segunda-feira, 7 de novembro de 2016

eu sou jovem, mas não sou rico como alguns jovens da minha idade que têm empresas, e que pagam pra mim para sodomizá-los, nem talentoso como aqueles que cantam na TV, e não dá tempo de voltar no passado e estudar em escolas construcionistas bilíngues, nem pedir pro meu pai ser da área de exportações e ter o alongamento de uma menina de seis anos, e o que dá pra fazer é trocar um pouco das minhas intumescências por cédulas de cem e cinquenta e alimentar a ilusão de que um dia eu serei rico porque esses jovens reprimidos com carros de última geração vão me cobrir de dinheiro, mas é uma ilusão, eles já financiam uma casa e eu não tenho nem poupança, mas no juízo final dos corações, e minha alma está engomada, tenho certeza de que terei minhas mãos e pés lavados pelo sangue borbulhante dos medíocres.
miséria não é uma conta no negativo. miséria é um câncer que nasce imperceptível em um homem - ou numa mulher -, que se lhe apossa, domina e envenena como uma barata zumbi, antes que qualquer coisa possa ser feita.

e eu estou a salvo.

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

O garoto de programa é qualificado? – Notas de um anarco-puto sobre mercado de trabalho, ética profissional e Estado

O puto é um artista?

Há um mês fui cortar o cabelo. Uma mapô. R$25. Quarenta minutos. Desses R$25, parte substancial a casa lhe vai arrancar. Pus-me a perguntar, por que eu, sendo homem jovem, ganho pela mesma quantidade de tempo várias vezes mais que aquela mulher de meia idade. Qual é a qualificação (possível) do garoto de programa?

Creio que essa pergunta é exequível em dois intervalos: um antropológico e um atinente à ética profissional, o primeiro etnograficamente ancorado e o segundo um ato prescritivo ficcionalmente elaborado.

Do ponto de vista antropológico, a pergunta equivale ao exame do como uma atividade supostamente limiar emerge como uma prática profissional, ou sexual, ou contratual, ou jurídica, e até política, ou contingencialmente marcada por esses aspectos... Senão, a pergunta-investigação da liminaridade emergente enquanto tal, como o mundo força a prostituição como uma forma de vida liminar, um ponto de estrangulamento privilegiado para a definição dos limites entre humano/sub-humano, intelegível/ininteligível, oficial/hipócrita, moral/ameaçador...

Essa investigação é habitualmente levada a cabo por antropólogos, e por isso periga às vezes quedar-se formalista e blasé, cheia de perguntas respondidas pelos seus enunciados. Arrogante em sua elaboração, a pergunta muitas vezes contém o germe de sua desconstrução, quanto toma a liminaridade como suposta, quando capturada pelo olhar colonizador de um antropo-escandalizado. Contudo, é esse ponto de vista etnográfico, metodologicamente aposteriorístico, que facilita uma reflexão densa e situada sobre a prostituição. Assim, o que é uma qualificação para um garoto de programa? deve ser estrategicamente precedida de outras perguntas de valia antropológica, acerca da produção de um sujeito-GP, um imaginário social do gênero e do trabalho, uma pesquisa acerca de territorializações ao nível molecular, acerca do corpo e o que ele pode/fode etc.

A mesma pergunta, no entanto, entendida aprioristicamente, é que me interessa aqui, pois é uma pergunta sobre a condução política (agenciada e consciente) de uma ética profissional em construção (como qualquer ética, historicamente situada). A prática de GP (ou cyber-GP, como vou chamar aqueles que anunciam em sites especializados) tem me aproximado da compreensão de que (1) alguma qualificação é (entendida como) necessária, (2) essa qualificação é dinâmica, processual e transdisciplinar, (3) qualificação agrega valor, (4) qualificação é pesquisa e (5) qualificação-como-processo possui limites exógenos.

(1) Qualificação, quando operacionalizada, é o que define os contornos do marketing-puto, sendo construída não apenas a partir de uma matriz material, mas também representacional e performática. Quando você se anuncia na internet, não existe superfície e volume, mas texto e imagem a evocá-la. Diferentes plataformas favorecem diferentes formas de representação. O conteúdo dessas representações (cujos limites são dados [a] pela matriz que reconhece um corpo como pertencível a um GP e [b] pela interface da plataforma virtual) é performático, e é dentro desses registros que vimos a variação entre garotos contribuir para a consolidação de um valor de uso e, logo, de um mercado.
Método: qualificar é operacionalizar algo como qualificação.
Dificuldade: É fácil entender o mercado virtual para GPs, ele é estruturante; uma vez que você seja reconhecido como pertencente ao mundão, não terá dificuldade em operacionalizar o que for (tamanho do pau, performance sexual, habilidades sociais e terapêuticas etc.) como qualificação.

(2) Como já dito em outros textos, o devir-puto envolve aprendizado e contato com diversas áreas de atuação.
Passo tardes e noites – e inclusive manhãs! – praticando um treinamento baseado em uma formação eclética e interdisciplinar: teatro amador experimental, antropólogo e sociólogo, militante LGBT, bichassexual, treino em diferentes meninossexualidades, figurinista, cinismo aplicado, agenciador de um repertório de práticas sexuais atualizante, convivência com campos semânticos distintos – estrategicamente acionados –, circulante paulistano, domínio de ferramentas virtuais, marketing pessoal, empresariado autônomo etc. etc. etc.
Método: Qualificar é estar aberto a diferentes forma de qualificação.
Dificuldade: Depende da sua disponibilidade em aprender e experimentar.

