sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

2014 - O Vento

o epíteto de 2014 é O Vento, em referência à canção dos Los Hermanos. muitas músicas fizeram-se decisivas este ano (Pusher love girl, I wish i know how it would feel to be free, Conversa de botas batidas, No habrá nadie en el mundo, (Puro) Teatro, A mim e a mais ninguém, Happy, Agito e uso, Lady Marmelade, Agora só falta você, Esta noche, Tô usando crack), mas se eu tivesse que indicar aquela que me acompanhou obsessivamente ao longo do último semestre, admitiria: Meninos e meninas.

sambar das opressões com elas

admitir o conteúdo assimétrico implícito nas relações (de poder), vínculos, interações foi crucial para ingressar no jogo-vida de outra maneira.
ainda bem que eu posso brincar com opressões em cima delas, não porque essa é uma habilidade especial, mas porque eu estou munido desse pressuposto (o que posso chamar de tomada de consciência ou agência). já falei sobre isso aqui - acho que o texto mais importante de todos.
para além da estupidez de achar que eu sou um oprimido alienado e estacionado, acredito que aprendi muito surfando com minha prancha A.G.Ê.N.C.I.A. (Agora, Gato, Espero Nunca Cruzar Imbecis Again), e que tenho muito a ensinar. contra as opressões, seu détournement. para além da opressão, a liberdade de forjar sua própria realidade, da bricolagem de entulho rumo ao
céu
a
rasgar...

exercícios de alteridade radical

academia, mas sobretudo sexo explicitamente mediado por dinheiro e teatro foram cruciais para que eu tivesse contato severo com a alteridade out-of-bubble. desejo encenado com corpos que não desejava, olhares profundos e jogos cênicos cujo sucesso dependia de confiança e vibe com estranhos.
nas Sociais a gente acha que abre a cabeça, tsc tsc!, abrir a cabeça é sair da rede de gente escolarizada e militante - aliás, que é militar senão atravessar territorializações por seus efeitos subversivos? -, é pegar aquela porra de referências acadêmicas e políticas e ir viver e circular nos cantos da cidade, manhãtardinoiti...
e, claro, o maior tesão do mundo conhecer as pessoas mais incríveis... meu mundo é coisa outra, muito bom poder se reinventar, e eu muito me orgulho disso.

corpo como plataforma de transformação

publiquei ao longo do ano pelo menos quatro textos sobre mudanças fodas que se processaram ao longo da minha vida em 2014 relacionadas a sexo mediado ruidosa-e-silenciosamente por dinheiro (Mich'eu, Sobre trabalhar com sexo, ou Do sexo como trabalho, O puto e o capitalismo: Percursos da hipocrisia e Abuso policial: case report, ou, Choram _s militantes pelos prostitutos?). neste último eu listo uma série de tecnologias do corpo, das quais lancei mão para produzir efeitos e experimentações no domínio do corpo e da subjetividade.
xenical, piscina, alargadores, antropologia, whey protein, academia, teatro, bike, BCAA, prostituição, tribulus, tabaco, roupas novas, cocaína, batata-doce.
como diz Bia Preciado, um "conjunto de moléculas disponíveis hoje para fabricar a subjetividade e seus afetos". ter acesso a essas técnicas e artefatos foi crucial para empreender mudanças, testes, enfim... agência! s2

as coisas mudam

isto aqui eu já sabia, mas pude experienciar de uma maneira mais drástica este ano, pelo bem e pelo mau. dois exemplos de como as coisas mudam.
ʎ infligir gestos disciplinados e ministrar fármacos sistematicamente sobre meu corpo produziu arranjos outros; um conjunto de códigos que não acumula no nível do aprendizado, mas de uma economia da mudança física que é também cumulativa. diferente da escola, onde existem etapas, cursos etc., na academia - um "não-lugar" (péssimo termo), máquina de supressão histórica (outra péssima formulação) - as mudanças se processam em outro nível, do corpo, não mais passivo.
ʎ outra maneira de perceber a mudança nas coisas: alguém que você ama hoje, ojerizarás amanhã. alguém que poderia arriscar a própria vida por mim, hoje me difama. aquele por quem eu fui capaz de abdicar de mim mesmo, que então me oprimiu sistematicamente no âmbito conjugal-doméstico, hoje é uma pessoa por quem eu nutro ao menos indiferença-desprezo.
falei sobre este assunto de maneira mais detida quando refleti sobre um boy, mas sobretudo numa carta endereçada a uma amiga.

UNICÃO

Baraldo me aguarda.
há pouco mais de um ano atrás, quando escrevia meus campineiros leminskinhos, sonhei com UNICÃO. agora tenho condições de desenvolver minha pesquisa no mesmo chão que Néstor, ao lado de minhas melhores pessoas. vou inclusive ganhar dinheiro pra isto!
o puto, consumidor de pessoas; o filho da cantora; o maconheiro; o ateu; o promíscuo; o vagabundo; vai agora ganhar dinheiro pra fazer militância acadêmica!, e a pegação continua a mudar a minha vida cada vez pra melhor!

todo ano eu acho que é melhor que o anterior, e cada vez melhor. é assim desde 2009. 2013 foi um ano um pouco mala, confesso. mas 2011/2012 foram fodas demás... agora, 2014... viver é um barato! e ninguém me tira esse barato! nunca!

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

dilema político

voice notes

23h42
a pergunta que mobiliza esse dilema político é: como se defender da repressão institucionalizada em contextos territorializados como espaços de pegação? como dosar legitimidades, né?

23h42
por um lado existe um problema na pegação em lugares públicos - e não em casas feitas pra isso, né? - da pegação enunciar-se como uma sujeito político

23h43
aliás, ao meu ver, né, a pegação só sobrevive porque ela não é coextensiva a um sujeito de sua prática, né? você não interpela um "pegador", né? o "pegador" é um sujeito difuso, contingente. quando você acha que pegou ele na verdade você tá pegando uma pessoa que você enquadra num determinado quadro, e não a partir das práticas, né?

23h47
então retomando aquela pergunta: como se defender? como se defender da repressão institucionalizada se não pode se assumir a pegação como uma bandeira? você não só não pode assumir a pegação como uma bandeira, como o que define a pegação é exatamente essa liminaridade. a não ser que você esteja falando de uma pegação reificada que funcione apenas com simulacro dentro de cinemões e saunas, esse tipo de coisa, né? - um mercado do desejo "mais previsto" (entre aspas).

23h48
como se defender então? um jeito seria transferindo as práticas de pegação pro reino do mercado?, e da institucionalização? da transformação total em simulacro dos rituais de pegação? tsc! tsc! tsc! tsc! não! se perderia muito fazendo isso. o que é rico na pegação é justamente o questionamento do uso do espaço público, que foi capaz de empreender mudanças na malha urbana, né? então, como se defender da repressão institucionalizada, uma vez que ela tem precedentes pra operar não segundo o marco da homofobia, mas segundo...

