sábado, 31 de agosto de 2013

Alta.

Naquele dia a pizza havia atacado nossos bolsos. Por que quarenta reais? Muito caro, fiquei de cara! Política: lhe disse, você é um ignorante! E então, se foi. Sem saber muito bem o que fazer, hesitei uns bons vinte segundos antes de depositar o dinheiro sobre a mesa e sair à sua procura. Quarenta minutos depois, na frente da porta do vinte e cinco zero um, as luzes se prostituíam pela chegada deste elevador ao derradeiro andar. Corro, você não sairia do cubículo se eu não lhe retirasse à força de lá. Sequer me mira, age como se um mero obstáculo de um metro e setenta o impedisse de alcançar seus objetivos prediletos, finge não me ouvir, seus olhos opacos são fantasmas macabros. Algo me goela, queima. Depois de um impulso incontrolável, olho para baixo, sangue quente no assoalho do aposento.

Doutor, me ajude, a cada briga que temos perco um pouco de sangue. Ontem foi isto - e então lhe mostro um tecido vermelho-bordô, um exemplar asqueroso e viscocento da minha última gorfada. O médico olha com resignado ar de gente aventalada e conformada: o que temos aqui na nossa frente vive acontecendo, o máximo que podemos fazer por enquanto é assistir isso aí.
Ao longo de seis meses perdi partes do meu coração. Na última consulta, doutor Mariano ficou inconsolável: olhe isto, girava no ar os resultados da última ressonância do meu peito, seu coração tá igual a um queijo suíço. O que eu poderia fazer? Esperava o momento em que terminasse por abortar sua carcaça de uma vez.

Nossos olhos saltaram, meu e os daquele menino, saltitavam, se beijavam, se almoçavam, jantavam. Meu sangue esquentou, intumesci-me todo, minha boca aberta boquiabertou-se em escalas até antes desconhecidas, suavam como porcos no banho turco as palmas da minha mão.
Doutor, é urgente, liguei para Mariano por volta das duas e meia, com voz de pura irresistibilidade. Milagre!, exclamou o médico ao examinar incrédulo o novo retrato deste coração magicamente reconstituído. Sorri para ele e, cúmplice, piscou-me um olho.
Voltei para casa ávido de te contar a novidade. E então aconteceu. Você ouviu atentamente o que eu tinha a lhe dizer, e então, repentinamente, pareceu acometer-se de um mal súbito, algo como uma possessão, revirou os olhinhos, de sua garganta se ouvia os rumores laterais que sinalizavam uma movimentação árdua, doída, fatal. Corri para o hospital, doutor, me ajude! Olha como ele está! Qual é o procedimento?
Agora?, ele me retrucou, agora é só esperar. Finalmente, depois de uma semana de convalescência, fui chamado com urgência para o setor dos desesperados. Do lado de fora do vidro, assisti teu sofrimento enquanto vomitava o próprio coração inteiro de uma vez.

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Dois dias antes do meu aniversário, em 2009, escrevi isto.

é claro que eu te escuto
consciência minha não falha
nada falha, tudo é palha
por que eu te refuto?
enquanto luto, estás de luto
tudo é secreto e verdadeiro
inclusive o dinheiro
eu secreto no banheiro
nada é falha, tudo é palha
eu não te fumo, eu não te trago
não bebo o sumo do teu afago
não me afogo em teu lago
eu flutuo, eu ciclovôo
é claro que eu te escuto
consciência-fruto, e de você
desculpa, eu gosto de outros

