafobética e desvaginista, agora orgulhava-se da fotografia masculina.
Tem coisas que nem Freud explica.
-Como assim, tio?
-Eu era chef.
-Chefe de quem, tio?
-Chef de cozinha.
-E cozinha tem chefe, tio?
-Eu não sou seu tio.
E o pobre pobre ficou sem o trocado das nove e meia.
35.Intervencionismo involuntário
Pulou a catraca. Vieram uns quinhentos.
-Ei, ei, ei, amigo. Onde 'cê pensa que vai? Volta aqui!
A carteirada não funcionaria.
-Sou Oficial de Pasta, vim do Céu, o pára-quedas me deixou aqui no cemitério...
Nem terminou o texto, escoltavam-lhe.
-Vixe! Esse aí tomou um dos bons.
-A gente tem é cara de palhaço, né?
-É o quinto só hoje. Deve ser trote, estudante de teatro, sei lá!
Intervenções urbanas são fenômenos característicos da pequeno-burguesia em bairros ricos do Centro-Sul.
36.Amizade
Subiu as escadas do metrô.
-Ei, amigo! Me dá um troco, eu vim do Céu e lá eles não usam dinheiro.
As meninas umbigavam debochantes, os rapazes ignoravam com narigadas de desprezo.
Mudança de tática.
-Putz, velho! Eu pensei que tivesse o dinheiro da passagem, mas eu calculei mal e...
-Ei, camarada!
Era o responsável pelo pivete.
-Aqui a área é nossa, a gente precisa comer, não enche mais o saco.
Desceu novamente as escadas e foi pedir lá embaixo.
37.Prostituição visual
Mas ainda catracava de esperança.
Bem vestido, uns tons groselhavam, com notas tabacantes de restos de bacantes sortidas, avulsas e randômicas pela calça, e bochechas empinadas, gola xadrez.
Era feito uma árvore de lembranças, incrivelmente disposta, como se tivesse dormido e o céu tivesse passado por uma revolução anafrodita.
E nem demorou muito, uma velha lhe deu uns trocos. E deu muitos trocos. Um tanto mais e dava pra comprar um Bilhete Único.
-Eu não sou puto, tia.
Em frente a eles, zombou-lhes a sina, os funcionários do metrô.
38.Visitado
Mas era um olhar só.
Era suas roupas anafroditas, seu corpo simetricamente apolíneo, sua boca dionisiacamente afrodisiaca, algum quê de engolir.
Arrepios à flor da imagem.
39.Do inferno
Mas nada podia ser mais diferente, nesse esterco povoado que chamam de Brasil.
No metrô os teventes piscavam ao nada, bando de desencontrados oculares, frota de passageiros rumando ao cálice mortífero de suas vidas, sobre uma minhoca metálica e magnética, da qual nada sabiam além da tarifa e do serviço, pessoas precisando dos néctares e alucinógenos sociais, pessoas hipnotizadas por uma caixa, esticados os olhos até a palma ótica das fibras, pessoas situadas no limite de convergência entre o saber tecnológico e a novela tectônica, pessoas situadas pela geografia dos mapas metropolitanos, pessoas que não conheciam o Céu, nem os anafroditas, nem as jabuticabas.
Pessoas sem amor, e sr. Eros as deprimiu durante um segundo gelado.
40.Pausa
Aceleração negativa. As duas longas pernas metálicas e magnéticas agulharam a minhoca cardíaca.
-Atenção, senhores passageiros. Há um assassino a bordo!
Nossa, que grave falta.
-Mas não há motivo para pânico, o problema já está em vias de ser resolvido. O metrô agradece a compreensão.
Da caverna de concreto surgiram vultos apagados, silhuetas que eram pesadelos, que forçaram a porta do vagão de Sr. Eros. Este, capturado.
-Puta que pariu!
Era um sortudo ou um azarado.
Melhor os dois.
41.Sob grilos
Gritos de protestante, de subjugado lumpemproletário.
-Ei! Senhor! Senhor!
Ofegante, sufocado, transportado em uma velocidade judiante.
-Que eu fiz agora?
Trancado numa sala escura. Grilhões.
-De que tamanho é este metrô?
Sob trilhos, só sr. Eros e sua disposição recém-grilada, prestes a grelhar-se os miolos, a porta desapartou-lhe.
-Senhor Camilo?
-Eu me chamo Róbson.
-Pode ser. Ocupação?
-Antes de trocar de sexo, era registrado como Ynglid Eros na Teí Telemarketing, também estudante de Psicologia pela Universidade Metropolitana de Psicociências. Depois fui para o Céu, hoje me chamo Róbson Eros e fui aluno de Lis, cantineira de Pasta, até a minha promoção de Celebrista Oficial das Lêndeas do Partido.
Um saco repetir as mesmas coisas. No céu as pessoas não dão tanta satisfação da vida. A Terra é um lugar para desapontados.
-Não entendi nada do que você falou. Dá pra repetir?
Pensando bem, no céu não tem metrô.
-Senhor. Por favor, me chame de Senhor.
Mas arrogância não era uma boa opção naquele instante. O outro sobrancelhou-se.
-Me chamo Róbson. 'Tava voltando pra casa. Trabalho de chef de cozinha num restaurante lá do Tatuapé, onde moro.
Pragmatismo. Ainda não entendia do rapto.
-Por que vocês querem me pegar?
-Tem documento aí?
-Esqueci antes de sair de casa.
-O motivo de sua captura é o fato de nós termos te confundido com um traficante que estaria no trem. Mas ele fala apenas espanhol. Você deu azar, ele 'tava vestido exatamente igual a você, mas já percebemos que o seu rosto difere bastante do dele.
-Err... Jura?
-Só um instante.
Tirou uma folha do bolso e mostrou uma foto do traficante, a que rodava por aí com a legenda de "Procurado", destacando que ele estava de fato vestido igual ao sr. Eros.
O interrogador abriu a porta e disse que sr. Eros saísse, enqüanto atendia seu celular.
43.Campainha
Sr. Eros então percebeu que as pessoas só olhavam pra ele por causa de suas roupas.
44.Crise
Ponteiros apontavam o final da tarde. Desistiu do Tatuapé. Queria um chá-gelado. Não queria a vida de antes. Não queria horas suicidantes, apenas sucrilhantes momentos, doces como as luas, corajosas como satélites e cometas. Queria a luta de ser e não ser. Queria sobretudo morrer nadando em paletas impressionistas, expressamente cafeinantes, altos teores de lipo-pregadores, varar os varais, sabonetando o céu, enxugando o chão, conquistando o inferno seu de cada longo centímetro.