(3) Minha experiência-cyber-GP aponta que, à semelhança de outras áreas, esse aprendizado tem grande potencial cumulativo, e que uma qualificação sólida (que valorize originalidade, dinamismo e ética) tende a exprimir crescimento de valor agregado ao uso.
Método: (A forma) como se qualificar é decisivo para explorar as potencialidades do valor de uso.
Dificuldade: Grande. Converter aprendizado, originalidade, dinamismo e ética em valor agregado é desafiador e depende da capacidade criativa do GP de agenciar tudo isso.

(4) Qualificação é saber qualificar, é saber pesquisar, é saber converter pesquisa em cifra e... É também pesquisa contínua; sobre performance sexual, formas de inserção no mercado, formas de se colocar profissionalmente, encarnar etiquetas diversas, experimentar limites do corpo, uma série de habilidades, consciência corporal.
Método: Qualificar tem uma dimensão longitudinal.
Dificuldade: Equivalente ao desenvolvimento de um feeling particular para compreender mudanças, intervalos, sazonalidades. Vai da sua disposição e habilidade de converter experiência em corpus de análise.

(5) Os limites exógenos à qualificação são aqueles que definem previamente a capacidade alguém ser reconhecível como GP ou não. Eles atuam dentro do próprio campo mercadológico, operando ora diferenciações (cor e silhueta como tensores libidinais são bastante evidentes), ora exclusões (do gordo, do velho, do afeminado). Eles, contudo, podem vir (aliás, virão) encarnados na figura do deus Cronos.
Método: Cuidar de si, se agenciar, mas...
Dificuldade: Os limites são, como disse, exógenos, e o tempo destrói tudo.

Toda essa descrição, que ora apresento em forma-manual (para demonstrar aquilo que considero a pergunta da qualificação de um ponto de vista apriorístico), me aproxima da compreensão do puto como um performer. A arte de ser puto, tanto quanto a do performer, é (1) fruto da qualificação de aspectos subjetivos, cujo agenciamento é orientado por um repertório social consolidado, (2) iminentemente transdisciplinar, (3) cumulativa, (4) fruto de pesquisa contínua, e (5) sujeita à força do tempo. É, como toda boa arte, controvertida e sujeita a censuras, seja do falso moralismo, seja do senso comum ou da elite acomodada. Mas, como toda boa arte no hedonista hodierno, é feita do pacto silencioso de um público que a engole e regurgita.

Esse conjunto de assertivas referem-se menos a como um puto se torna puto, e sim a como deve ser essa modalidade de putanhismo que ora apresento. Assim, falo menos de condicionantes para a emergência de um sujeito com dignidade ontológica, mas como esses condicionantes mesmos podem ser e são entrajados pelo puto.

Esse entrajamento equivale à performatização da profissão e do profissionalismo. Produzir e exercer uma ética profissional em um mundo onde tal profissão (e, logo, tal ética) não existe formalmente, é prontamente um jeito de vivê-la. Liberdade, se existe, é prática.

Gostaria de sustentar que o pleito desse ato performativo, contudo, não é e não deve ser pela mediação do Estado. Enquanto essa ética profissional for praticada no negativo daquele, o mel subversivo da prostituição há de se conservar. O agenciamento de que se beneficia o puto, depende da aversão do Estado acerca da burocratização do negócio.

Como sugerido em outro ensaio, a falta de mediação do Estado é o que permite com que as trocas sejam simulacros da gestão financeira formal, e que a autonomia de ganho se processe horizontalmente, no tête-a-tête, sem a triangulação estatal. Padrões de beleza, desigualdade de classe, racismo, sexismo e homofobia já compõe um repertório bastante carregado para as tensões e tensores dos jogos eróticos cliente-GP; por que crer que a intervenção estatal agregaria benesses de qualquer ordem aí? O logro financeiro, e mais, a dignidade de mercado deflagram-se na prática de uma ética profissional, no melhor estilo Do it yourself.

Alguém me dirá: você delira, puto! Esse mundo perfeito só existe nessa tua primavera beatnik-pequeno-burguesa. Hei de concordar, e acrescentar, ainda por cima, que a mulheres, as trans* e as mais pobres sobretudo, têm experimentado severos contornos nas margens dessa agência de mercado. Mas é porque este rascunho fala menos sobre como as coisas são, e mais sobre como devem ser (de volta à utopia), e o meu argumento é pela política do DIY, da livre-associação, do cooperativismo, e de uma ética profissional não mediada pelo Estado, humana, real life, concreta.

Então, (i) quis dissertar acerca não do que contingencialmente tem sido ou não encarado como qualificação, mas sim, sobre que qualificação é desejável (para o GP), e (ii) a qualificação que eu desejo é a aparentada à forma-performer. (iii) Essa qualificação, contudo, reside nos ruídos de um sistema de representação, o que nos coloca um dilema político-existencial (vide Parágrafo último).

