Por um parque azul-ametista, onde os anjos se vestem de pessoas e vão passear com seus cachorros de dois mil dólares, um rio com mais dobras que a voz da Amy Winehouse leva números para passear com suas crianças por entre o verde sintético. O tempo varia entre um domingo torturado e uma terça-feira amena, pássaros cantam a canção da cidade, torres de concreto indicam abstratamente que se trata de uma ilha de natureza artificial no meio da metrópole. O rio segue seu curso naturalmente mecanizado e os rostos enrubrescem -não de vergonha, mas por falta de uma política de difusão dos benéficos efeitos do protetor solar-, as crianças respiram mais alto que o ofegar furioso dos animais.
Ao longe um casal improvisa uma tarde televisivamente bucólica (algo como um piquenique ou uma rede), no outro lado cultua-se a qualidade-de-vida vendida pelo comercial (acho que isso quer dizer cooper), logo ali um grupo de senhoras -tem um senhor, mas depois de uma certa idade a gente não distingue mais o gênero- pratica ioga. Tudo corre como o planejado.
Se você sai do parque e atravessa a rua dá com uma igreja. Que está vazia, já que é cedo e as pessoas só lavam a consciência à noite (os lençóis é no final da tarde). Se você observar o prédio vai perceber que ele não tem nada de original, nem de marcante. É porque a Igreja já saiu de moda (e é por isso é que existem os shoppings). Entrando ali você dá de cara com um altar onde um cara de mentira -o que é uma pena- está crucificado, mas é só porque a igreja em questão é católica -os evangélicos não são tão sádicos. Este mundo do espetáculo necessita urgentemente de neo-iconoclastas. Essa igreja tem uma loja onde as pessoas compram pedaços de propriedades no Céu (o Céu é um mundo virtual ilimitado, como a internet) e uma sala onde se vê cristalizado o viés mais doentio do homo sapiens: mesas com velas acesas para não iluminarem exatamente nada -é como abrir buracos para enchê-los novamente depois.
E se você vira a esquina dá com uma padaria. A padaria é uma empresa -assim como a Igreja- e serve para alimentar as pessoas e a desigualdade social, porque contribui para a perpetuação do conceito "alimento" como mercadoria, ou seja, limitado pela mão invisível que rege o mercado -que é a mesma mão que esquarteja, guilhotina e aperta o gatilho. A hierarquia na padaria é desgraçada -também mais ou menos como a Igreja, onde uma estátua de um cara pregado corresponde a um dos altos executivos-, parecido com um fast-food. Não se ganha tão mal como no segundo, mas em contrapartida se trabalha como um cão -com a desvantagem de se gastar dinheiro com comida, coisa que os cães não precisam fazer. O baixo funcionário de uma padaria irá para o Céu, porque dos pobres será o reino dos céus, enquanto Jesus e outros caras muitos ricos -que não estão crucificados- fazem cooper no parque.
E, saindo da padaria, você dá com um shopping. Shopping é a Igreja para as pessoas modernas, com a vantagem de que nele o reino dos céus é dos ricos. O shopping center é a versão atualizada dos jardins após a Segunda Guerra Mundial: uma fortaleza arquitetônica estruturada como um labirinto de maravilhas acessíveis por um simples pedaço de plástico retangular com uma tarja magnética, onde não se vê o tempo passar, o clima é agradável, o design interior é amplo e clean, e as pessoas são selecionadas (nem sempre pelo segurança, mas simplesmente pelo senso comum que todos os cidadãos de bem em uma sociedade camufladamente estamental como a nossa possuem). Se você sobe a miraculosa escada rolante, você dá na praça de alimentação, um espaço panóptico onde o grande olho é a "fraternidade momentânea", e os encarcerados são os escravos trabalhando nos restaurantes de fast-food.
Fast-food é um tipo de comida que não faz nada bem para a saúde, mas que as pessoas comem porque faz parte um ritual cultural espetacular (assim como alguns outros hábitos maléficos, tais como assistir televisão, orar e jogar lixo no chão). Os funcionários na mais baixa hierarquia de uma rede de lanchonetes fast-food (que são aqueles que servem a "comida") ganham muito mal, mas é porque a necessidade da estratificação o demanda (assim como o cortador-de-cana no primeiro setor, e o operário vítima da mecanização fordista no segundo, o funcionário do fast-food é um exemplo de peão do terceiro setor, assim como os operadores de telemarketing).