45.Abandono
Desistiu inclusive do seu cachorro chamado Donizete.
46.Com leite
Chutando as pedras de sua vida, encontrou uma oportunidade amassada. Agarrou a nota. Eram dois reais.
Passara uma época no céu, todavia as coisas pareciam nada ter mudado. Nem seus preços.
Parou no boteco e pediu um pingado.
Do balcão via a estação de trem do Brás, onde resolvera abandonar de vez sua vida. Vivendo.
O pingado evaporava corações.
47.Do tempo
São Pedro é para quem os cristãos oram quando querem se ferrar.
De repente o céu descarregou toda a sua vontade em balões redondos e quentes. Piratas urbanos sacolejavam de desespero, nem sequer os pivetes e as ninfetas viam poesia naquele aguaceiro. O tempo quando as pessoas celebravam o cinzento celestial era um tempo dos livros, cérebros dissimulando.
-Passam uns séculos, esses cabaços do futuro me dissecarão. Vão achar até a chuva bonita.
Passado o sarcasmo, o escritor atordoado auto-mutilava.
A História é cheia de malucos e superstições cretinas.
Uma delas, é orar pra São Pedro.
48.Pingado
Entrou um molhado, sentou-se ao lado se sr. Eros e ordenou um pingado. Puxou papo.
-'Cê viu o negócio dos César? Que absurdo.
A voz era cega como uma meia-caverna.
-Ando meio desatualizado...
Uma gargalhada pontuda feito uma estalactite. Sr. Eros não entende, e atém-se aos discursos espermaculados dos tiozões do balcão. Todavia, o sujeito molhado insiste.
-Você não vai acreditar. Eu acabei de voltar de uma reunião de AA. Sabe o que é AA, né?
-Alcoólicos Anônimos?
-É! A minha mulher me deixou faz um mês porque eu apareci bêbado uma vez em casa. Uma vez! -enfatizava a quantidade de vezes como se elas invalidassem a atitude da mulher.
Sr. Eros fingia dar-lhe atenção com olhos sepulcrais, de quem está submerso há quinze séculos.
-Na verdade, ela me expulsou de casa. Falou pra eu nunca mais voltar. Então eu quero mostrar pra ela que eu posso mudar, já 'tô procurando um emprego, indo no AA, fazendo o diabo que posso...
-E você 'tá morando onde, agora?
-Aluguei um pedacinho por aqui com o dinheiro da poupança.
-Camarada, você não vai acreditar.
Sr. Eros olhava fundo como uma fossa abissal.
-O quê?
-Minha mulher também me expulsou de casa.
49.Samanta
Andaram umas cinco, seis quadras, estavam lá.
Sr. Eros prometeu-lhe ajuda nas despesas da casa (só não sabia como). Quando olhou a portinhola, uma saudade longitudinal fez-lhe nostalgia insuportável. Por quanto tempo aturaria aquela solidão? E nem se passara um dia ainda. Pediu roupas, que seu novo parceiro as tinha.
-Como te chama?
-É Rogério, mas todo mundo no AA me chama pelo sobrenome, Albuquerque.
-Então eu te chamo de Albuquerque?
Tinha uma aranha alojada na janela do banheiro. Batizou-lhe Samanta.
Mas ninguém sabe quando morre uma aranha, e nem sr. Eros sabia.
Pobre futura indigente.
50.Insônia
Durante a noite, acordou barras metálicas e as fechou, poucos cegos ruídos. Era um cigarro na sua boca, porque sr. Eros gostava de tutelá-los, todos os pobres, apagados, mortos, dentados. O cigarro em seus lábios sentia uma angústia de ser não-fumado, não tinha lágrimas nem labaredas, é isso que significa o inferno.
Sr. Eros via as moças que vendiam seus corpos porque não mais os queriam, dissimulando a sensualidade que não tinham, o amor que não tinham, porque não sabiam o que era o amor.
Nem sr. Eros e seu solitário e depressivo cigarro deveriam saber. Olhou para o céu.
Nem a Lua devia saber.
Voltou para a casa do novo parceiro e dormiu um sono perfumado.
51.Souvenirs
Na manhã dos gigantes de concreto, eram minhocas despedindo-se. Cada uma um lado. O Albuquerque pagou o bilhete e foi caçar uma morte, sr. Eros pulava as pululantes catracas de sua vida. Lembrava de um lugar na Avenida Paulista, onde daria um calote alimentar bem-sucedido. Às vezes a logística dos planos nutritivos cedia a uma ou outra imagem avulsa. Riu-se de pensar no "vida pós-Clínicas".
-Depois da meia-noite, todo escravo vira um ligador.
E então no curso de Psicologia que abandonara, nos amigos que às vezes os tratava indiferentemente, no incidente da bicicleta no parque, no assalto no metrô, na psicóloga, na fada, na excursão e no tombo, na sua jornada atrás de um líder que foi deposto, na sua feliz vida no céu, sua carreira na gastronomia, sua volta involuntária à Terra, nos incidentes do dia passado, quando o confundiram com o criminoso da moda, quando sentou no bar e desistiu do passado, e então um recém-abstêmio lhe fez companhia no pingado.
E então já havia esquecido dos planos iniciais do passeio.
Aliás, os abandonara por completo.
52.Poslúdio
-Se o metrô desligasse meia noite, não haveria toda essa folga!
A lógica só pode ser um instrumento divino, pela imperfeição terrena.
Por entre divagações e divulgações similares, pecava, até experimentar as duas longas pernas metálicas e elétricas, sr. Eros. Outro administrador de vícios, não mais preocupado com horário nenhum, sujeito nenhum, beijo nenhum.
-Que preguiça...
Suspirava. A manhã fora.
E se matou. E nunca mais viveu.
Prólogo
Esse primeiro texto eu o escrevi em 2009, na segunda metade do ano. Acho que demorei uns três ou quatro meses para concebê-lo, já que eu não me debrucei sobre ele de forma sistemática, mas apenas ocasional. Ainda assim o considero um dos mais bem acabados que eu já fiz.
Não tive coragem de publicá-lo pela sua extensão e pelo caráter extremamente subjetivo do texto -ele é um pouco autobiográfico. Mas a estética me agrada muito. Não sei se seria capaz hoje de reescrevê-lo. Mas acho que ele representa muito bem como uma crônica os meus dezessete anos.