Resta, talvez como um desafio aos economistas, entender que expediente é esse que se abriu para os cyber-GPs para que eles pudessem cobrar um valor/hora tão superior a uma série de trabalhos extremamente qualificados. Rio de quem leu esta última frase comprando-a inteiramente. O verdadeiro desafio do economista anarco-puto é explicar por que uma cabeleireira (cuja dignidade profissional é engolida pelo patronato e pelo asco estatal), uma performer do couro cabeludo, é quem ganha tão pouco na relação. Não se trata de nivelar por baixo, mas de conquistar e celebrar dignidade para todos e todas.

Parágrafo último.

No rastro dessas trôpegas reflexões, deixo um post-scriptumscriptum e vomitadumcontradição embutida em toda a minha argumentação: o agenciamento que resulta na performatização da profissão e da ética é, por sua vez, tributário e dependente de uma estrutura sócio-econômica brutalmente consolidada, o heterocapitalismo. A libertação do puto é Zona Autônoma Temporária ou Sociedade Anônima? Entender logro financeiro como libertador não é antes zombaria liberal? Como dar contornos mais realistas a dimensão do desafio-vida para o anarco-puto?

terça-feira, 19 de julho de 2016

você:
acidente mais picante.
pois, contente, doravante,
o sorriso mais sorriso
(brota dolorido um siso
nas arcadas deste amante)
escala monumentos
– um recorde de rendimentos –
pra bradar por sobre o pico
– brahmas, bramidos,
sonhos (re)sentidos –
“cá entrego os meus mundos”
(todos esses tão baldios),
“assassino meus jagunços”
(todos esses tão vadios),
“e chancelo a chancela
do que em mim grita, berra,
pra ouvirem mais de mil,
(que) ‘só é feliz quem erra’”!

sexta-feira, 15 de julho de 2016

se me permitissem,
toda noite seria assim.
um cálice de vinho seco, poesia...
toda noite assim seria.
muito papo e cultura,
um pouco de política...
um momento de fuga,
outro de calmaria.
a música dos teus lábios,
minha Ave Maria.
aquele anteparo
pro momento de olhar
como o olhar um do outro
é ímpar.
e do seu despreparo,
hahaha,
riso escancarado. ei!
a rua nos espera,
tem uma aventura,
nos espera a rua.

se eu me permitisse,
toda noite seria assim. sobre você,
com um cálice de vinho seco,
escrever poesia...
se eu me permitisse
só assim faria.

quinta-feira, 14 de julho de 2016

ele tem problemas pra acordar,
e eu, pra dormir.
não se furta em sonhar
acordado.
a cor mel dada
arregala
à postura cordata
deste que o deseja
de maneira insensata,
que o cerca e beija,
afaga
_e dos olhos, refrata.
pôr-do-sol em cascata.
os lábios pelados
apontam e refletem
edifícios espelhados.
é difícil esperar,
e os lábios retorcem
_uma torcida discreta
que os poros escancaram.
o arrepio suave
saúda o toque.
o calafrio cala,
as dermes se colapsam,
há gargantilha de chêros...
_e o Sol já tá posto.
a Lua encara. em seu rosto,
um sorriso amarelo
ratifica imprudente,
e sem qualquer dano,
a noite mais quente
do ano.



I

é que alguns momentos não podem ser revividos.
podem ser emulados, evocados, mas só até serem percebidos como um quadro ou um filme, algo sobre o que se sabe, mas cujo sentimento nunca é replicado perfeitamente. algo consta no coração, mas nunca é idêntico ao que passou. inescapável efeito-Heráclito da música pop: quando você ouve cem vezes a mesma canção, não é como ouvi-la no derradeiro momento em que você se apaixona por ela. o que há de humano e precário nessa busca ingênua por felicidade é a obsessão por momentos únicos, que nunca poderão ser revividos. acreditamos ser felizes quando estampamos amarelos os currículos das nossas efemérides. é então quando assentimos » sinto que posso morrer agora.

momentos como esses causam insônias, inspirações, depressões, dramas existencialistas. melhor que seja assim, contudo.


II

o que faz de um beijo um bom beijo?

você já desejou uma boca como se deseja um banho de mar num dia de calor desesperado? um voo para fora do país? você já sentiu a disritmia de dois peitos urgentes? já prolongou uma conversa para gozar do afã da comunhão de lábios e mãos? a iminência de um desejo em erupção, nos olhos incandescentes...
o desejo transforma as pessoas.


III

há não muito tempo nossos corações sobreviviam longos invernos sem qualquer vestígio de confidência. hoje quedamos indomados, ansiosos, imediatistas. como trocar cartas _e esperar por elas_ em um mundo que demanda certezas? por que nossa obsessão por elas (as certezas), que são os adornos mais insossos das nossas caminhadas?

quando um amor hiberna... quando um amor hiberna, é como se um desafio se nos instasse. que espera é tão tormentosa que se nos impõe a necessidade de atirá-lo (o amor) à fogueira? _a não atirar a nós mesmos. que claustro é tão sufocante, que voluntária pena tão infernal, que nos conduz à renúncia do desconhecido? _esse continente que nunca chega, esse mar aberto que nos encerra no irrespirável perímetro do navio. há o coração convalescente que ergue o braço para deitar sobre o chão a tumba em auto-inumação. pensa esse coração na quantidade bruta e líquida de poesia que a sua incerteza e angústia podem produzir? mãos à obra coração: qualquer forma de agonia é uma oferta à poesia.