23h49
ela tem precedentes pra operar de acordo com o uso heteronormativo, né?, homofobia invisível, que é a coerção das obscenidades em espaços públicos. então, como se defender?, sério... como? eu não sei, /\/\4|<(3|_0, como se defender? como resolver esse dilema político?

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

piada$ pronta$

pra um tal ser humano
com um tal empenho
que até em público veio
me chamar de farsa?
que estranho!
recalque bate pra quem me teve de graça...


eu não vendo meu corpo
eu comungo


sou garoto de programa
seu desejo se inflama
ele finge que te ama
[quando o leva para a cama]
e arranca sua grana


o corpo é meu
- pelo que sei.
cê tem o seu
- ainda bem!
eu não preci-
so de anuência
- quanto mais de
essa presenç'
um
tan
to
quan
t'in
de
li
ca
da.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Carta a Geórgia

Geo,


O AMOR É SEXUALMENTE TRANSMISSÍVEL

Eis a epígrafe de um dos meus romances prediletos. Pensei nisso enquanto lia o seu desabafo.

Fiquei muito triste em ler o seu - belíssimo - texto sobre pensamentos avulsos, que de avulsos nada tinham. Pelo que parece eles pulularam espontâneos, mas eram monotemáticos, e se consagravam a um tema bem pouco aleatório: ______________ [lacuna que você pode preencher da maneira que achar apropriada].

Me chama a atenção você priorizar a escrita em português - e, por enquanto, não traduzir o texto. Isso pode significar pelo menos duas coisas: 1. afastar a interlocução da sua rede grega, chamando teus/tuas amig_s brasileir_s p/ pensar e sentir contigo; 2. quando a gente explode, as lágrimas-estilhaços vêm na língua-mãe(-e-pai).

Eu tenho um débito - péssimo termo - contigo, por muitos motivos, mas sobretudo pelo apoio que você me deu naquele fim de 2008. Talvez uma coisa parecida esteja pintando nesse teu coraçãozinho helênico: no momento em que você descobre de fato que um campo de sensações e afetos muito massa está disponível em vários níveis do corpo, o ser humano de quem você gosta arranca teu chão e diz VAI SOZINH_!

Esta cartinha é sobre FIM! Contudo, é um texto otimista.

Estou cada vez mais convencido que AS COISAS ACABAM! Os artefatos acabam, as coisas, as pessoas acabam, o Chaves, o Chávez, os vínculos acabam, também os gatinhos, as cobras, a Grécia Antiga, até a Grande Família - ufa! - e, se tudo der certo, o capitalismo, e se der mais certo ainda, o planeta Terra. A minha experiência com celulares, sentimentos, animais de estimação e diarreias, pelo menos, é essa. Nós, aproximadamente ocidentais, temos uma obsessão em um mecanismo específico de dar sentido ao mundo: essencializando fatos, substancializando eventos. E isso a gente faz com a cabeça, o coração, as mucosas, a boca, as mãos. A ilusão de estabilidade traz paz e inteligibilidade para nós terráque_s. Quando a gente se entrega a essa ilusão a gente perde do horizonte que a experiência real é um compensado mal-sucedido de fragmentos, seções e pontilhados aos quais damos o nome de vida, família, carreira, casamento, maturidade. Vivemos numa tensão entre vida real instável e a suposta estabilidade que muita gente quer e jamais terá.

Isso tudo acontece também através do afeto.

Durante certo tempo da minha vida, tive a ilusão de que estava condenado à felicidade ao lado de uma pessoa. Então, finalmente entendi o significado de "eterno enquanto dure". Ao cabo da frequência afetiva que eu tinha com o ser humano, uma série de perturbações já haviam se processado e causado enorme sofrimento, devo dizer, para ambos.

Hoje, quando as pessoas me perguntam "por que acabou?", eu acho que essa é uma formulação injusta. Assim o é porque, para mim, AS COISAS NÃO ACABAM! Ué, mas eu não disse exatamente o oposto lá atrás, que as coisas morrem, os processos findam...? É! É que o complemento que liga os dois axiomas é: A DESTRUIÇÃO É UM ATO DE CRIAÇÃO! Ou, as coisas acabam-começam/começam-acabam, nascem-morrem/morrem-nascem, ou, simplesmente, transformam-se.

Agora, qual o porquê dessa espinafração toda?

Se o FIM é por vezes uma bosta, ele também é possibilidades mil. Um monte de escombros são também criação pulsante. A matéria do meu cadáver pode virar uma bela estrela. Uma boa fossa é promessa de uma boa superação.

Eu não sei em que pé - mão, cabeça - você está com a grega. Mas, se eu posso te dizer algo pra te confortar em noites vazias, esse algo é isto: O FIM É UM COMEÇO, e dos processos que se apresentam como destruição a gente tem mais é que tirar proveito. 1. A gente aprende. 2. Ainda bem que viver é trágico - se fosse fácil não teria graça nenhuma. Se voltar aos braços da grega, tanto melhor - ou não, pois, lembra Gaspar Noé em Irreversível, O TEMPO DESTRÓI TUDO. Se não voltar, maravilha!, estamos aprendendo. E curta a fossa, que nem sempre a gente tem oportunidade de sofrer por amor.

Isso talvez seja antídoto pra ressaca, mas não pra entrega. Sobre esta, que posso dizer senão: se entrega mesmo!, quando quiser. A gente vê as relações de maneira tão produtivista que nunca se entrega pra ninguém se não houver reciprocidade - que é uma ilusão. Pois foda-se o individualismo, se entrega mesmo, chafurda na lama se preciso, mas cultive seu coração como uma bomba - já que, sabemos, até agora, não há nenhum indício de que ele vai durar pra sempre.

Mas, e isso é estratégico, tenha chãos alternativos. Se não os tiver pela vista, com 99% de chance, cedo ou tarde, os terá.

E, saiba amiga, que, para o que precisar, que seja para impulsionar teus saltos ou sedimentar teu solo para a queda, estou disponível.

Fica bem.

Bjs eróticos

PS: Ah! Tem uma música que eu ouvi muito este ano. Talvez você goste. Chama Meninos e meninas.

domingo, 7 de dezembro de 2014

A serviço da diferença, ou, Por um romantismo (do) outro

Quando eu era menor de idade, ouvia com frequência dos meus parceiros sobre um mundo pós-18, ou mesmo pós-20, onde eu teria condições de compreender algumas coisas que ainda não estava "preparado" para entender. Como naquela época eu conversava sobretudo com parceiros mais velhos mas em pé de igualdade, era também pisando nesse pé que - teimoso que sou - alcançava nas interações traços de um preconceito de idade. Era uma contradição, afinal, que eles tivessem paciência - e talvez interesse - em estar comigo, mas ao mesmo tempo usassem as noções de experiência e maturidade como forma de valorar seus argumentos e pleitear uma distância entre nós. O instrumento dessa reivindicação, à moda ACME, consistia, e consiste, né?, de um pincel especial: pinta-se um canyon entre eu e você. Logo, há um fosso entre nós.