Até agora não achei um título satisfatório.
Semelhança com Oswald de Andrade não é mera coincidência.
En-fim.
s/t
ou
Admnistrador de Vícios
Vida e Peste
1.Prelúdio
-Se o metrô desligasse meia noite, não haveria toda essa folga!
A lógica só pode ser um instrumento divino, pela imperfeição terrena.
Por entre divagações e divulgações similares, passava, até experimentar as duas longas pernas metálicas e elétricas, sra. Eros. Outra administradora de vícios, preocupada com o horário que queria ter, quando enfim tudo beijaria o que contempla.
-Existem sujeitos bacanas.
Suspirava. A noite fora. E amanhã iria novamente.
2.Da meia-noite
Pronto. Era a presa.
-Algumas notas podem não parecer tão rápidas.
Seria isto?
-Notas que perderam o som.
Era sua imaginação trabalhando. Mas não importava.
-Bastet ou Foucaultlino?
Era o nome de seu filho em questão. Mas ainda não era tão tarde, e o passeio foi desviado. Como em todos os âmbitos, era a hora de investir. Sra. Eros e sua bolsa de valores morais seguiam.
-Finalmente descobrirei se existe de fato vida pós-Clínicas.
Não. Não permitiria mais a si sonhar. Queria ainda desperdiçar sua estética cerebral.
-Oi.
Aquele inferno chamado espera.
-Oi.
-Err... Qual é a sua operadora?
Esboçou um sonho.
-Depois da meia-noite, todo escravo vira um ligador.
3.Platonismo
Durante a aula de Psicologia Prática Relacionada aos Problemas Interpessoais (PPRPI), vegetava. Seus amigos até lhe contavam.
-'Cê pode tentar. Não! 'Cê vai até conseguir.
Não era o desafio, era o tédio. Arriscou-se ainda assim, e lá era. Todavia, um ser permanecível. E vegetante de tantos nutrientes.
-A esse fenômeno daremos o nome de Sabedoria Absoluta Pessoal e Democrática, que chamaremos de SAPD.
Também odiava as pessoas estilo stand up, feito a professora parcial, mas o importante era a ternura d'outro.
-Depois da meia-noite, todo escravo vira um ligador.
Risos.
-Como você se chama?
-É Augusto.
-Belo nome.
Pieguices e burocracia.
-E o teu?
-É Ynglid.
-Como?
-Ynglid. Tipo Ingrid, mas com L no lugar do R.
Risos.
-Inusitado.
Cada palavra soava mais impossível, mas o sujeito era de uma autoridade tão incrivelmente vaticinante que sra. Eros lhe desabou.
-A arbitrariedade da SAPD se dá com a coerção psicológica.
Abandonou a lição.
4.Escalpelar
Mas, como é sempre para os ateus, quem dita as regras é o corredor.
Ynglid era apenas uma plebéia, não tinha direito ao carnaval dos grandes. Era ali, na diagonalidade do seu espaço, apenas a porca da seção inferior da infinita máquina social.
-Sociabilismo! Doença!
Mas tapava os ouvidos de alienar.
-Destruir o dinheiro! Destruir o dinheiro!
A crise era intra; exoesqueleticamente, tudo indicava normalidade; o índice geral de proteínas mantinha-se, como as manhãs.
Certa folga um sujeito aleatoriamente chegou-lhe.
-A moda para o inverno agora é o convívio.
Não lhe deu muita bola.
-Poético.
-Não! Real!
Não esperava a réplica. Quando se dera conta da dimensão da filosofia, o inconfidente já zarpara, estava à sombra de alguma maravilha arquitetônica.
Sra. Eros olhou para fora, a procurá-lo, e só achou o que acharia naquele lugar; faraonismos exclusivistas.
Apoiou a cabeça sobre os braços, no jazz.
Dormiu tarde.
5.Anti-gravitacional
Sobrancelhava pra tudo. Depois de uma fase percevejante resolvera nascer, e desconfiava dos lados, dos ângulos, das linhas, das bissetrizes e todas as Beatrizes que lhe emboscava.
Com os amigos, era uma lixa.
-Comida de tiozão não rola.
E eles tentavam engolir, mas não ajudava.
-Você lembra lembra lembra lembra?
-Por que eu ainda insisto em me afirmar imbecil saindo convosco?
E o mal-estar então coloria além das placas de queratina. Mas os pobres pobres não desistiam de tentar calmar-lhe.
Quase-sucesso. Extraíram-lhe, aquele dia, um mol de civilidade. A calmaria, contudo, estatuetava-se em platonismo.
-Talvez até guarde uma ternura secreta pelo meu pai. Mais cenoura?
-Não, obrigado. Como assim, Ynglid?
Eram brisas de aspirantes a psicólogos, com seqüelas de lisergia física e artificial.
-Não sei. É um sentimento azul.
E a trupe gargarejava de solidariedade.
6.Selvageria
Como tendia a sexualizar tudo. Carecia demais. Pensava amplificado, e isso já lhe causara tensões. Mas sua linha de morte era uma linha de trem, e vocês sabem como isto funciona pós-revolução industrial.
-Que eu vou com tanta intensidade que lhe arranco a língua a dentada.
O susto era dela, dele, de todas e todos. Se apaixonava, e depois pensava com tanta intensidade que abria os olhos e já estava no metrô.
-Como a vida tem sido dura.
Clichezismos e lágrimas crocodilavam pelas suas curvas satanistas e salmão. Era um muro desabando.
Tijolos de abstração.
7.Ocorrência
Sra. Eros era errante corpo dentre aquela gaiola chamada parque. Suas banhas sorvetantes choravam litros de suor agridoce.
Na sua cabeça um foguetório; que ela nadava em banheiras de uma geléia brancacenta e amarga, vinda de vários televisores boa-pinta, de bons pintos e muito dinheiro na conta. Dissecando a Lua, quase um acidente. Ou melhor, um acidente.
-Uff! Caramba. Perdão, moço!
-Porra, presta mais atenção por onde anda, véi!
-Desculpa, não vai acontecer de novo.
No que me apóio? Não havia nada mais obrigatório naquele sujeito do que a sua semelhança com o outro.
-Depois da meia-noite, todo escravo vira um ligador.
Flashes plasmáticos e plasmas traumáticos.
-Ei. Eu... eu, te conheço?
-Hein? 'Cê 'tá é maluca!
-Guto?
-Que mané, Guto! Vá dormir, sua louca.