bairro grande ou cidade pequena
a mesma louca, idosos habitués
e eu, e você
irrompendo explosivos na aurora do mundo

o rádio diz que amanhece
e o céu ainda é café preto
pingado, pão na chapa
.......................................casal
e eu, e você
na manhã das ideias
..........................sorriso boreal

os voos no asfalto
as pombas da Grande São Paulo
voar é que é fácil
e eu, e você
na madrugada da vida
pé-ante-pé, salto após salto...
e o chão se agita

segunda-feira, 11 de julho de 2016

«balada do amor lunar» ou «meu peito é um canyon» ou «ele, a Lua e eu»

lá vem a Lua minguante
com seu sorrisinho amarelo...
implacável...
irritante...
singelo...

em tudo que meti-me por necessidade, nessas de passar, ultrapassar, perpassar, trespassar, sempre fui ratificado pela Lua.
lá vem ela ligeira uma vez mais, a Lua minguante com seu sorrisinho irritante, implacável, ai essa Lua... assim que saio de um ciclone, sento-me ansioso à espreita do próximo. tornando-me tornado. como se minha vida já não fosse esse vórtice desde que me entendo por adulto. como se minha cabeça-de-vento ignorasse o tormento das tormentas, dos abismos abissais, dos abalos císmicos, cataclísmicos. coração de pedra, tanto bate que furou, falha geológica, epifenômeno dos meus caminhos. meu peito é um canyon.
vem pra me azucrinar, o satélite dos satélites, e eu, satélite dos amores, acessório dos meus adorados amantes, minhas madonas de cueca, meus pódios de chegada, meu romantismo estendido no varal ao lado dos repentes, dos de repentes, dos repetentes. eu de pé, ajoelhado, escancaro os dentes, exponho obscenos os miúdos, de amor doentes.
lá vem a Lua e seu sorriso indecente, eu, o Cupido-de-mim-mesmo, a atingir-me em acidente a fatal flecha da paixão, a cegar-me imprudente, a empunhar o tridente, a saltar rumo ao poente, e a vagar contingente.
a Lua esnobe sorri amarela, pro continente.
e eu só a espivetar o garoto dos dias. passa por mim como passam as folias, como passam euforias, as minhas aporias, minhas epifanias.

passa.
sorri para mim o garoto, um sorriso amarelo...
implacável...
minguante...
sincero...

eu do alto o enxergo, enxergo tão fundo que quase o abduzo. mas, de baixo, vejo a Lua hedionda, de risinho abstruso, que lança a maldição, me instiga e me rechaça, acha feio, mas faz pirraça. ele o que vê não sei, tão garoto, só ri, sorri, e passa.
a Lua me enxerga, e eu tão sem graça, tem algo de mim que o segue...
com ele vai e não volta.
despedaça.

e o regaço do mundo
me arregaça.

domingo, 12 de junho de 2016

s/t (o menino)

o menino que havia em mim deve voltar
um dia
em uma escrivaninha gasta de madeira ingrata
a se cercar em caracteres no NotePad
ouvindo rock psicodélico antigo
em sonhos remasterizados
iniciando no café
e nos passeios de bike pelas madrugadas
ele tinha uma aranha que muito o ouvia em todos os banhos
Samanta era o seu nome
e sua bicicleta amiga de aventuras
Heloíse o nome desta
era capaz de imaginar roteiros de filmes imaginários
enquanto pedalava pela cidade
dedicou grande parte do seu amor
à atividade enérgica de escrever no NotePad
o tempo passou sem querer
e esse menino é a melhor parte do que ainda está em mim
querendo que eu volte
e seja

terça-feira, 1 de março de 2016

molestar-se-iam para o todo-sempre-amém, mas o todo-sempre-amém nunca é todo. e é cogitando o improvável que se consumiam. a falta constante de parcimônia terminou por esgotá-los, virando tão somente casal de pepinos em conserva rumo à estação central, onde se perderiam no meio das bagagens. expectativas.