Estava tomando banho, e então comecei a pensar em como algumas diferenças estiveram implícita e explicitamente ligadas a processos de distanciação durante e após incidências com pessoas que foram e são afetos meus. Desde comentários consagrados à maturidade e experiência para explicar atitudes e reforçar incompatibilidade de locais etários, até uma certa tendência de ser chamado por "bebê" dentro de relações "intergeracionais" (que é um termo beeeeeem forçado aqui). 

Cresci, virei mulher (risos), e essas coisas pra mim continuam a ser irritantes, o que já é um dado para esse babaquismo todo!

Eis abaixo uma lista de casos paradigmáticos - ou coisa que o valha. Por algum motivo sobrenatural trata-se praticamente de caras que me deram um fora direta ou indiretamente, sendo o último mencionado um atual coincidente, cuja evasão eu honestamente temo.

Arcanjo (2008)

Eu 16 x Ele 19
Maior de idade e eu não
Assumido e eu não
Bem escolarizado, como eu, mas no Ensino Superior, e eu no Médio

Príncipe (2009)

Eu 17 x Ele 27
Maior de idade e eu não
Não assumido e eu sim
Classe média, capital social compatível com o meu
Emancipado economicamente e eu não
Mora sozinho e eu não
Não era um intelectual

Melanocetus (2012)

Eu 20 x Ele 30
Mais velho que eu
Preto e eu não
Pouco assumido e eu muito

Neerlandês (2014)

Eu 22 x Ele 16
Menor de idade e eu não
Pouco assumido e eu muito
Mora com progenitor_ e eu sozinho
Não tem autonomia financeira e eu sim
Bem escolarizado, como eu, mas no Ensino Médio, e eu no Superior

Coisa Linda (2014)

22 x 22
Não é muito escolarizado e eu sou
Acessa a redes e referências culturais pouco convergentes com as minhas - by now
Mora no subúrbio e eu não
Não tem experiência com concepções de relacionamento pouco comuns
Gostoso e eu nem tanto

O que se verifica nesses casos - especialmente os quatro primeiros - pode ser ilustrado em dois níveis interconectados (perdão pelo sociologismo, mas creio que ele pode ser elucidativo). Em um nível, normativo, a diferença opera através do drama dualista. Curioso que, entre Príncipe (27 x 17) e Neerlandês (16 x 22), tenha se operado uma inversão correspondente à ansiedade de observância da norma.

Príncipe - 27:
Emancipado economicamente, formado e profissionalmente ativo, quase nada assumido
versus [10 anos]
Eu - 17:
Morando com a mãe, cursando o Ensino Médio, ocioso e dependente da renda familiar, assumido

Eu - 22:
Uma casa que administro sozinho, formado, detentor de renda própria, assumido
versus [6 anos]
Neerlandês - 16:
Morando com a mãe, cursando o Ensino Médio, ocioso e dependente da renda familiar, poucamente assumido

Em ambos os casos os aspectos ligados ao trabalho, escolaridade e convivência doméstica estão atravessados por trajetórias/carreiras/cursos etariamente marcados. Havia, no entanto, para os dois casos, um ruído. Eu dizia que não havia diferença relevante no aspecto etário (uma vez que, com relação ao Príncipe, estávamos juntos nas convenções de classe e, no caso do segundo, estávamos profundamente sintonizados, uma vez que o garoto era também um intelectual e compartilhávamos de inúmeras referências culturais). Príncipe (27 x 17) tratava a distância etária com muita cautela. Neerlandês (16 x 22) certamente achava que as implicações da nossa diferença etária (no período específico que - supostamente - marca a chegada à "fase" adulta) estava na vanguarda das diferenças que nos ameaçavam. Uma vez ele me disse que nós éramos muito diferentes. Outra vez, disse que eu não deveria me importar tanto com um adolescente.

Curioso então que ambos tenham reivindicado a faixa etária como um fator de afastamento, ao passo que eu reiterei minha posição mesmo quando, mais velho, habitei o polo oposto. Era um antropólogo em gestação.

Na economia do envolvimento, certamente pesou o fato de eu ser assumido e os outros não. No primeiro caso, assunção e vida além-apê foram demandas à exaustão, e culminaram no fora - que rendeu música. No segundo, tentei ser cuidadoso com a menoridade do rapazote, embora acredito tê-lo assustado com minhas investidas públicas e planos de conhecer sua mãe homofóbica. Foi a maior frustração afetiva da minha vida - pois não pude viver com ele minimamente o afeto e o desejo que eu esperava.

Eu, na cabeça de Príncipe (27 x 17) - e talvez na minha também -, pleiteava a assunção por estar mais próximo de mudanças sobre concepções relacionadas a afeto entre pessoas do mesmo sexo que ele, em termos sociológicos. Ironicamente, cinco anos depois, apesar de estar submerso nessa classe geracional de gente mais facilmente assumível, tive de admitir que Neerlandês (16 x 22) estava associado a um quadro complexo; família pouco libertária, silêncio no âmbito escolar, dependência doméstica, timidez etc.

Dá pra levar em conta também a inversão entre as relações entre eu e Arcanjo (19 x 16) e, igualmente, com Neerlandês (16 x 22), no que tange especialmente à articulação idade x escolaridade.

Arcanjo 19 x 16 Eros
Bem escolarizado, como eu, mas no Ensino Superior, e eu no Médio
x
Neerlandês 16 x 22 Eros
Bem escolarizado, como eu, mas no Ensino Médio, e eu no Superior

Creio que elas agregam à análise anterior.

Chegando então ao nível intersubjetivo, fica mais fácil enxergar as polaridades molares não apenas como somas, mas operando interseccionalmente. Os três anos de diferença que me separaram de Arcanjo (19 x 16) não eram apenas três anos, mas uma distância etária que, articulada ao processo de identificação associada a práticas sexuais, catapultou o afastamento entre nós, a partir da interação de outros/as atores/atrizes, como meu pai e minha mãe, por meio da chantagem jurídica-doméstica-afetiva. Uma distância de dez anos não foi suficiente para me separar de Príncipe (27 x 17) ou Melanocetus (30 x 20), mas meros três anos situados na passagem para a maioridade - investida de ansiedade "familiar" para a última membrana do ovo a ser estourada - tornaram-se uma grande distância. Minha mãe disse que Arcanjo (19 x 16) estava botando minhoca na minha cabeça, e meu pai que ele era um pedófilo.