Contrariando a sugestão do quase-quebro-um-braço daquela noite preta e engaiolada, sra. Eros esforçou-se para continuar acordada.
Na manhã seguinte, era uma equação disposta.
8.Discussão
Rebanho subterrâneo.
Um sujeito de cima, do céu, aponta pra baixo e, randomicamente, escolhe a sra. Eros.
-Desce agora e rapa aquela tia.
O pobre pobrezinho fluidamente escorre pela plataforma e domina todo o pasto. É de uma geografia ímpar, sua sensibilidade o orienta até a bolsa da coadjuvante.
-Ei! Trombadinha! Pega ladrão!
Registrando o Boleto de Ocasionismos, era um humano áspero perdido entre a lã onírica.
-Escuta! Se vocês sabem que aqui é onde tem mais trombadinha, por que não aumentam a fiscalização?
-Veja bem, minha senhora, a gente não adivinha o momento e o lugar exato onde um furto vai ocorrer.
-Mas vocês sabem que ali é um lugar perigoso, por que insistem em abandoná-lo?
-Olha, minha senhora, nós não abandonamos o local, a senhora está exaltada...
Queria, como todos os demais administradores de vícios com cérebros preparados para o mercado de trabalho, ter toda a razão.
-Abandonaram sim!
Silêncio.
-E eu não estou exaltada.
Em casa era inconsolável. O ovomaltine ia ficar pra a próxima semana.
9.Tentativa
-Faz tempo que eu não falo com o Senhor.
-Você se comunica com Ele?
Só podia ser balela.
10.Cidadania
Seus amigos curupiravam no boteco e ela com sua indignada história apenas era.
Luzes de emergência.
-Porra, presta mais atenção por onde anda, véi!
Outros olhos e armadilhas.
-A senhora está exaltada!
Recostava-se na imbuia, imbuída em instantes, e percevejava o silêncio. Suas companhias, no entanto, cervejavam em decibéis mil.
-Um brinde ao último semestre!
-Viva!
E vivavam.
Para sra. Eros, cada dia era um romance.
Depois que se responsabilizara pelo cumprimento masoquista de tarefas desnecessariamente imprescindíveis, seu dia passou a contar com mais horas, toda hora um amor.
Sua respiração era uma mixórdia de termos como dialética, academicismo, masdeísmo, látex e barbárie. Cada humor é um quilômetro e cada quilômetro são mil bipolares.
E o sono era só uma descarga.
11.Anunciação
É claro que não era fada, porque ela não existe. Tampouco deus. Esquizofrenia, talvez. Sonho, então. Alucinação pelo estresse. Só não podia ser lisergia.
Mas era. Pelo menos pareceu ser.
-Viva!
-Como?
-Sofra, e então viva!
-Do que 'cê 'tá falando?
-Você só pode saber sofrendo!
Talvez fosse Cristo.
-Sofrendo? Como assim?
-A felicidade não é o objetivo, mas sim a estrada!
-Kafka? É você?
-O limite da felicidade, é a morte!
-Alô!? C-como?
-O limite da felicidade, minha cara, é a morte!
-Q-quê? Kafka?
Mas não acreditava em fantasmas.
12.Adendo
Mas não duvidou desse.
13.Procura
E o sono era uma só descarga. Relampiava de exaustão, e logo a grande nuvem ameixante cedia.
Luzes de emergência.
Deixara de sobrancelhar, e agora claraboiava nas ruas.
Elegia uma cena e sonhava em tê-la, guardada num pote sufocado, exposta na estante, no instante.
Alguém lhe dissera para deixar os zebrismos em um tapperware hermeticamente distante.
Sra. Eros tentava. Não! Ela até conseguia.
-Você eu me esqueço.
E que vantagem leva Maria nisso?
14.Achado
Mas cada poça era um açude.
Cada rua era um sulco.
E estudava as coisas nas escalas mais malucas.
E já chegara no ponto onde a rua é a casa, quando a noite é o mundo.
-Acho que vou procurar uma Psicóloga.
Porque não podia procurar a si.
Mas achava. Era um poço de poesia, de um kafkianismo ímpar e de uma auto-negação par.
E culpava a aparição.
-Maldição! Aquilo só podia ser coisa da minha cabeça!
Mas era.
-Eu só posso 'tá maluca.
E ia se imaginando presa em um número irracional, enquanto mutilava chicletante as suas unhas.
15.Aflição
E sonhou em ser uma estátua.
Imaginou a conveniência do desdispêndio e da corrosão bostal das pombas, do terror escatófago das bactérias filomérdeas, do postalismo de atentados, da tentação das câmeras, da poluição celestial e da impotência sentimental.
Mas o pior, o que lhe causava a maior aflição, era a unha tapada.
Vejam só, unha tapada!
Unha tapada.
-Então, Ynglid, o que você tem pra me contar?
Aquela voz cálida e gélida e agudo-grave e fétida e despeculiar.
-Eu ouvi um fantasma, ou sei lá o quê! Eu sei que não foi deus porque deus não existe, mas não sei o que pode ter sido. Só sei que isso mudou minha vida... Err... Eu fiquei assustada, resolvi procurar ajuda, mas eu 'tô vendo a vida de outro jeito agora e... Err... Espero que isso ajude, porque eu não gostaria que isso acontecesse de novo e... De novo, porque eu fiquei assustada, e eu não sei o que pode ter acontecido. Quer dizer, não sei o que pode ser sido aquilo, né? Por isso que eu estou aqui, pelo... Pra procurar ajuda, mesmo, queria alguém especializado, né?
Desenredava com letras maiúsculas de criança.
E a psicóloga classificou como resistência à terapia, mas sra. Eros não pisou mais naquele consultório durante bons cometas.
E voltou a fumar.
16.Ligação
-Alô!
-Alô! Almeida!?
-Quem?
-Almeida? É do Almeida?
-Não, foi engano.
E sentava exausta de tédio, feito alegoria machadiana, lasciva e comercial, embora ninguém a encontrasse. O mundo era uma esfera abandonada no universo, esperando apenas ser atingida por um taco de golfe enorme.
Seu suspiro carbônico era um convite à náusea, desmeninava-se a cada tragada.
-Eu não sou maluca.
Enormemente, sua imagem no espelho contorcia-se de risos a juro, endividando sra. Eros de superar-se.
-Amar é uma overdose de azul.
Não entendia como aqueles morfemas sinestésicos saíam de sua garganta alicerçando orações tão estúpidas e insuportavelmente floridas.