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Biorragia #1

estourei uma bolha do joelho e rumei ao xópim. dois quilômetros daqui, e tinha algo de cruel no cinza-claro, algo entre o roseclér e o turquesa, que era particularmente inapropriado e perturbador para o frio desonesto. o Cantante Amabile do meu andar não escondia a natureza da minha trôpega elegância, qual seja, a fome que começara bem quando eu mastigava o último aipo duro que ainda havia em casa pela onze horas. já era dezessete, e eu tinha que sair com antecedência para chegar na hora da janta, tendo em vista o ritmo das minhas pernas fracas. para entrar em condições na galeria, vesti algo como a minha melhor roupa, que não passava de umas flanelas meio empoeiradas. mas entrei sem caô, o bom e velho segurança era meu bom e velho parceiro, e juntos costumávamos roubar caixas de chocolate na Furdúncia, e também na Liisa. nunca soubemos porque chamavam-na de Furdúncia, mas tínhamos a ideia de que Liisa tinha mesmo esse nome, com dois is, porque havia sido batizada assim. o bom velho segurança costumava ter um nome quando éramos dois demônios pré-púberes, mas como hoje é ele quem protege os chocolates, e se veste de maneira alinhada e sofisticada, o fato de ele nunca ter me barrado justifica-se pela mera nostalgia dos tempos de infância, que a minha figura torpe hoje evocava. Kerouac, Ginsberg e todos aqueles chupadores de rola disfarçados _mas às vezes nem tanto_ não me convencem mais. o que há de mais precioso no mundo nunca esteve em estantes banais e empoeiradas, mas na trivialidade, algo que só os burgueses têm tempo para se debruçar sobre. a trivialidade, dos pequenos furtos, das notícias populares, das gotas de suor no metrô, no sabor divino de um bife duro rejeitado por um filho médio de paladar exigente. exigente não por gosto, e sim por frescura. um temaki pela metade _não gosto de pensar em comida porque salivo_ mas aquele temaki constava em uma mesma bandeja onde outro havia sido inteiramente consumido. aquele sim eu comi com gosto, e era fruto de uma mente refinada e um paladar justo. o consumidor do bife duro não é o mesmo do temaki, pois se ao primeiro tivessem servido o prato do segundo, ele certamente sequer teria dado uma segunda mordida. contudo, não estou em posição suficiente para me sublevar contra quem quer que seja, são todos invisíveis, suas salivas, gripes, sapinhos, herpes e hepatites, e eu não me importo, pois é como beijar a mesma quantidade de bocas que estou acostumado a beijar em uma noite de farra por calçadas lotadas por long necks e latas de alumínio vazias e malcheirosas. na minha cidade é impossível discernir o sabor e o gosto de um resto de cerveja de milho da urina fresca de um viado. alguns anarco-fodidos que eu atrevi a dizer que conhecia há dez anos atrás chamariam o que faço de freegan, freeganismo, mas de tão fodidos, nunca se deram conta que toda a teoria que tinham era enlatada, por isso chamavam tudo com o nome de coisas em inglês, e hoje as bichas mais bichas da sociedade, ou aquelas que se pretendem as mais bichas, criam termos colonizados tirados do hímen para sexualidades tão fractais que nunca as terão, enquanto as bichas mais bichas de verdade comem o pão que a sociedade amassou, dando a bunda por temporadas inteiras para conquistar uma barra de knorr sabor carne. felizmente eu passei no teste da fachada, e estava na praça de alimentação comendo algo um pouco além de um tablete. já havia perdido as contas de há quanto tempo vinha fazendo aquilo _decidi que não era rentável contar a partir do décimo primeiro dia seguido. enquanto os dias passavam, trabalhava em um projeto para além da penúria. contando assim, agora, vai soar equivocado ou ridículo, mas era em um instrumento musical em que você usava tão somente os pés, senão a boca e os pés, não lembro direito porque perdi meus cadernos, mas aquilo era muito sério, e a primeira versão se chamava pedofone, ou melhor, podofone, ou algo que o valha. enfim, eu comia metade de uma parmegiana, se frango ou carne, melhor ignorar, e um sujeito bem vestido se aproximou de mim, anunciando um diálogo. eu imaginei, e para fim era extremamente óbvio, de que se tratava de um magnata caçador de talentos que, em um momento de tédio, decidira entrevar-se pelos xópins de classe C, e que puxaria um assunto comigo, logo nos tornando amigos, e eu alçado ao mundo da expertise, o podofone seria mundialmente conhecido e eu coadunaria da fraternidade universal dos grandes pensadores.
_boa noite.
_tudo bem?
_tudo. eu sou o gerente da equipe de segurança, e tenho que dizer, estamos intrigados com a sua postura dentro deste xópim. não julgamos adequado que se alimente dos restos de outras pessoas, o xópim, nem qualquer restaurante a ele vinculado se responsabiliza pela sua conduta. entende isso?
_sim.
_gostaríamos que você se retirasse.
_vocês não podem fazer isso.
_é para o seu bem.
_vocês estão me ameaçando? não estou cometendo nenhum crime.
_eu sei. mas não é adequado o que está fazendo.
_tentem outro dia.
_tem que ser hoje.
_por quê?
_simplesmente acate pacificamente o convite.
_conheço meus direitos, e vocês não vão me intimidar.
_você fez sua escolha.
_exato!


passaram-se alguns meses, e eu já havia feito amizade com toda a equipe de segurança _aliás, restaurado a amizade com o guarda da frente que, vim a descobrir, nunca fora meu amigo_ e estabelecido laços com os demais funcionários dos restaurantes de fast-food, de forma que passou a ser desnecessária a procura por restos; quando as funcionárias que recolhiam os pratos não me traziam meia salada caesar, era o Indian tribe quem me fornecia um prato de cortesia _neste caso, em função da proximidade entre eu a balconista coxuda. abandonara o projeto do podofone, e agora estava envolvido com a carreira de assistente pedagógico em festas infantis, algo como alguém que presta assistência psicológica para crianças que, por ventura, sejam encontradas no meio de crises existenciais ocasionadas pelo contato com outras crianças em ambientes de lazer. poderia falar mais, mas perdi meus cadernos. nunca consegui distribuir meu portifólio. cruzei a ponte do córrego que dava acesso ao meu bairro _se é que assim posso chamá-lo_ e, num momento de despreparo, precipitei-me contra o barro em curso. foi bom, por um lado, pois pude pensar bastante no hospital, ou pelo menos houve algo dentro do conjunto de delírios que eu tive que me fez ter uma epifania.