E antes de ontem, escrevi isto

é trapo - mudo surdo
minha vida anti-fachada
nada é fada e tudo é um fato
é foda o dia inteiro
é mudo mas também ligeiro
tudo é veneno - e cortesia
café ralo jogo na pia
e pela pia o rodo ia
tudo roda - tudo é foda
eu esqueço um braço - mas abraço a fada
não abro safada - me safo calada
e não digo mais nada
eu flutuo num fátuo fogo
prescindo de outros remédios
peço uma média - e de moi?
sei lá, outros me gostam


também escrevi isto

epístolas
epistemologias arredias voadoras
_____e as pessoas se trocando para ir ao supermercado
misturas cosmopolíticas corrosivas - corrosivos olhares
_____nas ruas são bandidos em concorrência
_____congruentes
_____grudentos, obstinados - os bandidos se assaltam na noite bandida
e nós meninos nos assaltamos
_____roubamos mutuamente todos os matizes do castanho
_____da vida castanha dos últimos quase seis dias
eu te faço algumas coisas - fazer aqui é um substituto
_____substitui as coisas perceptivas - dor, sentir, aliviar
_____substitui as coisas que transcendem - amar, desejar, ter saudade
_____substitui as coisas tão completas e infinitesimais que jamais poderão ser escritas por mãos em folhas de papel, tão feitas do mero acaso de ter-lhe conhecido que parecem fruto da própria apreciação da sua proximidade imediata e infinita