Mãe
Arcanjo (19) - presumidamente consolidado; colocador de minhoca na minha cabeça
x
Eu (16) - corruptível; presumidamente suscetível/ingênuo

Pai
Arcanjo (19) - pedófilo; presumidamente perigoso, perverso, deve ser combatido
x
Eu (16) - presumidamente efebo; presumidamente vulnerável, (com)passivo, devo ser salvo

No nível intersubjetivo, então, a diferença é posta à prova! Minha mãe - que fez curso técnico de psicanálise e já teve um grande amigo gay - ironicamente me levou para a terapia. Ao cabo da primeira e última sessão, a terapeuta e eu concordamos que o problema era da minha progenitora, jamais meu. Meu pai, um católico ateu, me levou pra igreja.

Pensando inversamente, talvez a mão cheia de dedos de Neerlandês (16 x 22) visasse justamente me afastar de problemas como esse - bem como preservá-lo de psico-religiosismos. Acho que uma diferença fundamental entre nós, nesse sentido, é que eu li George Orwell, Aldous Huxley, Ari Almeida, Hakim Bey e Anthony Burguess nos meus dezesseis.

Ainda pensando nos diferentes níveis de processamento da diferença, e para além do aspecto meramente etário, posso dizer que a fossa abissal que distanciou Melanocetus (30 x 20) da superfície na qual eu remava indubitavelmente tinha a ver com a inadequabilidade do meu investimento sobre ele.

negro, economicamente emancipado, 30 anos, alto, baiano de origem, assumido nos limites do gueto, austero, uninoviano tardio
x
branco, economicamente dependente, 20 anos, baixo, paulistano, assumido para além dos limites do gueto, juvenil, uspiano precoce

Certamente havia convenções de gênero difíceis de serem indicadas por mim. Certamente racializadas; na relação entre o seu samba cadenciado em tensão com o boné de aba reta indiscriminadamente usado por um playboy branquelo da USP.

Nunca foi tão estranho estar com outra pessoa em público. Essa estranheza não residia apenas como ressonância do quadro [gay-privado x hétero-público], mas era causada por uma série de fatores perturbadores, que não precisavam ser ditos, estavam nos meus olhos, nos olhos dele, e de tod_s aquel_s que presenciaram as nossas três ou quatro ficadas. Por ironia, quando voltei de Salvador, não consegui mais revê-lo. Ele simplesmente me ignorou. A leve fossa pelo menos rendeu música.

Não há como desvencilhar o peso das normas das relações moleculares. Isso por mais de um motivo. As diferenças "molares" aqui mencionadas (idade, raça, identidade associada a prática sexual, classe e silhueta) associadas a redes e referenciais sócio-culturais em curso (capital cultural) tornam de antemão movediço o terreno das interações mencionadas. Por outro lado, o desejo é - quer se admita quer não - severamente motivado pelas tensões, ou melhor, por tensores libidinais (na boca da bicha antropóloga Néstor), no nível dessas mesmas diferenciações, traçando ruídos e distorções (então desejáveis e desejosas) na polifonia etária, racial etc.

Por fim, ando pensando bastante sobre Coisa Linda (22 x 22). Tenho ultimamente esboçado um pequeno índice de aspectos que têm parecido decisivos em me alocar num devir transtornado, interessado ou indiferente aos caras com quem me relaciono.

se veste bem | carinhoso | bom de cama | gostoso | bonito | porra-louca | simpático/extrovertido | assumido | intelectual/open-minded | de esquerda | conhecedor de arte

Eis qualificativos que numa análise a posteriori agregam no diagnóstico de algumas febres ou, por oposição, em foras sem remorso (mal-vestido, indiferente, mau de cama, zuadinho, feio, coxinha, mala/introvertido, in the closet, não-intelectual/close-minded, pouco afeiçoado a política ou de direita, consumidor de produtos culturais basicamente ianques ou da Globo, ou mesmo desinteressado por produção cultural). Em outras palavras, os caras pelos quais eu fui mais louco na minha vida - com ou sem reciprocidade - estavam próximos de serem investidos desses qualificativos.

Tenho visto que propor pensar a Coisa Linda-Eros-relação a partir do vínculo, da reciprocidade, da intensidade, da liminaridade/abertura etc., em oposição à monogamia e a construtos confortáveis e eficazes, mas problemáticos, como namoro e fidelidade, tem sido fator de insegurança para ambos. Este tem sido um pilar de diferenciação contra o qual estamos lutando juntos - de bom grado, voluntariamente e felizes.

Estamos indo bem ali. Tem uma outra coisa, no entanto. Aos fins de semana, ficamos morgando. O fato de eu não estar muito bem de grana contribui pra isso, uma vez que os rolês dele envolvem bebida, balada, drogas etc. - embora tudo seja barato. Os meus rolês que, além disso, envolvem amig_s de escolarização diferente da dele e teatro, cinema "alternativo" (sempre odiarei este uso do termo) etc. - coisas com as quais ele não está nem um pouco habituado -, não lhe soam muito animador. Estamos nos gostando muito! Parece que temos um compromisso, então, que é o de trocar nossas referências sócio-culturais. Já enunciei isto entre nós, inclusive.

Me parece que o único fator que não mobilizou meu interesse a esse moço tanto quanto em relação ao Neerlandês (16 x 22), é o fato de ele não ser um intelectual (péssimo termo) - e isso tem relação com a coisa da política etc. No entanto, ele se encaixa um conjunto invejável de aspectos que o tornam muito especial e desejado por mim:

se veste bem | carinhoso | bom de cama | gostoso | bonito | porra-louca | simpático | assumido | grandemente open-minded

Cara, porra-louca e assumido são coisa rara, viu?

Enfim, não se trata de um esforço de racionalizar algo que é, na minha opinião, elementarmente impassível de ser tão hiper-codificado. Na primeira parte deste ensainho, mostrei como a diferença implicou em afastamento (sobretudo social) em casos em que eu não desejava tal distanciamento. Se diferenças foram usadas ou não como pretexto para operar esse movimento mutuamente centrífugo, não acho todavia que tenha sido gratuito que as mesmas tenham aparecido como conteúdo do background enunciado ou escancarado nos casos supracitados.

Fica de subtexto uma coisa até que meio romântica: afinal, que sentimento, que compromisso é forte o suficiente para que diferenças soem menos como distância e mais como adorno, riqueza, valor? Tal sentimento existe? Para nós, que não vivemos no clã dos Montéquio e estamos apaixonados por um Capuleto, quais são as possibilidades de agência para desafiar essas diferenças? E como o sentimento mais ou menos intenso de estar ao lado de alguém interfere ou articula tais inflexões? O que jogamos fora junto com a reiteração da norma, e o que estamos dispostos a fazer quando desejamos mais ou menos estar ao lado de alguém?