Tocava.
-Alô!
-Alô! Almeida!?
Quantos séculos esperaríamos pelo taco de golfe?
17.Lavanderia
Porque o mar era um vômito limpo.
Na viagem era uma esperança, no passeio uma angústia.
Olhava pra todo aquele brilho e morria.
-Porque eu sou apenas uma plebéia.
O acesso que àquilo tudo teria não passaria do mero masturbatório. Pelo menos era nisso que pesadelava, e o dizia vida, e o maldizia vida.
Cachoeirava-se de céus cristalinos e infláveis. Enqüanto tudo à sua volta sorria, desdentava-se de mutilar, mangueirava seu pranto radialmente.
Enfim, pedrachutava, mas não perdeu a culinária local.
Luzes de emergência.
Não houve de volta à cidade.
18.Isolamento
Um tant'antes d'acabar a excursão, zebrou-se em uma árvore, solitária e minhocante.
As velhas haviam ido à cidade chocolatear o mundo com as suas unhas postiças, tingindo de azul-petróleo o resto do que sobrava de calor. Mas sra. Eros não queria tanto vestir uma alegria postiça, e zebrava-se a dois metros do inferno.
-Viva!
-Você de novo?
-Sofra, e então viva!
-Escuta, eu não sou maluca, sai daqui da minha vida, da minha árvore, da minha excursão...
-Calma, meu amigo, eu tenho várias notícias pra te dar.
-Em primeiro lugar, eu sou mulher! Em segundo, você não tem nada pra me contar porque você não existe!
-Então... A primeira diz respeito ao seu sexo.
Nesse instante, sra. Eros se despede de seu galho, e mergulha ao sul.
19.Do acordar
Sr. Eros levanta-se sujo de petróleo, panoramiza, pirâmides e prédios avulsos, maravilhas da genética, cores conhecidas que não pagaram a conta do analista, velhos números que conquistaram a anistia, Raoul Vaneigem e construções flutuantes de Duchamp, De Chirico, Do Campo, deduzidas e dedadas hospitalares, romances e cavaleiros, romãs e covinhas, menestréis e trovas pornocálidas, sujeitos tulipantes e escravidão das flores, escravidão das cores, tons de tabaco, cafezais trigueiros e muito Van Gogh, passeando entre as mangas, os maracujás e as jabuticabas, muitos janeiros e agostos, talvez outubros, cachaça que jorrava das picas, puteiros, palhaços discutindo Marx, caralhos voadores, céu de azia, carros subcelestiais, experimentalismos etílicos, acarajés no céu, sociologia da química espacial e curatoria especulativa, retórica mágica e feitiçaria láctea, intolerância a rã, espadas de latão, chaves-de-fenda de Cabo Verde, MDF, PVC, o Partido Canhoto de esquerda, hippies e impressoras suvinílicas do tamanho de um terremoto. Um pouco acima, alguém em um trono de aipim e vime. Conclusões precípites.
-Eu 'tô fudido.
20.Do garçom
Lhe chega um garçom e oferece um beijinho.
-Escuta! Que lugar é esse?
-Estamos no Céu. Vai querer um beijinho ou não?
-Ando meio sem fome.
-Quer falar com alguém?
-Seu superior.
-Siga ali.
Apontou um escorregador aquático.
-Muito obrigada.
O garçom sobrancelhou-se.
-Oh! Perdão, ainda não estou muito acostumado com minha mudança de sexo.
-Ah! Normal, troquei de sexo há dois dias, às vezes me confundo também.
-Estou indo.
-Boa sorte!
-Obrigado.
Ynglid Eros, que agora pensava em trocar de nome, já esboçava um salto no tobogã, então periquitou-lhe novamente o garçom.
-Mas tem uma coisa!
-Que é?
-Meu superior pode te pedir um beijão.
21.Do rei
Pernambucodonosor era o Estado daquele reino. Era até ele que sr. Eros deveria chegar para saber de todo aquele atum.
Despiscinou-se e vagou em busca de um cheiro tutti-frutti. Eram ecléticos os assuntos nas vias.
-Sempre bate uma crise à tardinha.
-Isso é tão semana passada...
Pestanava a cada saco de café. Era um sinal gráfico. E os ruídos continuavam.
-Qual é o seu trabalho?
-Eu detenho pessoas.
Tanta pizza.
-Você cheira a manjericão.
Aulas de inglês.
-You have a hair, don't you?
Particularidades mil. Virgulava entre consertos concertantes.
-Meu pai é taxista.
-Amor, pega um tijolo?
-Eu tenho um amigo que tomou chá-de-fita e 'tá vestido de palhaço até hoje!
-É, vó! Cada um no seu quadrado!
Eram tantas cenas convexas que sua desquebrada cabeça concavava no solo em busca de novos compartimentos, eram galerias lotadas, sapateiras e gaveteiras tão fortemente agregadas que era um tanto mais e novo universo explodia. Lhe sumiam as tintas dos olhos.
-Por que eu mudei tanto?
E rumava a tal Pernambucodonosor.
22.Da loucura
Sequer entendia por que já se desengavetara tanto, mas era parte de tudo aquilo, sonho que aquela fada maluca, que ela não existe, certa estrela lhe argüiu.
-Eu vi, eu vi! O amor é o meu país!
E ia tijolando vazios, em busca do seu.
Aquilo que era vida.
23.Movimento
-Viva!
-Vai tomar no cu!
-Sofra, e então viva!
Ynglid Eros tirou de dentro das urtigas uma pistola, e assassinou seu fantasma com circunstância de pompoarismo. Poupou a arma abandonando-a em um movimento retilíneo uniforme, variado e bem longe, mais campos urtigados.
-Mas já não era sem tempo!
24.Notícias
Um outro garçom lhe chegou.
-Ficaste sabendo, senhor? Nosso brigadeiríssimo chefe Estratífico Pernambucodonosor Terceiro morreu, de operetas amendoístas.
Era de sr. Eros uma peregrinação caçambada.
-Puta que pariu!
Era apenas uma pejoração.
Não tinha tanta importância naquele lugar.
Como possível, se toda essência e doce era capaz de algodoar qualquer ternura?
25.A democracia
As vias eram uma só descarga, haviam naus que escapavam de medo, caravelas apagadas e vários guris e garis comemorando e criando enormes labaredas com suas vassouras.
-Somos um povo livre!
