terça-feira, 26 de janeiro de 2010

História das Cidades

Por um parque azul-ametista, onde os anjos se vestem de pessoas e vão passear com seus cachorros de dois mil dólares, um rio com mais dobras que a voz da Amy Winehouse leva números para passear com suas crianças por entre o verde sintético. O tempo varia entre um domingo torturado e uma terça-feira amena, pássaros cantam a canção da cidade, torres de concreto indicam abstratamente que se trata de uma ilha de natureza artificial no meio da metrópole. O rio segue seu curso naturalmente mecanizado e os rostos enrubrescem -não de vergonha, mas por falta de uma política de difusão dos benéficos efeitos do protetor solar-, as crianças respiram mais alto que o ofegar furioso dos animais.
Ao longe um casal improvisa uma tarde televisivamente bucólica (algo como um piquenique ou uma rede), no outro lado cultua-se a qualidade-de-vida vendida pelo comercial (acho que isso quer dizer cooper), logo ali um grupo de senhoras -tem um senhor, mas depois de uma certa idade a gente não distingue mais o gênero- pratica ioga. Tudo corre como o planejado.
Se você sai do parque e atravessa a rua dá com uma igreja. Que está vazia, já que é cedo e as pessoas só lavam a consciência à noite (os lençóis é no final da tarde). Se você observar o prédio vai perceber que ele não tem nada de original, nem de marcante. É porque a Igreja já saiu de moda (e é por isso é que existem os shoppings). Entrando ali você dá de cara com um altar onde um cara de mentira -o que é uma pena- está crucificado, mas é só porque a igreja em questão é católica -os evangélicos não são tão sádicos. Este mundo do espetáculo necessita urgentemente de neo-iconoclastas. Essa igreja tem uma loja onde as pessoas compram pedaços de propriedades no Céu (o Céu é um mundo virtual ilimitado, como a internet) e uma sala onde se vê cristalizado o viés mais doentio do homo sapiens: mesas com velas acesas para não iluminarem exatamente nada -é como abrir buracos para enchê-los novamente depois.
E se você vira a esquina dá com uma padaria. A padaria é uma empresa -assim como a Igreja- e serve para alimentar as pessoas e a desigualdade social, porque contribui para a perpetuação do conceito "alimento" como mercadoria, ou seja, limitado pela mão invisível que rege o mercado -que é a mesma mão que esquarteja, guilhotina e aperta o gatilho. A hierarquia na padaria é desgraçada -também mais ou menos como a Igreja, onde uma estátua de um cara pregado corresponde a um dos altos executivos-, parecido com um fast-food. Não se ganha tão mal como no segundo, mas em contrapartida se trabalha como um cão -com a desvantagem de se gastar dinheiro com comida, coisa que os cães não precisam fazer. O baixo funcionário de uma padaria irá para o Céu, porque dos pobres será o reino dos céus, enquanto Jesus e outros caras muitos ricos -que não estão crucificados- fazem cooper no parque.
E, saindo da padaria, você dá com um shopping. Shopping é a Igreja para as pessoas modernas, com a vantagem de que nele o reino dos céus é dos ricos. O shopping center é a versão atualizada dos jardins após a Segunda Guerra Mundial: uma fortaleza arquitetônica estruturada como um labirinto de maravilhas acessíveis por um simples pedaço de plástico retangular com uma tarja magnética, onde não se vê o tempo passar, o clima é agradável, o design interior é amplo e clean, e as pessoas são selecionadas (nem sempre pelo segurança, mas simplesmente pelo senso comum que todos os cidadãos de bem em uma sociedade camufladamente estamental como a nossa possuem). Se você sobe a miraculosa escada rolante, você dá na praça de alimentação, um espaço panóptico onde o grande olho é a "fraternidade momentânea", e os encarcerados são os escravos trabalhando nos restaurantes de fast-food.
Fast-food é um tipo de comida que não faz nada bem para a saúde, mas que as pessoas comem porque faz parte um ritual cultural espetacular (assim como alguns outros hábitos maléficos, tais como assistir televisão, orar e jogar lixo no chão). Os funcionários na mais baixa hierarquia de uma rede de lanchonetes fast-food (que são aqueles que servem a "comida") ganham muito mal, mas é porque a necessidade da estratificação o demanda (assim como o cortador-de-cana no primeiro setor, e o operário vítima da mecanização fordista no segundo, o funcionário do fast-food é um exemplo de peão do terceiro setor, assim como os operadores de telemarketing).
Então você sai do shopping e anda até o metrô mais próximo. Metrô é o meio de transporte que as pessoas burras usam, porque as espertas compram carros, já que o bem particular é muito mais importante que o coletivo. E a esperteza de se lutar alguns anos para comprar um automóvel é obviamente relativa, porque os problemas de urbanização em uma grande cidade que possui metrô em um país "em desenvolvimento" como é o caso do meu são, sabe-se muito bem, terríveis. Ao invés de lutar pela expansão e otimização (e aqui eu uso esses termos pensando em projetos importantes para todas regiões da cidade) do transporte público, o morador da cidade está preocupado em reunir grana suficiente para se emancipar de necessidade do uso de um meio coletivo de mobilidade (que às vezes o preço torna até inviável) para, ao invés de reclamar como uma sardinha do horário de rush do metrô, reclamar que não pode andar com o seu carro de última geração porque as ruas onde ele anda não conseguem comportar tantas pessoas espertas com carros de última geração ao mesmo tempo.
E quando você desce do metrô dá de cara com um outdoor. Outdoor é o meio de propaganda legalizado dentro do metrô (comércio avulso dentro dos vagões e pichações em muros são ilícitos, a propaganda em banners e nas televisões do metrô é legitimada pelo Estado-Capital). Na sociedade do espetáculo a propaganda funciona como as ideologias da Igreja funcionavam no Medievo (e aqui eu falo de propaganda tendo em vista as suas milhares facetas), e o templo do consumo, o shopping, como a Igreja.
E quando você sai da catraca e vai pedir um copo de água da torneira ali no boteco, tem uma televisão que te acusa indiretamente de omissor da sua responsabilidade e, por conseguinte, agressor natural da paz pela passividade em relação à fúria da natureza em relação àqueles que -agora, na moda- são os eleitos como os massacrados sem direitos humanos da vez. Então você olha incrédulo para os vários moradores de rua na sua cidade, e pensa que a vida fora da cidade é muito pior. E conclui tristemente ao atestar a caridade dissimulada e enlatada, que se torna arrogante e prepotente vinda justamente de nós, teventes do terceiro mundo: por que eu devo ajudar o Haiti, se o Haiti é aqui?