Na segunda parte do ensainho pensei em como ando concebendo minha Coisa Linda-Eros-relação. A questão esboçada é simples; como conduzir a coisa toda para um lugar em que a diferença continue honestamente agregando-como-riqueza, e não distanciando-como-apreciação-normativa. Vale a pena então pensar mutuamente na construção e negociação de sentidos para a Coisa Linda-Eros-relação. Vale a pena pensar também na potencialidade da troca; a troca é capaz de produzir, ampliar e transformar os qualificativos envolvidos. Estou falando de (i) mudança de valor/status para um qualificativo (subúrbio deixa de ser distância, passa a ser adorno), (ii) troca de conteúdos atinentes a um qualificativo (eu ouço Azealia Banks e ele discute rumos da política comigo) e (iii) criação de conteúdo (voilá! - na balança estética, aquele boné com dizeres em inglês realmente me cai muito bem).

Juro que estou fazendo uma análise a posteriori. Não escolho tipos, os tipos - em devires mais ou menos pontilhados - me escolhem. Não penso e pratico o meu mundo de vínculos assim de maneira fútil. Estou apenas buscando instrumentos para pensar meu passado e meu presente. Tive dois objetivos aqui: registrar meu desagrado com os fantasmas normativos, e apontar passos possíveis pra mim, que quero praticar afetos intensos.

Bjs

s/t [p/ A.]

.............se eu pudesse responder
.............à altura que eu quisesse
..........seria mais....que grave ou agudo!
que uma tal paz.......em...face...a...tudo
(p.ex. cê me atura) e em que pese
....................seu esforço em saber
- qualquer encanto, qualquer jura -
ah!.........se eu pudesse responder,
...em face ao peso, pesando tudo,
responderia quieto,
.................................calado,
..............................................mudo
..........................você
...................................iria
........................................entender

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

A maldição da rosa

Dir-se-ia que, a cada rosa que entregasse, estava fadado a submeter-se à contagem regressiva. Não resistia, todavia, à tentação de presentear a cada um daqueles rapazes com quem se enamorava com o regalo. Em um primeiro momento, a rosa lhes causava parcial consternação. Por demasiado significativa, ou saturada de belicidade, os coraçõezinhos prenhejavam de brotoejazinhas coloridas, algumas denotavam dúvida, outras puro júbilo. A surpresa e o encanto, contudo, preenchia-lhes a face de distensões até antes nunca catalogadas pela história dos rostos amantes. Passados alguns dias, ou semanas, de repente viam-se entediados, qual o pretume que lhes acometia o botão, ou mesmo as sediciosas pétalas a se suicidar. A rosa, qual um presságio de mau agouro, anunciava então prematuro clímax, aclamava um final de bóstax. O nosso jovem apaixonado, entregue, jamais entendeu a razão de uma tal guinada em suas odisseias. Entrega-se aos álcoois, sempre disponíveis corpos outros, amigos e vícios ciclísticos e musicais, um violão aqui, uma roldana lá, pensando, "será o meu maior erro amar rosando?". Ele está certo de que sua resposta será sempre errada. Mas prossegue, insistente, teimoso, obcecado... Sabe que uma vida sem rosas, é uma vida sem cor, sem cheiro, e sem os sorrisos largos, autênticos, calorosos, das pessoas que tanto queremos bem.

domingo, 23 de novembro de 2014

caderno de campo #apó$ gozada

deitados na cama, ainda suados, ele levemente ofegante pergunta no motel rústico da marginal Tietê.
- mas isso dá dinheiro mesmo? porque é tão fácil conseguir sexo hoje em dia...
- a pergunta correta não é "se isso dá dinheiro", mas "por que isso dá dinheiro?".
- qual o perfil, assim?
- homens de 28 a 60 anos, em geral brancos, de bairros nobres de São Paulo. a maioria tem entre 35 e 45.
ele, que é negro, comenta:
- então eu me afasto desse perfil.
- um pouco. onde você mora?
- perto da Saúde.
- então nem tanto. aliás essa parte aí, Saúde, Praça da Árvore, Chácara Klabin tem um puta potencial, conheci este ano por conta do trampo.
- você acha que os clientes têm um fetiche de mostrar que têm dinheiro?
hesito.
- não. acho que existam gays empresários pros quais michês internacionais figurem como signos de distinção. não é o meu caso, nem dos meus colegas, nem da maioria, porque meus clientes têm vergonha de sair com garotos de programa, só eles e eu sabemos.
- eu acho que tem o fetiche em pagar. e eu também gosto de cara novinho que nem você.
eu, meio que socraticamente, lhe digo:
- então você está ajudando a responder a pergunta.
silêncio-dúvida. completo:
- a pergunta "por que se paga, se é tão fácil conseguir sexo?". tem o fetiche do dinheiro, e o fetiche da idade também, por exemplo.
- é, muda quando entra critério.
- isso.
ele prossegue:
- quando alguém tá afim só de rola é muito fácil, é só ir pra qualquer canto que já consegue. agora, quando entra critério, a coisa muda.
concordo. levanto impaciente com o tempo - que era dinheiro - e digo:
- preciso urgentemente de um banho.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Sobre lentes de contato verdes, alisamento de cabelos, tingimento de loiro

Talvez seja um pouco mais do que 'emular branquitude'. Na economia das interpelações concernentes a raça talvez caiba dizer, quando é grande o "contraste" entre signos de distinção racial, que se possa falar menos em 'emular branquitude', mas de fato em 'negritudes europeizadas'. Ou ciborgues mezzo brancos mezzo pretos. Às vezes, quando vejo clipes estadunidenses de black music, é difícil compreender o status do cabelo alisado em meio à circulação de referências à negritude.
Na minha família [de sangue], há dez anos atrás, se ouvia sobre esse conjunto de convenções estéticas ligadas a raça, que agregariam a um processo chamado baianagem, junto com um conjunto de procedimentos associados à incivilidade. Há aqui a presença do caráter de classe operando interseccionalmente (bem como um regionalismo embutido no termo que designa as práticas e convenções destacadas).
Felizmente, meus familiares [de sangue] estão mais "civilizados" e "politicamente corretos"; embora façam tal tipo de julgamento de maneira eufemística - ao menos na minha frente, que sou um chato. Felizmente, também, meus familiares [de sangue] estão cada vez mais distantes de mim.


Sobre boné e baby look aos cinquenta anos

A coisa do "contraste" funciona para se pensar em termos etários. Como cada coisa deve estar no seu lugar, não é de bom tom que um corpo interpelado como velho reivindique uma indumentária incompatível com as convenções vigentes associadas a sua faixa etária.


Sobre baby look para gord_s

Aqui os marcadores de silhueta indicam a que corpo cabe determinado corte. Nessa economia ao nível do corpo, algumas saliências são interditadas, e talvez só sejam parcialmente autorizadas caso elididas do espaço público.
Estou lembrando quando uma tia, se dirigindo a mim, censurava uma mulher gorda que exibia sua barriga na rua. Lembro também do efeito (supostamente) cômico do corpo gordo em quadros de humor (o filme Prinsessa, por exemplo, tematiza a juventude de uma incrível atriz que é gorda).