Ninguém nunca ia pensar que o governador do Céu seria deposto por uma revolução anafrodita, sr. Eros soluçava um gelo de pedra, ou uma pedra de gelo.
-Ninguém vai acreditar em mim quando eu contar o que vi aqui.
Mas já não sabia se vazava. Se acostumara tanto com a sua recém-calculada peregrinação até o soberano, aquele lugar tão redondo, com ciclovias, urbanismo gay e vitrolas-de-esquina. Viraram para si feito uma família.
Um alto-falante pensou.
-Decretamos esta nação como laica, tolerante a todas as crenças e descrenças de seus cidadãos. Meus amigos, o Céu é livre!
Um grito ecoou por entre todas aquelas nuvens roxas, cinzas e vermelhas.
O céu era livre.
26.Vida
Esquiatava-se todas as manhãs.
Era um gelo quando quisesse, a lua eram duas palmas, e toda a noite tinha a matinê no Cinema Olímpia. Sim, porque atrás da esquina estava o Olimpo, o futuro e a manufatura de cerveja.
Tinha casinha, parceiros, parceiras, wireless, comodidade e tolerância a lactose. E tudo isso sem moeda alguma, o Estado fora abolido pelos anafroditas. A demografia era constante, nunca havia problemas populacionais, a questão geográfica era vaginal. Quando alguém morria no Céu, e ia para o cemitério do Araçá, outro vinha -escolhido ao acaso em um lugar avulso, tipo o banheiro- e supria o pódio.
E, o melhor, quando você quisesse ser uma estátua, era só ir ali no Congelador Público, do lado dos Correios, e saudar a tiazinha da Cantina.
27.Do teste
E foi com a tiazinha da cantina que sr. Eros descobriu sua verdadeira vocação.
Era, naquela bola azul e verdejantemente podre, senhor de sua tragédia, num serviço de merda, numa firma que o explorava (os anafroditas haviam abolido a mais-valia), numa faculdade que dele demandava newtons de paciência e cafeína. No Céu tinha liberdade plena e assimétrica para traçar os seus limites, as suas buscas, e os seus próprios chás-gelados.
-Ei! Que ótimo! Como faz isso?
Pacientava-se morfinante, e seu suspiro tóxico significava "eu vou ter que ensinar mais um", mas no fundo era aquela a graça de se estar de no Céu, independente do sistema político.
Revirava.
-Meu filho, tudo começa com a virtude. Você tem virtude?
-N-não sei.
-Vamos descobrir.
Pegou um tijolo que estava sob a pia e o fez vir ao chão, ceramizando estrelas.
-O que você vê?
-Cacos.
Vomitou mais um suspiro.
-Apenas cacos?
Olhou pra velha.
-Ué! Apenas cacos!
Furou-lhe o rosto com seu globo a laser.
-Tem certeza?
Sr. Eros olhou mais uma vez para sua alma pedaçada em despedaços cor-de-carne. Então, um prazer súbito lhe arrancou a eletricidade dos órgãos e um estalo navegou em seu sangue em um segundo na velocidade da luz. Suas retinas piscaram natalinamente.
-Eu vejo... Um prato a menos.
A velha então sorriu.
28.Descoberta
Era, em pouco tempo, oficial de massas, em um distrito chamado Pasta. Olimpiava-se em nuvens de melodia, trabalhava no barulho mais calado e gasoso horas a fios de óleo, e de ovos, todos os dentes, todas as bocas, todos as pastas.
Farelava até o tardecer, quando flutuava até a noite, em um jet lag desconfuso e imaginário, vislumbrando aquela bacante negra, que era seu plano sonhado de cada dia, sua vida perfeita, o Céu, sob o império dos anafroditas.
Seus estudos in loco eram travelling abroad, chuva de farinha e ventanias de pedidos; cada prato era um vórtice. A alface era o mundo onde clorofilavam os amigos, as paixões, o tesão.
Sr. Eros era feliz e sabia.
29.Cinema
Tensão. Naus caravelantes. Cervejas nacionais. Explosões rádio-passivas e violinantes. Semiótica camoniana e outras piadas abortadas. Gramática pederasta e perversão extra-cristã, resistência anafrodita. Auto-felação.
-Eu acho que tenho bastante sorte.
A filosofia era fácil como um pé-de-cabra.
-Se eu fosse um buraco, provavelmente me preocuparia menos.
A filosofia era fácil como o inverno.
-Então eu certamente tenho bastante sorte mesmo.
30.Intermezzo
Ynglid trocou de nome. Fez a festa. Preparou os robalos. Sobrou sozinho na cozinha. Olhou pro canto e ladrou uma metáfora. De um canhão saiu uma lata. Cancioneiro obituário atualizado.
31.Nota de falecimento
O queridíssimo Róbson Eros, oficial de massas, do distrito de Pasta, Céu, vulgarmente conhecido como senhorita Ynglid Eros, estudante de psicologia e teleoperadora, latino-americana, Terra, foi atropelado por quinhentos gramas de ervilha, no dia de sua promoção para o cargo de Celebrista Oficial das Lêndeas Anafroditas.
32.Ontem
No cemitério do Araçá, era uma só alegria.
-Ah! Que bom! Verei minha família, meus tios, amigos, professores, colegas, o Donizete...
Exultava-se de tanta folia guarda-chuvante.
-Imagina só quando eu contar pr'eles tud'o que aconteceu!
Com um precário pára-quedas teleguiado dirigia-se a um lugar pouco visitado.
Quando desceu encontrou anjos, estátuas majestosas, cheiro de primaveras e árvores floridas e ensolaradas, cujo néctar atraía certa fauna voadora insetívora e grande contigente de artrópodes. Gatos viravam as pequenas esquinas, donde vez ou outra surpreendia um faxineiro.
Sr. Eros soltou um suspiro sorridente e satisfarto de porra:
-E eu que pensava que era assim o céu.
O céu era muito mais legal que aquele parque, o qual alcunham cemitério.
33.Eletricidade
Pensou em perguntar-lhe qualquer coisa, só pra saber se estava vivo.
-Ô camarada!
O sujeito olhou.
-Tem aí as horas?
-É nove e vinte e cinco.
-Valeu, irmão! Bom dia!
-Disponha.
Virou as costas e deu um salto de felicidade tão grande quanto o mausoléu dos Matarazzo.
Não se conteve, precisava de um pouco de preocupação terrena também.
A primeira, a saber, foi a de como voltar pra casa.
