Quando eu era menor de idade, ouvia com frequência dos meus parceiros sobre um mundo pós-18, ou mesmo pós-20, onde eu teria condições de compreender algumas coisas que ainda não estava "preparado" para entender. Como naquela época eu conversava sobretudo com parceiros mais velhos mas em pé de igualdade, era também pisando nesse pé que - teimoso que sou - alcançava nas interações traços de um preconceito de idade. Era uma contradição, afinal, que eles tivessem paciência - e talvez interesse - em estar comigo, mas ao mesmo tempo usassem as noções de experiência e maturidade como forma de valorar seus argumentos e pleitear uma distância entre nós. O instrumento dessa reivindicação, à moda ACME, consistia, e consiste, né?, de um pincel especial: pinta-se um canyon entre eu e você. Logo, há um fosso entre nós.
Estava tomando banho, e então comecei a pensar em como algumas diferenças estiveram implícita e explicitamente ligadas a processos de distanciação durante e após incidências com pessoas que foram e são afetos meus. Desde comentários consagrados à maturidade e experiência para explicar atitudes e reforçar incompatibilidade de locais etários, até uma certa tendência de ser chamado por "bebê" dentro de relações "intergeracionais" (que é um termo beeeeeem forçado aqui).
Cresci, virei mulher (risos), e essas coisas pra mim continuam a ser irritantes, o que já é um dado para esse babaquismo todo!
Eis abaixo uma lista de casos paradigmáticos - ou coisa que o valha. Por algum motivo sobrenatural trata-se praticamente de caras que me deram um fora direta ou indiretamente, sendo o último mencionado um atual coincidente, cuja evasão eu honestamente temo.
Arcanjo (2008)
Eu 16 x Ele 19
Maior de idade e eu não
Assumido e eu não
Bem escolarizado, como eu, mas no Ensino Superior, e eu no Médio
Príncipe (2009)
Eu 17 x Ele 27
Maior de idade e eu não
Não assumido e eu sim
Classe média, capital social compatível com o meu
Emancipado economicamente e eu não
Mora sozinho e eu não
Não era um intelectual
Melanocetus (2012)
Eu 20 x Ele 30
Mais velho que eu
Preto e eu não
Pouco assumido e eu muito
Neerlandês (2014)
Eu 22 x Ele 16
Menor de idade e eu não
Pouco assumido e eu muito
Mora com progenitor_ e eu sozinho
Não tem autonomia financeira e eu sim
Bem escolarizado, como eu, mas no Ensino Médio, e eu no Superior
Coisa Linda (2014)
22 x 22
Não é muito escolarizado e eu sou
Acessa a redes e referências culturais pouco convergentes com as minhas - by now
Mora no subúrbio e eu não
Não tem experiência com concepções de relacionamento pouco comuns
Gostoso e eu nem tanto
O que se verifica nesses casos - especialmente os quatro primeiros - pode ser ilustrado em dois níveis interconectados (perdão pelo sociologismo, mas creio que ele pode ser elucidativo). Em um nível, normativo, a diferença opera através do drama dualista. Curioso que, entre Príncipe (27 x 17) e Neerlandês (16 x 22), tenha se operado uma inversão correspondente à ansiedade de observância da norma.
Príncipe - 27:
Emancipado economicamente, formado e profissionalmente ativo, quase nada assumido
versus [10 anos]
Eu - 17:
Morando com a mãe, cursando o Ensino Médio, ocioso e dependente da renda familiar, assumido
Eu - 22:
Uma casa que administro sozinho, formado, detentor de renda própria, assumido
versus [6 anos]
Neerlandês - 16:
Morando com a mãe, cursando o Ensino Médio, ocioso e dependente da renda familiar, poucamente assumido
Em ambos os casos os aspectos ligados ao trabalho, escolaridade e convivência doméstica estão atravessados por trajetórias/carreiras/cursos etariamente marcados. Havia, no entanto, para os dois casos, um ruído. Eu dizia que não havia diferença relevante no aspecto etário (uma vez que, com relação ao Príncipe, estávamos juntos nas convenções de classe e, no caso do segundo, estávamos profundamente sintonizados, uma vez que o garoto era também um intelectual e compartilhávamos de inúmeras referências culturais). Príncipe (27 x 17) tratava a distância etária com muita cautela. Neerlandês (16 x 22) certamente achava que as implicações da nossa diferença etária (no período específico que - supostamente - marca a chegada à "fase" adulta) estava na vanguarda das diferenças que nos ameaçavam. Uma vez ele me disse que nós éramos muito diferentes. Outra vez, disse que eu não deveria me importar tanto com um adolescente.
Curioso então que ambos tenham reivindicado a faixa etária como um fator de afastamento, ao passo que eu reiterei minha posição mesmo quando, mais velho, habitei o polo oposto. Era um antropólogo em gestação.
Na economia do envolvimento, certamente pesou o fato de eu ser assumido e os outros não. No primeiro caso, assunção e vida além-apê foram demandas à exaustão, e culminaram no fora - que rendeu música. No segundo, tentei ser cuidadoso com a menoridade do rapazote, embora acredito tê-lo assustado com minhas investidas públicas e planos de conhecer sua mãe homofóbica. Foi a maior frustração afetiva da minha vida - pois não pude viver com ele minimamente o afeto e o desejo que eu esperava.