Sobre WhatsApp

Não confundir isolamento com hiper-socialização.
Creio que o dispositivo de controle embutido nesses mecanismos capilarizados de comunicação - atrelado a exigências de mercado, e associado e um determinado paradigma de linguagem - é mais digno de nota do que um suposto isolamento, ilustrado por aí em imagens que atestam a "tristeza" da desintegração dos laços sociais.
Creio que o que está em jogo não é isolamento do mundo social, mas talvez dispersão em relação ao mundo não-virtual. São mundos sociais que se tensionam, ora concorrendo, ora convergindo.
Os smartphones processam algo incrível, dão pulos de pulga na direção do sonho do fim das barreiras na comunicação. Trata-se de duas redes sociais superpostas, e ao mesmo tempo interconectadas. As pessoas no metrô não mais exibem pura letargia, estão conectadas a outras pessoas.
A minha experiência com aplicativos remete à dilatação da minha rede e vínculos. Por meio de apps voltados para encontros entre homens (Grindr, Scruff, GuySpy, Hornet etc.) ampliei minhas possibilidades de encontro na vida não-virtual com pessoas que ainda não tinha conhecido, por meio do WhatsApp estou mais próximo de uma rede muito ampla de pessoas, dividindo com facilidade fragmentos da minha vida diária, mas também articulando encontros não-virtuais a partir da distribuição cartográfica contingente, por meio do FaceBook Messenger me aproximei de pessoas que me contactam esporadicamente, e com aquelas que não têm celular com android - ou sequer têm celular.
Duas observações necessárias, porque eu não sou trouxa. Em primeiro lugar, estou ciente dos mecanismos de controle presentes nessa forma de experienciar interações entre pessoas. O controle passa a ser coletivamente mediado, com um forte componente voluntário, e associado a uma espécie de twitterização da vida. Em segundo lugar, a aquisição e manutenção de determinados bens de consumo é necessária para se ter acesso às redes suportadas por esse conjunto de tecnologias. Classe é um elemento importante aqui, mediando a inclusão ou exclusão a tais redes. No entanto, uma vez popularizado o android em contexto urbano, classe permanece operando, definindo redes não a partir do acesso a 3G, internet, smartphones, mas através de referências "culturais" e "sociais" que circulam na/s rede/s.

Abuso policial: case report, ou, Choram _s militantes pelos prostitutos?

