Naquele dia a pizza havia atacado nossos bolsos. Por que quarenta reais? Muito caro, fiquei de cara! Política: lhe disse, você é um ignorante! E então, se foi. Sem saber muito bem o que fazer, hesitei uns bons vinte segundos antes de depositar o dinheiro sobre a mesa e sair à sua procura. Quarenta minutos depois, na frente da porta do vinte e cinco zero um, as luzes se prostituíam pela chegada deste elevador ao derradeiro andar. Corro, você não sairia do cubículo se eu não lhe retirasse à força de lá. Sequer me mira, age como se um mero obstáculo de um metro e setenta o impedisse de alcançar seus objetivos prediletos, finge não me ouvir, seus olhos opacos são fantasmas macabros. Algo me goela, queima. Depois de um impulso incontrolável, olho para baixo, sangue quente no assoalho do aposento.
Doutor, me ajude, a cada briga que temos perco um pouco de sangue. Ontem foi isto - e então lhe mostro um tecido vermelho-bordô, um exemplar asqueroso e viscocento da minha última gorfada. O médico olha com resignado ar de gente aventalada e conformada: o que temos aqui na nossa frente vive acontecendo, o máximo que podemos fazer por enquanto é assistir isso aí.
Ao longo de seis meses perdi partes do meu coração. Na última consulta, doutor Mariano ficou inconsolável: olhe isto, girava no ar os resultados da última ressonância do meu peito, seu coração tá igual a um queijo suíço. O que eu poderia fazer? Esperava o momento em que terminasse por abortar sua carcaça de uma vez.
Nossos olhos saltaram, meu e os daquele menino, saltitavam, se beijavam, se almoçavam, jantavam. Meu sangue esquentou, intumesci-me todo, minha boca aberta boquiabertou-se em escalas até antes desconhecidas, suavam como porcos no banho turco as palmas da minha mão.
Doutor, é urgente, liguei para Mariano por volta das duas e meia, com voz de pura irresistibilidade. Milagre!, exclamou o médico ao examinar incrédulo o novo retrato deste coração magicamente reconstituído. Sorri para ele e, cúmplice, piscou-me um olho.
Voltei para casa ávido de te contar a novidade. E então aconteceu. Você ouviu atentamente o que eu tinha a lhe dizer, e então, repentinamente, pareceu acometer-se de um mal súbito, algo como uma possessão, revirou os olhinhos, de sua garganta se ouvia os rumores laterais que sinalizavam uma movimentação árdua, doída, fatal. Corri para o hospital, doutor, me ajude! Olha como ele está! Qual é o procedimento?
Agora?, ele me retrucou, agora é só esperar. Finalmente, depois de uma semana de convalescência, fui chamado com urgência para o setor dos desesperados. Do lado de fora do vidro, assisti teu sofrimento enquanto vomitava o próprio coração inteiro de uma vez.