Eu, na cabeça de Príncipe (27 x 17) - e talvez na minha também -, pleiteava a assunção por estar mais próximo de mudanças sobre concepções relacionadas a afeto entre pessoas do mesmo sexo que ele, em termos sociológicos. Ironicamente, cinco anos depois, apesar de estar submerso nessa classe geracional de gente mais facilmente assumível, tive de admitir que Neerlandês (16 x 22) estava associado a um quadro complexo; família pouco libertária, silêncio no âmbito escolar, dependência doméstica, timidez etc.
Dá pra levar em conta também a inversão entre as relações entre eu e Arcanjo (19 x 16) e, igualmente, com Neerlandês (16 x 22), no que tange especialmente à articulação idade x escolaridade.
Arcanjo 19 x 16 Eros
Bem escolarizado, como eu, mas no Ensino Superior, e eu no Médio
x
Neerlandês 16 x 22 Eros
Bem escolarizado, como eu, mas no Ensino Médio, e eu no Superior
Creio que elas agregam à análise anterior.
Chegando então ao nível intersubjetivo, fica mais fácil enxergar as polaridades molares não apenas como somas, mas operando interseccionalmente. Os três anos de diferença que me separaram de Arcanjo (19 x 16) não eram apenas três anos, mas uma distância etária que, articulada ao processo de identificação associada a práticas sexuais, catapultou o afastamento entre nós, a partir da interação de outros/as atores/atrizes, como meu pai e minha mãe, por meio da chantagem jurídica-doméstica-afetiva. Uma distância de dez anos não foi suficiente para me separar de Príncipe (27 x 17) ou Melanocetus (30 x 20), mas meros três anos situados na passagem para a maioridade - investida de ansiedade "familiar" para a última membrana do ovo a ser estourada - tornaram-se uma grande distância. Minha mãe disse que Arcanjo (19 x 16) estava botando minhoca na minha cabeça, e meu pai que ele era um pedófilo.
Mãe
Arcanjo (19) - presumidamente consolidado; colocador de minhoca na minha cabeça
x
Eu (16) - corruptível; presumidamente suscetível/ingênuo
Pai
Arcanjo (19) - pedófilo; presumidamente perigoso, perverso, deve ser combatido
x
Eu (16) - presumidamente efebo; presumidamente vulnerável, (com)passivo, devo ser salvo
No nível intersubjetivo, então, a diferença é posta à prova! Minha mãe - que fez curso técnico de psicanálise e já teve um grande amigo gay - ironicamente me levou para a terapia. Ao cabo da primeira e última sessão, a terapeuta e eu concordamos que o problema era da minha progenitora, jamais meu. Meu pai, um católico ateu, me levou pra igreja.
Pensando inversamente, talvez a mão cheia de dedos de Neerlandês (16 x 22) visasse justamente me afastar de problemas como esse - bem como preservá-lo de psico-religiosismos. Acho que uma diferença fundamental entre nós, nesse sentido, é que eu li George Orwell, Aldous Huxley, Ari Almeida, Hakim Bey e Anthony Burguess nos meus dezesseis.
Ainda pensando nos diferentes níveis de processamento da diferença, e para além do aspecto meramente etário, posso dizer que a fossa abissal que distanciou Melanocetus (30 x 20) da superfície na qual eu remava indubitavelmente tinha a ver com a inadequabilidade do meu investimento sobre ele.
negro, economicamente emancipado, 30 anos, alto, baiano de origem, assumido nos limites do gueto, austero, uninoviano tardio
x
branco, economicamente dependente, 20 anos, baixo, paulistano, assumido para além dos limites do gueto, juvenil, uspiano precoce
Certamente havia convenções de gênero difíceis de serem indicadas por mim. Certamente racializadas; na relação entre o seu samba cadenciado em tensão com o boné de aba reta indiscriminadamente usado por um playboy branquelo da USP.
Nunca foi tão estranho estar com outra pessoa em público. Essa estranheza não residia apenas como ressonância do quadro [gay-privado x hétero-público], mas era causada por uma série de fatores perturbadores, que não precisavam ser ditos, estavam nos meus olhos, nos olhos dele, e de tod_s aquel_s que presenciaram as nossas três ou quatro ficadas. Por ironia, quando voltei de Salvador, não consegui mais revê-lo. Ele simplesmente me ignorou. A leve fossa pelo menos rendeu música.
Não há como desvencilhar o peso das normas das relações moleculares. Isso por mais de um motivo. As diferenças "molares" aqui mencionadas (idade, raça, identidade associada a prática sexual, classe e silhueta) associadas a redes e referenciais sócio-culturais em curso (capital cultural) tornam de antemão movediço o terreno das interações mencionadas. Por outro lado, o desejo é - quer se admita quer não - severamente motivado pelas tensões, ou melhor, por tensores libidinais (na boca da bicha antropóloga Néstor), no nível dessas mesmas diferenciações, traçando ruídos e distorções (então desejáveis e desejosas) na polifonia etária, racial etc.