Então você sai do shopping e anda até o metrô mais próximo. Metrô é o meio de transporte que as pessoas burras usam, porque as espertas compram carros, já que o bem particular é muito mais importante que o coletivo. E a esperteza de se lutar alguns anos para comprar um automóvel é obviamente relativa, porque os problemas de urbanização em uma grande cidade que possui metrô em um país "em desenvolvimento" como é o caso do meu são, sabe-se muito bem, terríveis. Ao invés de lutar pela expansão e otimização (e aqui eu uso esses termos pensando em projetos importantes para todas regiões da cidade) do transporte público, o morador da cidade está preocupado em reunir grana suficiente para se emancipar de necessidade do uso de um meio coletivo de mobilidade (que às vezes o preço torna até inviável) para, ao invés de reclamar como uma sardinha do horário de rush do metrô, reclamar que não pode andar com o seu carro de última geração porque as ruas onde ele anda não conseguem comportar tantas pessoas espertas com carros de última geração ao mesmo tempo.
E quando você desce do metrô dá de cara com um outdoor. Outdoor é o meio de propaganda legalizado dentro do metrô (comércio avulso dentro dos vagões e pichações em muros são ilícitos, a propaganda em banners e nas televisões do metrô é legitimada pelo Estado-Capital). Na sociedade do espetáculo a propaganda funciona como as ideologias da Igreja funcionavam no Medievo (e aqui eu falo de propaganda tendo em vista as suas milhares facetas), e o templo do consumo, o shopping, como a Igreja.
E quando você sai da catraca e vai pedir um copo de água da torneira ali no boteco, tem uma televisão que te acusa indiretamente de omissor da sua responsabilidade e, por conseguinte, agressor natural da paz pela passividade em relação à fúria da natureza em relação àqueles que -agora, na moda- são os eleitos como os massacrados sem direitos humanos da vez. Então você olha incrédulo para os vários moradores de rua na sua cidade, e pensa que a vida fora da cidade é muito pior. E conclui tristemente ao atestar a caridade dissimulada e enlatada, que se torna arrogante e prepotente vinda justamente de nós, teventes do terceiro mundo: por que eu devo ajudar o Haiti, se o Haiti é aqui?
Ao longe um casal improvisa uma tarde televisivamente bucólica (algo como um piquenique ou uma rede), no outro lado cultua-se a qualidade-de-vida vendida pelo comercial (acho que isso quer dizer cooper), logo ali um grupo de senhoras -tem um senhor, mas depois de uma certa idade a gente não distingue mais o gênero- pratica ioga. Tudo corre como o planejado.
Se você sai do parque e atravessa a rua dá com uma igreja. Que está vazia, já que é cedo e as pessoas só lavam a consciência à noite (os lençóis é no final da tarde). Se você observar o prédio vai perceber que ele não tem nada de original, nem de marcante. É porque a Igreja já saiu de moda (e é por isso é que existem os shoppings). Entrando ali você dá de cara com um altar onde um cara de mentira -o que é uma pena- está crucificado, mas é só porque a igreja em questão é católica -os evangélicos não são tão sádicos. Este mundo do espetáculo necessita urgentemente de neo-iconoclastas. Essa igreja tem uma loja onde as pessoas compram pedaços de propriedades no Céu (o Céu é um mundo virtual ilimitado, como a internet) e uma sala onde se vê cristalizado o viés mais doentio do homo sapiens: mesas com velas acesas para não iluminarem exatamente nada -é como abrir buracos para enchê-los novamente depois.
E se você vira a esquina dá com uma padaria. A padaria é uma empresa -assim como a Igreja- e serve para alimentar as pessoas e a desigualdade social, porque contribui para a perpetuação do conceito "alimento" como mercadoria, ou seja, limitado pela mão invisível que rege o mercado -que é a mesma mão que esquarteja, guilhotina e aperta o gatilho. A hierarquia na padaria é desgraçada -também mais ou menos como a Igreja, onde uma estátua de um cara pregado corresponde a um dos altos executivos-, parecido com um fast-food. Não se ganha tão mal como no segundo, mas em contrapartida se trabalha como um cão -com a desvantagem de se gastar dinheiro com comida, coisa que os cães não precisam fazer. O baixo funcionário de uma padaria irá para o Céu, porque dos pobres será o reino dos céus, enquanto Jesus e outros caras muitos ricos -que não estão crucificados- fazem cooper no parque.