quando voltei a beber, percebi que não era mais o mesmo, pois parei de bater nas pessoas. ficar internado deve ser menos angustiante que preso, e não sei por que me deixaram tanto tempo em um hospital mulambento, algo como dois meses, um período que só seria justificável se eu fosse portador de uma doença rara. não fui portador de nenhuma degeneração crônica, até onde sei, mas cuidaram de mim como um interno, dando comidas que eu não seria capaz de dar para um amigo na solitária. a primeira coisa que fiz depois que saí, foi beber. por algum motivo misterioso, eles me deram um cheque, nunca entendi muito bem por quê. talvez fosse alguma indenização. gastei metade em bebida, afinal, não era muito. o retorno à bebida foi pacífico. a balconista do Indian tribe me visitava quinzenalmente no hospital _só Deus sabe como eu gostaria de lembrar seu nome. pude apresentá-la ao gim. quando o dinheiro do cheque começou a minguar, mudamos para vinhos baratos e coquetéis. quando acabou, voltei para a praça de alimentação, e conheci a balconista do Frisée Gourmet, que tinha coxas ainda maiores, mas menos ânimo, o que de certa forma era confortável. no hospital comecei um novo projeto, que logo abandonei. chamava Luzes, e não lembro do que se trata, era ambicioso demais, e eu vivia dopado. mas lembro de ter tido o insight quando vi a luz do ambulatório refletida no purê de batatas aguado _tão aguado ele o era. contudo, minha maior epifania veio nos últimos dias de internação, porque estava pensando nos Idiotas do Lars, e de como eu poderia me apropriar das benesses daquele espaço. me reuni com a balconista do Frisée _esta, de fato, não era portadora de um nome apropriado_, que era a pessoa em quem eu depositava mais confiança, e, em um momento de idílio, confessei quais eram meus planos. desde então, fui barrado peremptoriamente do xópim, e das coxas dela, o que me deixa muito comovido. mas acredito que tudo isso tenha sido bom, a internação, os dias no xópim, as coxas, as ideias. não me queixo. se meu plano terrorista tivesse logrado, talvez não teria tempo para deitar aqui minhas palavras, uma vez que me tornaria uma grande celebridade, e grandes celebridades não têm tempo para nada, como todos sabem, e se tornam pessoas extremamente dependentes de tudo e todos. é famoso o caso da Brigitta, não preciso mencionar o episódio do flagrante. antes que eu fosse surpreendido com papparazzi em uma cena desconcertante, a funcionária do Frisée fez o grande favor. vendo de uma perspectiva otimista, eu escapei de ser preso naquela época.


Brigitta foi flagrada enquanto sua terapeuta limpava a sua bunda. e eu gostaria de ter o que limpar, mas o meu intestino não sabia o que era bolo fecal há uma semana. foi quando adaptei meu plano inicial, que era fazer desmaiar todos aqueles que estivessem dentro do xópim, por meio de um sofisticado projeto de engenharia que, por algum infortúnio, eu perdi, mas tinha um nome. o gás etéreo permitiria que eu, com agilidade, e munido de uma máscara de gás, retirasse quantias disponíveis em bolsos e caixas, e certamente todas aquelas pessoas receberiam indenizações em cheques como o que eu recebi. a adaptação consistia de uma montagem eclética entre hipnose e um encadeamento discursivo do tipo Polishop. comecei treinando com Brigitta, nome que dei à cadela com quem fiz amizade. a vantagem desta Brigitta, é que eu não precisava limpar a sua bunda. acredito que, com algum êxito, a cadela cedeu e, se tivesse dinheiro, certamente me daria. como se alimentava melhor do que eu, tinha muito mais ânimo, tive que admitir que, em uma ocasião específica, fora ela quem me hipnotizou. mas pelo menos foi uma vez só.


comecei a perder a paciência, e tirei o componente psicológico da minha abordagem, tornando-a cada vez mais transparente e política. percebi que lograva igual, o que por si só não era um bom sinal. a última vez em que apostei nessa abordagem, recebi uma iluminação.
_oi.
_...
_me dá dinheiro.
_não tenho. 
não tenho, não tenho, não tenho... essa frase rodou na minha cabeça, rodou muito. algo dentro dela parecia prometer muito alento, paz, e dias queridos. nos meus dias de CL, tinha um conhecido, que eu chamava de amigo, que me apresentou Irreversível do Gaspar Noé e dizia que Jorge Ben era o maior poeta dadaísta da MPB, citando trechos supostamente surrealistas, e ele coadunava de todos os preceitos do anarquismo ontológico de Hakim Bey, mas já era extremamente crítico, e eu estava começando a ser crítico, e ele mencionava Nietzsche com uma naturalidade anormal para um jovem de sua idade. hoje ele opera no mercado financeiro, mas ainda lê Deleuze e pensa em semiótica. algumas coisas mudam, lhe disse um dia. acho que ele pensa que é anarquista, e talvez seja. talvez a insônia faça algumas pessoas geniais, e a inércia e a indolência congele outras. acho que não posso mais dormir. tenho um livro na minha estante que fala sobre como o capitalismo tardio criou um exército de pessoas que dormem o mínimo possível. não li, tenho muito sono quando começo. esses dias conheci um sujeito que disse ter renunciado ao dinheiro para viver. ele evita ter e gastar. eu era muito parecido com ele, em termos de penúria. mas o dinheiro, ah!, eu o queria.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Confiar

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu”.