A segunda era o jeito de explicar a sexual e tão repentina troca. Sim, porque ainda era senhor.
34.Apelido
Na porta do cemitério uma criança pivetava certos trocos.
-Ei! Moleque! Sabe quem eu sou?
Já exausto pela sua atividade matinal de esmolar, farelar, apanhar e cheirar cola, impetava encapetamentos o garoto, mas sua fome, sua obrigação, era maior do que sua paciência.
-Quem é, tio?
-O senhor Oficial de Massas de Pasta! Grã-Pasta! Lugar para poucos!
Sr. Róbson Eros, outrora Ynglid, moça escalafobética e desvaginista, agora orgulhava-se da fotografia masculina.
Tem coisas que nem Freud explica.
-Como assim, tio?
-Eu era chef.
-Chefe de quem, tio?
-Chef de cozinha.
-E cozinha tem chefe, tio?
-Eu não sou seu tio.
E o pobre pobre ficou sem o trocado das nove e meia.
35.Intervencionismo involuntário
Pulou a catraca. Vieram uns quinhentos.
-Ei, ei, ei, amigo. Onde 'cê pensa que vai? Volta aqui!
A carteirada não funcionaria.
-Sou Oficial de Pasta, vim do Céu, o pára-quedas me deixou aqui no cemitério...
Nem terminou o texto, escoltavam-lhe.
-Vixe! Esse aí tomou um dos bons.
-A gente tem é cara de palhaço, né?
-É o quinto só hoje. Deve ser trote, estudante de teatro, sei lá!
Intervenções urbanas são fenômenos característicos da pequeno-burguesia em bairros ricos do Centro-Sul.
36.Amizade
Subiu as escadas do metrô.
-Ei, amigo! Me dá um troco, eu vim do Céu e lá eles não usam dinheiro.
As meninas umbigavam debochantes, os rapazes ignoravam com narigadas de desprezo.
Mudança de tática.
-Putz, velho! Eu pensei que tivesse o dinheiro da passagem, mas eu calculei mal e...
-Ei, camarada!
Era o responsável pelo pivete.
-Aqui a área é nossa, a gente precisa comer, não enche mais o saco.
Desceu novamente as escadas e foi pedir lá embaixo.
37.Prostituição visual
Mas ainda catracava de esperança.
Bem vestido, uns tons groselhavam, com notas tabacantes de restos de bacantes sortidas, avulsas e randômicas pela calça, e bochechas empinadas, gola xadrez.
Era feito uma árvore de lembranças, incrivelmente disposta, como se tivesse dormido e o céu tivesse passado por uma revolução anafrodita.
E nem demorou muito, uma velha lhe deu uns trocos. E deu muitos trocos. Um tanto mais e dava pra comprar um Bilhete Único.
-Eu não sou puto, tia.
Em frente a eles, zombou-lhes a sina, os funcionários do metrô.
38.Visitado
Mas era um olhar só.
Era suas roupas anafroditas, seu corpo simetricamente apolíneo, sua boca dionisiacamente afrodisiaca, algum quê de engolir.
Arrepios à flor da imagem.
39.Do inferno
Mas nada podia ser mais diferente, nesse esterco povoado que chamam de Brasil.
No metrô os teventes piscavam ao nada, bando de desencontrados oculares, frota de passageiros rumando ao cálice mortífero de suas vidas, sobre uma minhoca metálica e magnética, da qual nada sabiam além da tarifa e do serviço, pessoas precisando dos néctares e alucinógenos sociais, pessoas hipnotizadas por uma caixa, esticados os olhos até a palma ótica das fibras, pessoas situadas no limite de convergência entre o saber tecnológico e a novela tectônica, pessoas situadas pela geografia dos mapas metropolitanos, pessoas que não conheciam o Céu, nem os anafroditas, nem as jabuticabas.
Pessoas sem amor, e sr. Eros as deprimiu durante um segundo gelado.
40.Pausa
Aceleração negativa. As duas longas pernas metálicas e magnéticas agulharam a minhoca cardíaca.
-Atenção, senhores passageiros. Há um assassino a bordo!
Nossa, que grave falta.
-Mas não há motivo para pânico, o problema já está em vias de ser resolvido. O metrô agradece a compreensão.
Da caverna de concreto surgiram vultos apagados, silhuetas que eram pesadelos, que forçaram a porta do vagão de Sr. Eros. Este, capturado.
-Puta que pariu!
Era um sortudo ou um azarado.
Melhor os dois.
41.Sob grilos
Gritos de protestante, de subjugado lumpemproletário.
-Ei! Senhor! Senhor!
Ofegante, sufocado, transportado em uma velocidade judiante.
-Que eu fiz agora?
Trancado numa sala escura. Grilhões.
-De que tamanho é este metrô?
Sob trilhos, só sr. Eros e sua disposição recém-grilada, prestes a grelhar-se os miolos, a porta desapartou-lhe.
-Senhor Camilo?
-Eu me chamo Róbson.
-Pode ser. Ocupação?
-Antes de trocar de sexo, era registrado como Ynglid Eros na Teí Telemarketing, também estudante de Psicologia pela Universidade Metropolitana de Psicociências. Depois fui para o Céu, hoje me chamo Róbson Eros e fui aluno de Lis, cantineira de Pasta, até a minha promoção de Celebrista Oficial das Lêndeas do Partido.
Um saco repetir as mesmas coisas. No céu as pessoas não dão tanta satisfação da vida. A Terra é um lugar para desapontados.
-Não entendi nada do que você falou. Dá pra repetir?
Pensando bem, no céu não tem metrô.
-Senhor. Por favor, me chame de Senhor.
Mas arrogância não era uma boa opção naquele instante. O outro sobrancelhou-se.
-Me chamo Róbson. 'Tava voltando pra casa. Trabalho de chef de cozinha num restaurante lá do Tatuapé, onde moro.
Pragmatismo. Ainda não entendia do rapto.
-Por que vocês querem me pegar?
-Tem documento aí?
-Esqueci antes de sair de casa.
-O motivo de sua captura é o fato de nós termos te confundido com um traficante que estaria no trem. Mas ele fala apenas espanhol. Você deu azar, ele 'tava vestido exatamente igual a você, mas já percebemos que o seu rosto difere bastante do dele.
-Err... Jura?
-Só um instante.
Tirou uma folha do bolso e mostrou uma foto do traficante, a que rodava por aí com a legenda de "Procurado", destacando que ele estava de fato vestido igual ao sr. Eros.