E, saindo da padaria, você dá com um shopping. Shopping é a Igreja para as pessoas modernas, com a vantagem de que nele o reino dos céus é dos ricos. O shopping center é a versão atualizada dos jardins após a Segunda Guerra Mundial: uma fortaleza arquitetônica estruturada como um labirinto de maravilhas acessíveis por um simples pedaço de plástico retangular com uma tarja magnética, onde não se vê o tempo passar, o clima é agradável, o design interior é amplo e clean, e as pessoas são selecionadas (nem sempre pelo segurança, mas simplesmente pelo senso comum que todos os cidadãos de bem em uma sociedade camufladamente estamental como a nossa possuem). Se você sobe a miraculosa escada rolante, você dá na praça de alimentação, um espaço panóptico onde o grande olho é a "fraternidade momentânea", e os encarcerados são os escravos trabalhando nos restaurantes de fast-food.
Fast-food é um tipo de comida que não faz nada bem para a saúde, mas que as pessoas comem porque faz parte um ritual cultural espetacular (assim como alguns outros hábitos maléficos, tais como assistir televisão, orar e jogar lixo no chão). Os funcionários na mais baixa hierarquia de uma rede de lanchonetes fast-food (que são aqueles que servem a "comida") ganham muito mal, mas é porque a necessidade da estratificação o demanda (assim como o cortador-de-cana no primeiro setor, e o operário vítima da mecanização fordista no segundo, o funcionário do fast-food é um exemplo de peão do terceiro setor, assim como os operadores de telemarketing).
Então você sai do shopping e anda até o metrô mais próximo. Metrô é o meio de transporte que as pessoas burras usam, porque as espertas compram carros, já que o bem particular é muito mais importante que o coletivo. E a esperteza de se lutar alguns anos para comprar um automóvel é obviamente relativa, porque os problemas de urbanização em uma grande cidade que possui metrô em um país "em desenvolvimento" como é o caso do meu são, sabe-se muito bem, terríveis. Ao invés de lutar pela expansão e otimização (e aqui eu uso esses termos pensando em projetos importantes para todas regiões da cidade) do transporte público, o morador da cidade está preocupado em reunir grana suficiente para se emancipar de necessidade do uso de um meio coletivo de mobilidade (que às vezes o preço torna até inviável) para, ao invés de reclamar como uma sardinha do horário de rush do metrô, reclamar que não pode andar com o seu carro de última geração porque as ruas onde ele anda não conseguem comportar tantas pessoas espertas com carros de última geração ao mesmo tempo.
E quando você desce do metrô dá de cara com um outdoor. Outdoor é o meio de propaganda legalizado dentro do metrô (comércio avulso dentro dos vagões e pichações em muros são ilícitos, a propaganda em banners e nas televisões do metrô é legitimada pelo Estado-Capital). Na sociedade do espetáculo a propaganda funciona como as ideologias da Igreja funcionavam no Medievo (e aqui eu falo de propaganda tendo em vista as suas milhares facetas), e o templo do consumo, o shopping, como a Igreja.
E quando você sai da catraca e vai pedir um copo de água da torneira ali no boteco, tem uma televisão que te acusa indiretamente de omissor da sua responsabilidade e, por conseguinte, agressor natural da paz pela passividade em relação à fúria da natureza em relação àqueles que -agora, na moda- são os eleitos como os massacrados sem direitos humanos da vez. Então você olha incrédulo para os vários moradores de rua na sua cidade, e pensa que a vida fora da cidade é muito pior. E conclui tristemente ao atestar a caridade dissimulada e enlatada, que se torna arrogante e prepotente vinda justamente de nós, teventes do terceiro mundo: por que eu devo ajudar o Haiti, se o Haiti é aqui?
Radiohead e Digable Planets me ajudaram a escrever este texto.