Olhar para o horizonte tem sido desafiador. O horizonte, que servia para alentar, hoje me dá arrepios. É por esse costume de pensar no que vai ser de nós amanhã. O horizonte está dando tchau mais cedo, estamos desintegrando o horizonte. Até ontem acreditávamos em dragões. Hoje sequer podemos sustentar a fé no retorno do Sol. Já sabemos que somos parte irrisória da história. Já sabemos que a nossa existência equivale a menos que um milésimo de segundo na escala do universo. E ainda trabalhamos obstinadamente em detonar essa parca existência com o medo recorrente de que tudo vai explodir. A crise vai nos dizimar, se as armas de destruição em massa não fizerem isso antes. Se um cometa não se precipitar contra nossas cabeças, o metano vai retirar o chão sob nossos pés. Se os hormônios não nos matarem de câncer, as ondas eletromagnéticas o farão. O melhor jeito de escapar da violência urbana é se amarrando a um divã. Antes que os mísseis atinjam São Paulo, as tropas virtuais terão sido engolidas pelo acelerador de partículas. E ainda nos vemos confortáveis, achando que, pelo menos, nos livraremos do HIV ou do zika, mas o nosso consolo, com um olhar pouco arguto, sincero, se materializará no coquetel cerveja e TV, café e Rivotril. Nunca entendi como tudo isso poderia ser conciliável!
Até ontem deitávamos sobre o oceano, livres, destemidos, nossos temores eram outros, outras eram nossas preocupações. Hoje o firmamento nos ameaça. O medo de atravessá-lo nos paralisa. Se optamos por cruzá-lo, é no ímpeto de firmar territórios. Uma bandeira por metro, estamos a salvo, a Terra foi inteiramente colonizada pelo olhar, e o que sobra dessa arrogância, é que sempre achamos que sabíamos tudo, quando na verdade estávamos mentindo para nós mesmos, fingindo saber lidar com a imensidão, na qual hoje simplesmente não podemos mais confiar.
Confiar, acreditar com. Qualquer convicção é suspeita. Como fiar algo cuja fiança é moeda morta? Em tempos de individualismo generalizado, como crer em conjunto? Não soa sequer possível. Parece que foi ontem, acreditávamos em deuses, em monstros, em revoluções. Hoje preferimos nos desgarrar do contrato de mentiras que assegurava a nossa unidade, para nos tornarmos um Leviatã de micro-verdades antipáticas e sanguessugas.
Francamente, a doença do século é essa dificuldade de tecer junto. Criamos uma vida de revista científica, nossa visão de mundo se sustenta até a semana que vem. Criamos uma vida de novela, nos desapontamos muito quando não conseguimos ter uma vida medíocre, uma paixão e um final feliz. Se a vida fosse uma poesia, dificilmente acreditaríamos nela. Lemos poesias como bulas de remédio e receitas de bolos pré-prontos. Não, a vida não pode ser uma poesia!

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal?

Não importa muito a resposta atual.
Senão para as estatísticas.
falânsia #1

fazer dela,
a promiscuidade,
crime perpétuo
contra a humanidade,
que bela coerência
entre o que quero:
livrar a cidade
do que não há de sério
– o que eu aspiro só cabe
dentro,
bem dentro
do inferno.


romantismo realista

deveras conveniente.
a prática da deriva consciente só pode ser um exercício plausível para aquel_s que têm para onde retornar no fim do dia. os verdadeiros bastiões da deriva são anônimos, conhecem os verdadeiros benefícios e dissabores da reelaboração de sentido do espaço. temos muito a aprender com el_s.

deriva situacionista! eis um luxo que só cabe nas pesquisas cênicas ou filo-antropo-sociológicas dentro de editais – daquel_s pouc_s que conseguem transformar pesquisa séria e radical em cifra pública ou privada.

não que a deriva seja uma tarefa impossível. nosso realismo já é romântico, temos de nos lembrar do oposto.

[a ideia não é malhar aquel_s que estão lutando, qual recalcado, e sim fomentar a crítica]

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

fingiu recuperar-se de um susto e disse

– e aí?
– e aí que eu jamais trocaria aquilo por um Spoleto com bacon, milho, ervilha e molho branco. não é assim, também, tô exagerando, porque, por incrível que pareça, não foi traumático. foi divertido, até!
– cruzes!
– ah, tive um momento de crise existencial, mas já passou. quando eu bebo, qualquer crise parece decisiva para o que eu fui, sou e serei.
– me lembra a época dos programas.
– meus ou seus?
– meus, né?
– o nome dela era Susi, perguntei se era de verdade, não tenho a menor dúvida que ela mentiu. mesmo se tivesse dito a verdade estaria mentindo, seriam duas Susis para pessoas diferentes, meros homônimos.
– concordo com você. mas não sei se a sua perspicácia me ajudaria com uma contradição.
– não falamos mais de Susi.
– não, o tema programas com a minha rubrica.
– diga.
– por que as pessoas se importavam mais com o fato de eu tomar remédios para emagrecer do que me prostituir?
– para esse povo que somos nós, acho que a primeira coisa tem relação com a ideia de um corpo escravizado, e o seu uso da prostituição sinalizava uma ideia de corpo auto-consciente, produtor de agência...
– me soa hipócrita. tenho dois contra-argumentos. só que um depõe contra mim.
– sim?
– o primeiro, eu-friendly, é assim: por que eu sou mais auto-consciente pra me prostituir do que pra tomar remédios?
– e o outro?
– é inescapável: minha auto-consciência não existe.
– sou mais esse!
– pois é!
– será que poderiam dizer isso para mim agora, sobre a Susi, depois de tantos anos de perversão praticante?
– diriam sim. você é uma farsa!
– não me faça retornar aos meus bad feelings existenciais.
sorry, dear!
– sussi!
– bom, que tal então um Spoleto pra comemorar?
– prefiro ser um otário do Starbucks hoje.
– por que não?
– partiu!
– ...
– vou passar no crédito.
– sempre!