te gosto em escalas mil

domingo, 11 de agosto de 2013

Um buraco todo seu

Você, de repente, concreto, conciso (não obstante cretino, mas) reto, perdoa este pobre abstrato, substrato absurdo, coisa difícil de engolir, perdoa? Faço um desenho na minha perna, minha coxa flexionada goza de um sorriso macabro, tão macabro que eu o violo, canetadas ávidas em transformar o sadismo desta mão inconsciente na mais pura expressão de inconsequência, rabiscos incessantes, um pretume desesperado. Que ideia, desenhar a caneta na coxa! O que é mais macabro, a insistência do seu sorriso, ou o sorriso da sua insistência? Acho que são mesmo os olhos, em espirais, remetem ao infinito e à loucura, e, logo, ao inferno! O sorriso persiste na coxa apesar dos rabiscos incessantes, mas não quer ser censurado, exige reconhecimento, e então o primeiro filete vermelho macula o pretume da tinta, coincidindo com o doloroso gesto que rasga a carne, tatuando meu corpo com a desesperada vontade de não vê-lo feliz - ou ostentando aquela suspeita alegria. Com a rubreza do meu sangue, vem o insight. Vou na cozinha, pego a mais afiada faca, elejo aquela com as serras mais minuciosamente conservadas pelo tempo, e então desenho com sua ponta aguda o contorno do enredamento de linhas pretas a esconder o indesejado sorriso. Como quem corta fora a casca de uma batata prestes a explodir, escalpelo-me, na região desenhada, que passa a exibir então um brilhante e vistoso círculo de carne, sangue e tecido adiposo, uma lua esquecida, rejeitada. O destino da lamentável obra-prima? A privada. Retorno à leitura. Quando dou por mim, observo que o mesmo sorriso infeliz foi traçado com exatidão pela mesma tola mão -desta vez no meu coração. Suspiro. A noite vai ser longa.
Suas palavras queriam ser meias, queriam ser meras. Hoje algumas palavras são dominadas por gente que busca algum conforto em uma ostentação barata na rede, mas outras ainda cortam, desferem golpes baixos feito uma bica na canela que te apaga os olhos como se uma chuva de maus espíritos irrompesse de um céu até então límpido. Se como as minhas, as tuas palavras não valem muitos centavos - e longe de apelar para o refúgio da iluminação e da diletância barata e serial - escrever é sobretudo o que posso fazer, se à força minha voz é arrancada, e minha garganta nada mais é do que um canal precário e dolorosamente necessário para a manutenção desta fisiologia torpe. Não há refúgios, não há conforto para esta pobre alma ateia, em nenhuma ilusão de boteco. Com a mediocridade que reina sob a minha, as nossas, espinhas, tirar algum prazer de uma mania como roubar pequenas colheres em lanchonetes chinfrins é praticamente subversivo. No entanto, se alguém ou alguma entidade do comando e da subserviência se prestasse a me observar, não sem algum divertimento atestaria o cômico e patético papel assumido por este ladrãozinho de colherinhas, que nem o pingado tomado vale. Pois este sou eu antes de te conhecer. Os pequenos prazeres ainda me pegam, mas nada é tão fatal quanto lembrar de forma tão esmiuçada deste sonho que coloridamente queremos enxergar, como se só tendo olhos para o vigor dourado que exibe a fresca face da laranja, não víssemos todavia aquela que lhe destrói e corrompe por dentro, um mofo azulado e desinteressante que a definha e faz evanescer. Temo padecerem nossos corações de um tal mal, como se, instalado sobre o tempo que lhe determina a vida, o bolor pouco a pouco nos transformassem em pequenas cascas sadias e amáveis por fora, mas podres e amargas por dentro, e a coisa mais fértil que nos restaria, seria a total decomposição.
E que insistência esta em teus olhos me ferirem, serem besta e compaixão. Os olhos que ora me fustigam com dúbio desinteresse, são aqueles que sob seus dourados cílios desvelaram com inédito pioneirismo essa vibração, capaz de tornar sensível mesmo as células mais mortas, pelo meu corpo rejeitadas. Se você reconhecesse a insistência deste olhar que teimosamente persigo e que com cega obstinação busco decifrar, se você soubesse que já sofro com seus sons, guinchos e ruídos, não abriria a boca para dizer palavra.
De onde, e de onde sai esta fúria?
Talvez um pequeno e ressentido homem, rabugento e mal educado - e que esconda uma misteriosa fraqueza em seu âmago - esteja alojado em seu corpo como uma substância entre o pâncreas e o fígado, bili que só pode ser retirada com uma bruxaria precisa. Na maior parte do tempo este homúnculo está adormecido. Mas quando acorda - e se um Deus existisse, este saberia como odeio este homenzinho - que terríveis sentimentos passo a nutrir, e o que eu não faria para vê-lo sendo fagocitado e eliminado deste pobre corpo que ingenuamente lhe abrira as portas outrora... Mas antes fosse isto, e o mistério dessa sua maledicência ácida só não é maior do que o enigma do meu coração que não pode viver sem teu sangue, meu peito que não vislumbra possibilidade outra que sequestrar teu ar, minha boca que não admite a secura da distância entre nós - teus lábios e os meus -, meus olhos que beatamente te sondam como se cada detalhe de ti apreendido fosse a última possibilidade de gozo pleno na vida, e das minhas mãos que são o canal e o casal pelo qual circula toda a minha energia quando tocam sua pele quente e enérgica, sempre ávida de ser tocada. Não tem nada que me mova neste mundo que não dependa de seus gestos, palavras e passos, como se fios invisíveis amarrados ao meu coração e cabeça me lembrassem o tempo todo de que o limite dos meus passos é condicionado pelo tamanho e elasticidade dessas ligações. E não há nada tão prazeroso quanto me enredar neles o máximo que posso.
E nada tão horroroso quanto ser compulsoriamente sepultado por esta âncora no meu coração, na areia movediça desta podridão que se assume, e conosco convive, como um inquilino indesejado, aquele agregado insuportável que colonizou a rede de esgoto subterrânea do nosso lar, tendo antes anunciado sua malgradada vida com uma comovente canção de dor, e disputado com a nossa disposição numa esgrima de faquinhas de rocambole.
Estamos inflamados. O homem se apaixona pelo fogo. No início, este aprende a brincar, brincar de chama, brincar de calor. Toda noite o homem vai de encontro ao fogo, destemido e insolente Ícaro buscando a promessa de noite calorosas e acolhedoras. Mal percebe o homem, mas o fogo pelo qual está apaixonado cresce com insuspeitável silêncio. O fogo, antes brando, abraços flamejantes na noite pobre, cresce e envolve o homem. Este passa a ter medo, muito medo, mas continua dispensando ao fogo todo o amor de sua vida, cultiva com afinco sua companhia, mas já está acorrentado. Um dia ele se aproxima, a casa está vazia. Acende o baseado, cai o fósforo ainda aceso no chão, e aí um clarão lhe fere a vista, o calor insuportável lhe consome. Morto de amor, suas cinzas enfeitam o macabro aposento onde, com olhos anteriormente vívidos e brilhantes, aquele homem amava e alimentava seu fogo com a própria vida.