O interrogador abriu a porta e disse que sr. Eros saísse, enqüanto atendia seu celular.
43.Campainha
Sr. Eros então percebeu que as pessoas só olhavam pra ele por causa de suas roupas.
44.Crise
Ponteiros apontavam o final da tarde. Desistiu do Tatuapé. Queria um chá-gelado. Não queria a vida de antes. Não queria horas suicidantes, apenas sucrilhantes momentos, doces como as luas, corajosas como satélites e cometas. Queria a luta de ser e não ser. Queria sobretudo morrer nadando em paletas impressionistas, expressamente cafeinantes, altos teores de lipo-pregadores, varar os varais, sabonetando o céu, enxugando o chão, conquistando o inferno seu de cada longo centímetro.
45.Abandono
Desistiu inclusive do seu cachorro chamado Donizete.
46.Com leite
Chutando as pedras de sua vida, encontrou uma oportunidade amassada. Agarrou a nota. Eram dois reais.
Passara uma época no céu, todavia as coisas pareciam nada ter mudado. Nem seus preços.
Parou no boteco e pediu um pingado.
Do balcão via a estação de trem do Brás, onde resolvera abandonar de vez sua vida. Vivendo.
O pingado evaporava corações.
47.Do tempo
São Pedro é para quem os cristãos oram quando querem se ferrar.
De repente o céu descarregou toda a sua vontade em balões redondos e quentes. Piratas urbanos sacolejavam de desespero, nem sequer os pivetes e as ninfetas viam poesia naquele aguaceiro. O tempo quando as pessoas celebravam o cinzento celestial era um tempo dos livros, cérebros dissimulando.
-Passam uns séculos, esses cabaços do futuro me dissecarão. Vão achar até a chuva bonita.
Passado o sarcasmo, o escritor atordoado auto-mutilava.
A História é cheia de malucos e superstições cretinas.
Uma delas, é orar pra São Pedro.
48.Pingado
Entrou um molhado, sentou-se ao lado se sr. Eros e ordenou um pingado. Puxou papo.
-'Cê viu o negócio dos César? Que absurdo.
A voz era cega como uma meia-caverna.
-Ando meio desatualizado...
Uma gargalhada pontuda feito uma estalactite. Sr. Eros não entende, e atém-se aos discursos espermaculados dos tiozões do balcão. Todavia, o sujeito molhado insiste.
-Você não vai acreditar. Eu acabei de voltar de uma reunião de AA. Sabe o que é AA, né?
-Alcoólicos Anônimos?
-É! A minha mulher me deixou faz um mês porque eu apareci bêbado uma vez em casa. Uma vez! -enfatizava a quantidade de vezes como se elas invalidassem a atitude da mulher.
Sr. Eros fingia dar-lhe atenção com olhos sepulcrais, de quem está submerso há quinze séculos.
-Na verdade, ela me expulsou de casa. Falou pra eu nunca mais voltar. Então eu quero mostrar pra ela que eu posso mudar, já 'tô procurando um emprego, indo no AA, fazendo o diabo que posso...
-E você 'tá morando onde, agora?
-Aluguei um pedacinho por aqui com o dinheiro da poupança.
-Camarada, você não vai acreditar.
Sr. Eros olhava fundo como uma fossa abissal.
-O quê?
-Minha mulher também me expulsou de casa.
49.Samanta
Andaram umas cinco, seis quadras, estavam lá.
Sr. Eros prometeu-lhe ajuda nas despesas da casa (só não sabia como). Quando olhou a portinhola, uma saudade longitudinal fez-lhe nostalgia insuportável. Por quanto tempo aturaria aquela solidão? E nem se passara um dia ainda. Pediu roupas, que seu novo parceiro as tinha.
-Como te chama?
-É Rogério, mas todo mundo no AA me chama pelo sobrenome, Albuquerque.
-Então eu te chamo de Albuquerque?
Tinha uma aranha alojada na janela do banheiro. Batizou-lhe Samanta.
Mas ninguém sabe quando morre uma aranha, e nem sr. Eros sabia.
Pobre futura indigente.
50.Insônia
Durante a noite, acordou barras metálicas e as fechou, poucos cegos ruídos. Era um cigarro na sua boca, porque sr. Eros gostava de tutelá-los, todos os pobres, apagados, mortos, dentados. O cigarro em seus lábios sentia uma angústia de ser não-fumado, não tinha lágrimas nem labaredas, é isso que significa o inferno.
Sr. Eros via as moças que vendiam seus corpos porque não mais os queriam, dissimulando a sensualidade que não tinham, o amor que não tinham, porque não sabiam o que era o amor.
Nem sr. Eros e seu solitário e depressivo cigarro deveriam saber. Olhou para o céu.
Nem a Lua devia saber.
Voltou para a casa do novo parceiro e dormiu um sono perfumado.
51.Souvenirs
Na manhã dos gigantes de concreto, eram minhocas despedindo-se. Cada uma um lado. O Albuquerque pagou o bilhete e foi caçar uma morte, sr. Eros pulava as pululantes catracas de sua vida. Lembrava de um lugar na Avenida Paulista, onde daria um calote alimentar bem-sucedido. Às vezes a logística dos planos nutritivos cedia a uma ou outra imagem avulsa. Riu-se de pensar no "vida pós-Clínicas".
-Depois da meia-noite, todo escravo vira um ligador.
E então no curso de Psicologia que abandonara, nos amigos que às vezes os tratava indiferentemente, no incidente da bicicleta no parque, no assalto no metrô, na psicóloga, na fada, na excursão e no tombo, na sua jornada atrás de um líder que foi deposto, na sua feliz vida no céu, sua carreira na gastronomia, sua volta involuntária à Terra, nos incidentes do dia passado, quando o confundiram com o criminoso da moda, quando sentou no bar e desistiu do passado, e então um recém-abstêmio lhe fez companhia no pingado.
E então já havia esquecido dos planos iniciais do passeio.
Aliás, os abandonara por completo.
52.Poslúdio
-Se o metrô desligasse meia noite, não haveria toda essa folga!
A lógica só pode ser um instrumento divino, pela imperfeição terrena.
Por entre divagações e divulgações similares, pecava, até experimentar as duas longas pernas metálicas e elétricas, sr. Eros. Outro administrador de vícios, não mais preocupado com horário nenhum, sujeito nenhum, beijo nenhum.
-Que preguiça...
Suspirava. A manhã fora.
E se matou. E nunca mais viveu.