reunião de trabalho

exoesqueleto firme
endoesqueleto com osteoporose
torce a aperta o duodeno
o dissenso em overdose
o pretume obsceno
do aspartame hediondo
no café então em mira
- o acionista caipira
discursa em basso profondo -
e então é que atino
- como tudo isso gira
dentro do meu capuccino?

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

intervenção em discussão recente sobre estupro em lugar de pegação

se o rolezinho favoreceu os estupros ou não, o fato é que o evento trouxe visibilidade para a pegação do Bananal. o que deve ser feito com cuidado, então, é pensar as relações (se existem; quais são) estabelecidas entre um evento marcado pela presença de pessoas jovens de diversas orientações sexuais e o espaço convencional de pegação entre homens.
agora, pelo que eu sei, as relações de pegação entre homens tendem a ser marcadas pelo consentimento.

outros pontos: (i) socialização generificada não é obrigatória e inequivocamente idêntica. (ii) não vejo a promiscuidade indiscriminada meramente como um dado intrinsecamente relacionado à demanda pelo cultivo do tesão como um fim em si mesmo - a adesão acrítica a este argumento, pra mim, é falso moralismo. acho que a apropriação dos espaços públicos para sexo entre homens inclusive, historicamente, viabilizou a concentração de pessoas socialmente estigmatizadas.

concluindo, acho que estupro é uma questão muito séria. mas a caça às bruxas no Bananal se presta a um objetivo claro, que é o de purificar o espaço "público" informado por um conteúdo moral acerca das práticas que lá se estabelecem.
é transferir a responsabilidade de uma violação-de-fato a uma população facilmente estigmatizável.
é uma inferência brutal e extremamente conveniente (a de que a frequência de homens se pegando esteja relacionada aos estupros _mais do que, talvez, a existência de um espaço escuro que não pode ser mexido, já que é reserva natural de flora); temos os ingredientes para a construção de um pânico moral e um inimigo comum. pra equipe de des-comunicação do Brasil Urgente, experiente em criar esse tipo de discurso, aliás, é mais do que conveniente.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Durante parte substantiva da minha vida enchi a minha boca para vomitar as palavras mais sujas tipo boiola ou baitola ou viado, esses hiatos maravilhosos, que você enche a boca. Boi-o-la. Bai-to-la. Aí não é hiato, mas também começa com ditongo decrescente e é paroxítona. Vi-a-do, esse também é hiato, também é trissílabo. Eles não resistiam, os boi-o-las, a cada vez que eu lhes xingava, ficavam ruborizados de tesão, não resistiam, gemiam, retribuíam com notas de dinheiro, sempre múltiplos de cinquenta. Hoje, tem o arquétipo do viado medíocre. Eu penso nele como o arquétipo do viado medíocre. Entrei no pó por causa dele. Descendente de libaneses, empresário de comunicação autônomo, bem sucedido, subúrbio classe alta de Curitiba. Alto, franzino, uma hérnia na virilha, magro. Ligeiramente corcunda. Cada dobra escura de pele sob seus olhos equivaliam a um ano de pó. Cinco sob cada um. A força e a vontade levaram-no para dentro da pequenez do quarto na casa dos pais. Lá ele pode reinar. Trinta anos, bem sucedido como falei, mais até que os próprios pais. Preso dentro da pequenez da sua paranoia. Na cama era entusiasta das maiores difamações, o risco o excitava. Eu lá, cantando Geni e o Zepelim no sótão da casa dele. Quando passaria a ser claro para os pobres dos seus pais, seus escravos, que ele trazia pra dentro de casa os seus concubinos? Desprezava o irmão, um rapazote inacabado, claramente teve problemas de desenvolvimento motor e cognitivo. Abotoava até a gola as camisas Polo, cuidadosamente as cobria pela calça social, o cinto preto. Que torpe... Vejo ele implorando para rasgar a sua roupa e ouvir o estalar do cinto — senão da fivela — sobre o seu dorso. Nunca aconteceu, para além dos chutes, dos socos, tapas, mordidas e humilhações intermináveis, feminilizantes, desqualificantes, desumanizadas. Boi-oila. Li-xo. Ca-de-la. Usava uma pomada nas bolas para não ter ereções. Assim garantia que o meu pau estivesse sempre rijo e maior do que o dele. Me deu um tênis de marca... Para que pudesse tirá-lo e passar horas passando a língua por entre cada um dos dedos dos meus pés. Vestia meias-calças, vermelhas, rendadas. Me dava cigarros, brejas... Hoje, se o visse, destroçaria sua cabeça com um só golpe de bastão de beisebol. Não que eu me arrependa da tortura simulada. Mas que passei da hora de tolerar a mediocridade dos outros.