Por fim, ando pensando bastante sobre Coisa Linda (22 x 22). Tenho ultimamente esboçado um pequeno índice de aspectos que têm parecido decisivos em me alocar num devir transtornado, interessado ou indiferente aos caras com quem me relaciono.
se veste bem | carinhoso | bom de cama | gostoso | bonito | porra-louca | simpático/extrovertido | assumido | intelectual/open-minded | de esquerda | conhecedor de arte
Eis qualificativos que numa análise a posteriori agregam no diagnóstico de algumas febres ou, por oposição, em foras sem remorso (mal-vestido, indiferente, mau de cama, zuadinho, feio, coxinha, mala/introvertido, in the closet, não-intelectual/close-minded, pouco afeiçoado a política ou de direita, consumidor de produtos culturais basicamente ianques ou da Globo, ou mesmo desinteressado por produção cultural). Em outras palavras, os caras pelos quais eu fui mais louco na minha vida - com ou sem reciprocidade - estavam próximos de serem investidos desses qualificativos.
Tenho visto que propor pensar a Coisa Linda-Eros-relação a partir do vínculo, da reciprocidade, da intensidade, da liminaridade/abertura etc., em oposição à monogamia e a construtos confortáveis e eficazes, mas problemáticos, como namoro e fidelidade, tem sido fator de insegurança para ambos. Este tem sido um pilar de diferenciação contra o qual estamos lutando juntos - de bom grado, voluntariamente e felizes.
Estamos indo bem ali. Tem uma outra coisa, no entanto. Aos fins de semana, ficamos morgando. O fato de eu não estar muito bem de grana contribui pra isso, uma vez que os rolês dele envolvem bebida, balada, drogas etc. - embora tudo seja barato. Os meus rolês que, além disso, envolvem amig_s de escolarização diferente da dele e teatro, cinema "alternativo" (sempre odiarei este uso do termo) etc. - coisas com as quais ele não está nem um pouco habituado -, não lhe soam muito animador. Estamos nos gostando muito! Parece que temos um compromisso, então, que é o de trocar nossas referências sócio-culturais. Já enunciei isto entre nós, inclusive.
Me parece que o único fator que não mobilizou meu interesse a esse moço tanto quanto em relação ao Neerlandês (16 x 22), é o fato de ele não ser um intelectual (péssimo termo) - e isso tem relação com a coisa da política etc. No entanto, ele se encaixa um conjunto invejável de aspectos que o tornam muito especial e desejado por mim:
se veste bem | carinhoso | bom de cama | gostoso | bonito | porra-louca | simpático | assumido | grandemente open-minded
Cara, porra-louca e assumido são coisa rara, viu?
Enfim, não se trata de um esforço de racionalizar algo que é, na minha opinião, elementarmente impassível de ser tão hiper-codificado. Na primeira parte deste ensainho, mostrei como a diferença implicou em afastamento (sobretudo social) em casos em que eu não desejava tal distanciamento. Se diferenças foram usadas ou não como pretexto para operar esse movimento mutuamente centrífugo, não acho todavia que tenha sido gratuito que as mesmas tenham aparecido como conteúdo do background enunciado ou escancarado nos casos supracitados.
Fica de subtexto uma coisa até que meio romântica: afinal, que sentimento, que compromisso é forte o suficiente para que diferenças soem menos como distância e mais como adorno, riqueza, valor? Tal sentimento existe? Para nós, que não vivemos no clã dos Montéquio e estamos apaixonados por um Capuleto, quais são as possibilidades de agência para desafiar essas diferenças? E como o sentimento mais ou menos intenso de estar ao lado de alguém interfere ou articula tais inflexões? O que jogamos fora junto com a reiteração da norma, e o que estamos dispostos a fazer quando desejamos mais ou menos estar ao lado de alguém?
Na segunda parte do ensainho pensei em como ando concebendo minha Coisa Linda-Eros-relação. A questão esboçada é simples; como conduzir a coisa toda para um lugar em que a diferença continue honestamente agregando-como-riqueza, e não distanciando-como-apreciação-normativa. Vale a pena então pensar mutuamente na construção e negociação de sentidos para a Coisa Linda-Eros-relação. Vale a pena pensar também na potencialidade da troca; a troca é capaz de produzir, ampliar e transformar os qualificativos envolvidos. Estou falando de (i) mudança de valor/status para um qualificativo (subúrbio deixa de ser distância, passa a ser adorno), (ii) troca de conteúdos atinentes a um qualificativo (eu ouço Azealia Banks e ele discute rumos da política comigo) e (iii) criação de conteúdo (voilá! - na balança estética, aquele boné com dizeres em inglês realmente me cai muito bem).
Juro que estou fazendo uma análise a posteriori. Não escolho tipos, os tipos - em devires mais ou menos pontilhados - me escolhem. Não penso e pratico o meu mundo de vínculos assim de maneira fútil. Estou apenas buscando instrumentos para pensar meu passado e meu presente. Tive dois objetivos aqui: registrar meu desagrado com os fantasmas normativos, e apontar passos possíveis pra mim, que quero praticar afetos intensos.
Bjs