Medo e ódio: das coisas que eu sinto em relação à polícia militar, destacam-se duas.
Semana passada, algo entre a noite de quinta e a madrugada da sexta, circulando através da malha cujo perímetro delimita um quadrilátero da pegação. Os domicílios, em uma área ainda horizontal, abraçam quatro praças. Quando se esboça a madrugada, o cenário é noir e iminentemente masculino, carros prenhejam e pedestres nomadizam-em-movimento: pegação auto-andante. Até a meia noite - às vezes uma hora -, os fluxos do autorama do Carrão estabelecem uma relação de contiguidade com os andantes vindos da estação homônima e de um dos bares de esquina.
Memória afetiva; nessas ruas, sobretudo pedalando, vivi momentos incríveis da minha vida: fui assaltado na volta pra casa, vivi a meia-noite que me converteu legalmente em maior de idade, fui para o drive-in com um pacote de macarrão e um cara no porta-malas, dei nove reais pra pegar no pau de um cara, iniciei a arte do concubinato e tive meu pau fisgado por um aparelho dental, lucrei uns bons trezentos reais em quatro dias (inclusive ganhei dez reais pra um cara pegar no meu pau por dois minutos), estreitei laços com as bichas dos quiosques do metrô, tive de correr de um carro ensandecido em movimento (dirigia um cafetão), pulei o muro do parque Sampaio Moreira pra trepar com um garoto de programa e...
Sofri abuso policial.
Meu retorno ao campo profissional über-capitalista está tímido. Alguma auto-compaixão, junto com o tribulus terrestris, me ajudaram a retornar a minha atividade libidinal habitual. De fato, quando você pratica sexo como profissão, alguma coisa na sua vida muda em relação aos afetos e desejos, mas tenho certeza que isso varia de experiência para experiência. Fodendo por dinheiro, você acaba enxergando nitidamente que foda é simulacro, o que não é mais do que um fato da experiência geral. Foda é performance, desejo é mentira. O lado bom é reconhecer a plasticidade dos usos do corpo e a precariedade das supostas essências que definem os mesmos. O lado mala é um certo niilismo das relações afetivas, e um certo desgaste do corpo... Pra mim, uma carência estranha, a de ficar abraçado com um corpo. No fim podia ser um carneiro taxidermizado, quando eu acordava ao lado de alguém, sentia que até o afeto que eu esperava era simulacro.
Enfim, poucas foram as vezes em que eu senti algo tão denso por uma pessoa, a ponto de viver uma foda em intensidade limite, plenamente um abraço, e a sensação de simulacro ceder à completa tentação de se misturar totalmente a um corpo-mente. São diferentes modalidades de felicidade; a segunda definitivamente mais rara que a primeira.
Fui recentemente acometido por esta forma de envolvimento, que talvez eu nunca mais viva - e achei inclusive estranho sua imprevista reincidência. À semelhança de outros dois momentos em minha vida, aconteceu algo ao nível do corpo, que serviu de prova à febre insana que eu sentia: aquilo que Cauby, seguindo Schianberg, chama Síndrome de Transferência Total de Libido no livro de Marçal.
Um típico caso de STTL, na definição do professor Schianberg. Síndrome de Transferência Total de Libido. Em geral, ele escreveu, poucos homens são fiéis de verdade. Tudo depende da oportunidade e da temperatura do sangue do homem em questão. Em alguns casos, contudo, diz o aloprado autor de uma Ars Amatoria particular, o indivíduo se apaixona com um grau de entrega tal que toda a sua libido se transfere, de modo exclusivo, para o objeto amado. STTL.Aconteceu comigo.Conhecer Lavínia tornou invisíveis as outras mulheres. Tornou-as indesejáveis. Fiqueiimune à sedução.
No auge da minha carreira (setecentos reais em uma semana, o ápice), uma tragédia. Depois de um grande período de afluência, minha receita virou compulsoriamente o décimo terceiro pra dois meses - sem bolsa de pesquisa, inclusive -, devido ao meu incrível desempenho no mercado. Lhe dava chocolates, ingressos para peças de teatro, bebia em noites de fossa.
O tamanho do rombo foi mais ou menos proporcional ao da ressaca.
Foi naquela madrugada que eu, timidamente, recuperava a hexis mais rústica do meu lado mais radical. 2014 foi o ano do corpo; xenical, piscina, alargadores, antropologia, whey protein, academia, teatro, bike, BCAA, prostituição, tribulus, tabaco, roupas novas, cocaína, batata-doce. Minha grande estreia - bem sucedida - em um novo mundo: beatnik pequeno-burguês, ou lumpemproletariado estratégico. Uma personalidade capaz de se vender por trinta reais, o que é uma das coisas mais incríveis que eu já fiz na vida (UAU!, existe coisa mais capitalista do que um lúmpem?).
Meu intuito era fazer pegação mas, depois que um GP muito simpático com quem flertei entrou no carro de um cliente, assumi seu posto em uma esquina que atende a alguns índices estratégicos de territorialização-michê; localização, percepção ocular e auditiva do entorno, contiguidade com uma determinada praça, um ponto de grande fluxo e convergência de carros, sombra, árvore. Posicionei-me, disposto ao jogo, auto-sabotagem cênica. Vários carros se inclinam ao meu encontro. Meus fãs!
Vejo à distância o brilho de uma viatura de coxinhas. Zarpo em estratégia para outro canto. Quem eu reencontro? O infeliz que fisgou meu pau há pouco menos de um ano atrás. Ele se desculpa pelo que aconteceu e, voilá, uma reviravolta na trama, fechamos um revival. E mais, ele me quer junto com o outro GP, aquele simpático, bonito, roludo. Mas um detalhe: tem que ser na praça, ele curte um certo exibicionismo. Bom, se eu fosse um velho desgraçado como ele, me orgulharia de chupar dois garotões bem-apessoados no meio de um monte de bichas atônitas em seus veículos de merda.
Quando ele finalmente goza, avistamos ali na esquina as luzes da viatura. Se dá a diáspora no seio da praça, o cliente caminha à frente e eu ando lado a lado com o outro. Um terceiro que estava de voyeur diverge também em movimento centrífugo. O garoto, que havia morado em Londres, me diz he has to pay us. Eu concordo e, ingenuamente, me precipito à frente com o intuito de seguir o cliente, me afastando do primeiro. É quando os Palhaços Militares aceleram e me alcançam, passando a andar na mesma direção e velocidade que eu engatado na bike.
Me fitam. Depois de alguns segundos fazendo a pêssega, olho para as duas pessoas que ocupavam o carro. Me lembro imediatamente de uma imagem que circulou na rede há alguns anos, um jovem policial militar fardado, musculoso e careca ostentando uma tatuagem de suástica no antebraço. Era mais ou menos isso, só que vezes dois, e na minha frente.
Dissimulo calma.
- Boa noite.
Um deles responde algo que poderia ser interpretado como um pedido de briga, algo meio Laranja Mecânica. Rio nervosamente.
- Você tá rindo por quê?
Pronto, é um pedido formal de briga. Algo meio gangue justiceira. Fodeu! Esses dois policiais são skinheads, estou ao lado de uma viatura, em uma área inóspita da cidade. E o pior, eu sequer posso chamar a polícia pra me defender! Esses filhos da puta vão bater nas minhas bolas até eu virar castrato, vão enfiar o porrete no meu cu até estourar meu intestino, e quando meus pais e amig_s encontrarem meu corpo, estarei sem nenhum dente e com uma barra de metal cravada na perna.
Faço muitos cálculos, felizmente precisos. Avanço apressado com a bike, na calçada (uso estratégico do espaço), e eles topam o racha: mais uma perseguição nas mesmas ruas, com o detalhe de que agora não fujo de um cafetão, mas da PM. Irônico. Finalmente pouso na esquina do bar cujo expediente acaba de cessar, algumas pessoas administram caronas. Eles, semi-estacionados, continuam a me interpelar, apesar dos andantes, remetem a algo que eu fiz, falam com seriedade, mas estão se rasgando por dentro, vão rir muito disso tudo depois, devem ter rido mesmo, e eu não vejo graça nenhuma, me sinto acuado, me vejo como já vi várias vezes pessoas sendo interpeladas pela autoridade policial sem poder reagir, apelando para a auto-piedade patética que agora me serve de parangolé.
Mudo a marcha da bike, viro a esquina, os filhos da puta me seguem, contorno o parque e entro no terminal vinte e quatro horas do Carrão, vários quiosques em plena atividade, funcionári_s, gentes conversando, eles penetram a área, continuam me interpelando, eu olho pra eles cabisbaixo, intimidado, repito paranoicamente mais pra mim mesmo do que pra eles que "eu não fiz nada", apenas pensando onde devo estacionar, pois meu limite é aquele, um lugar iluminado, com câmeras, com várias possíveis testemunhas, se eu não escapar desta aqui, pelo menos fiz tudo que minha técnica, meu corpo, minha agilidade e minha mente viram como possível, minha virtú, mas também minha fortuna, e eles devem ter pensado "garoto esperto", e foram embora se rindo, os coxinhas escrotos, quando virarem cinquentões gordos e moribundos vão continuar rindo das atrocidades que fizeram a vida inteira, isso se um cometa não destruir essa merda toda antes, ou se não forem raptados por algum bandido que lhes graciosamente tire a vida.
A volta pra casa: um cagaço gigantesco, praticamente o esterco do monstro do lago Ness. Subi para a passarela do metrô Carrão, que atravessei, fiz um caminho bizarro, penoso, ficava pensando, ruas pouco acessadas e escuras são estratégicas, a ronda deve não privilegiá-las, mas se me pegam aqui eu viro presa fácil. A Celso Garcia, ou a rua contígua ao trem/metrô, ou a marginal Tietê são mais retas, têm mais chance de ter gente, mas também devem ter mais coxinhas circulando. Optei pelo zigue-zague nas ruas mais vazias, quando via o espectro de uma viatura me cagava todo. Senti o medo que muita gente deve sentir, o medo de Joseph K. em O processo, ser acusado e julgado por uma sociedade cujo intuito é simplesmente acusar e julgar como um fim em si mesmo.
Eu, que sou de esquerda, tenho a sensibilidade de notar que há pelo menos duas coisas que ali me tornaram mais passível de ser acometido por essa estrutura de poder escrota; ser bicha fazendo contravenção; estar exercendo uma atividade profissional lúmpem em um contexto ultra-precário (e não no Trianon nem no Chat UOL). Taí uma coisa que a PM nazista, cães de guarda da classe mérdia adoram: bicha e pobre, ainda mais quando não há nenhuma câmera registrando. A PM sabe que pode brincar de gostosuras ou travessuras com esses GPs, porque é o tipo de gente pelo qual NINGUÉM CHORA. É o tipo de gente pelo qual não se faz passeata, e de cuja falta ninguém sente.
Mantive-me atento durante a volta. Mais um fantasma rondava minha cabeça, agora que sentia o peso da opressão no suor e na pele arrepiada; a mesquinhez aberrante por detrás da preocupação de alguns/umas, de se conceber o puto como uma pessoa que cultiva a sistema capitalista dentro de si. Opressão voluntária? Aff! Quanta ignorância! Eu chamo de tecnologia de si, apropriação do espaço, experiência multi-classe, subversão das territorializações do desejo, prática contratual contingente que desafia as mediações do Estado.
Quando cheguei em casa abracei as duas pessoas que moram comigo, que eu amo, e chorei, chorei tanto, chorei porque tive medo da polícia, chorei porque não pude resgatar o dinheiro do programa, e da sensação de impotência, de não poder fazer nada.
Minha relação com a polícia nunca foi boa. Já sofri abuso policial algumas vezes. Uma delas virou manifestação local sobre homofobia. Outra teve repercussão mundial, e implicou na diminuição da tarifa do transporte público na minha cidade - e em muitas outras. Esta, no entanto, certamente vai constar nos autos, mas como mais um registro impotente e inócuo.
Esta experiência, no entanto, se reflete na minha vida de maneira cumulativa (retornam aqueles dois sentimentos):
1) Temer a polícia! Ela é mau-caráter, não se pode marcar bobeira!
2) Odiar a polícia! Ela não merece confiança, ela tem que ser destruída!
Enfim, metas para o milênio:
3) Adotar uma postura crítica, e não mesquinha, em relação às interações entre práticas de contravenção e formas de autoridade abusivas e opressoras, para além das marchas na Paulista.
4) Adotar uma postura estratégica em relação aos usos do espaço e do corpo: bicha viva também é bom! [Mas essa lição eu já pratico nos limites do que eu considero lícito para se viver.]
Finalmente, não desejo vida menos alada que esta que ando voando, com seus altos e médios. Não lamento a minha perda de libido e a sensação de que meu corpo de repente ficou inapto para o trabalho: se entregar é muito bom! Se arriscar por amor é delicioso. Acho impressionante inclusive ter chegado até a terceira fase na seleção do mestrado na USP depois de noites mal dormidas, sem estudar direito, na fossa, de ressaca, fazer prova com olhos inchados. Estar de volta ao campo profissional, no entanto, inclusive de posse de um certificado de bacharelado em Ciências Sociais em uma boa universidade, me põe defronte com algumas exigências sobre os rumos da minha vida.
A prostituição, desde a virada do ano, foi uma forma de estabelecer um vínculo forte com a humanidade, foi como habitar o mundo plenamente. Produzir, funcionar, criar, ter grana, desfrutar dela. Esta forma de existência só vacilou quando me apaixonei. Sempre há tempo para repensar as conduções e os suportes, mas é grande o afã de voltar a me sentir pleno e vivo como me senti ao longo deste ano todo.
Neste exato momento, como corolário deste desabafo, uma gata no cio faz misérias sonoras no background. Posso citar pelo menos três coisas que compartilhamos: o desejo ardente, a paixão pela madrugada e a rua como lar pleiteado. Bom dia!

memória topológico-afetiva

durante longo tempo da mi'a vida fiquei sem pedalar. gosto de pedalar, pois posso traçar linhas que desafiam os parâmetros urbanístico-legais do uso do espaço urbano no que tange à mobilidade.
pedalar distorce a identidade entre auto- e andante: traçar um zigue-zague entre rua e calçada pode significar
1) traçar estratégias de movimento para além das indicadas pela urbanização.
como não há fiscalização institucional sistemática, tal uso estratégico do espaço é tacitamente chancelado por tod_s. ufa!
2) questionar o lugar de determinda forma-movimento. existem lugares em que o pedalar é desautorizado de acordo com diferentes formas de autoridade (placas de trânsito, diretrizes do uso de rodovias, viadutos e estradas, exercício contigencial de autoridade de bosta, periculosidade aguda reconhecida pel_ ciclista). além disso já ouvi berros de protesto de motoristas de carros do tipo "sai da rua" - uma objeção ao CTB, pelo ouvido -, bem como de vocativos de mesma natureza emanados de pedestres-andantes - estes sim legalmente amparados. certa vez, um ciclista que pedalava rente ao bordo brigou comigo por estar subindo a Rebouças através das imensas e inóspitas calçadas em horário de rush. ainda assim considero o seu protesto mais ameno do que as (mortais) fechadas de ônibus e táxis entediados pelas faixas especiais - nunca entendi o que fazer quando o bordo está sendo ocupado por uma.
a ciclofaixa de lazer, opera contraditoriamente nessa economia da negociação: como admitir aquilo que já está admitido? ao indicar hora, lugar e função para a forma-movimento-biker acontecer, ela indica concepções vigentes no espaço urbanístico sobre seu uso. é por isso que a Massa Crítica (ou Pedalada) rechaçou - e não celebrou - a tal ciclofaixa de lazer na Avenida Paulista: bike não é lazer!
mesmo as ciclovias parecem operar supondo a existência de dois suportes de fato: um seguro e um "não-vai-dizer-que-eu-não-avisei".
enfim, o lugar da forma-movimento operada a partir da bike está em franca negociação. _s atores/atrizes não-pedaland_s, no trânsito, quando se manifestam, na minha experiência, tendem a recusar o lugar para a forma-movimento-biker. mas a melhor pessoa para definir o lugar dessa forma-movimento, tem que ser _ biker - ou simplesmente, _ pedaland_.
então, a precariedade do reconhecimento de um lugar para essa forma-movimento, favorece certa autonomia para a experiência d_ pedaland_ (ao passo que a definição de tal lugar é, em experiência pessoal, precária).

FIM: voltando ao início, fiquei um bom tempo sem pedalar. há um traçado, de mais ou menos cem metros, em uma calçada, contramão para os carros, que fica entre o metrô Tatuapé e a minha casa, e que é uma delícia de ser realizado pedalando (pequenos deleites abandonados por quem ficou sedentário uns dois anos). voltei a frequentar esse trecho há pouco mais de um ano, trecho este que me remete sobretudo aos meus tempos de colégio e talz. há aí uma memória afetiva do solo, pouco comum a nós que estamos condicionados a usar o chão como suporte de movimentos vagos, limitados, toscos, utilitários (andar, sentar, deitar).
blocos de casas aqui na Cidade Mãe do Céu estão sendo convertidos em estacionamentos. um quarteirão inteiro já foi demolido, e se anuncia a primeira torre de uma seção da malha urbana cuja horizontalidade treme ameaçada.
junto com o fim das velhas casinhas tatuapeenses, a sensação um tanto ingênua de que o tobogã irregular formado pelo conjunto de calçadas que me remetem à minha adolescência está fadado a desaparecer, e com ele, uma forma muito particular de experienciar minhas memórias, meu passado e minha cidade.