Radiohead e Digable Planets me ajudaram a escrever este texto.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

De mudança.

Atrasado.

A rua exalava um suor natalino, cheirando a mormaço e resquícios de um grupo de usuários de maconha, a um restinho de chuva e a uma alegria dissimulada, uma alegria envergonhante, uma alegria violenta e sem razão de ser. Enfim, a rua queria me provar que, como todos, e diferente de mim, estava cumprindo a sua obrigação, de ser rua normal, rua pacata, rua mandada. Es-cra-va! Rua escrava! É isso que é, escrava! Eu não me lamento, não me encho de porquês, estou sério comigo mesmo, e a minha seriedade só me permite fazer uma coisa, que é gozar. Minha seriedade nunca me permitiu fazer outra coisa, e se existe algum deus, deve ele ser essa minha séria vontade de que as coisas não sejam sérias, não sejam nada senão vontades.
Gargalhando de séria paixão subi a rua incansável como eu, acompanhado do barulho dos meus chinelos, que muito parece com o barulho de tamancos -é o que todos me dizem, aqueles que deixaram a janela e agora assistem a um São Pedro enlatado, confortáveis em seus sofás, suas camas, suas cadeiras de balanço, suas caixas de papelão. Foi bom as luzes estarem apagadas. Elas só fariam sentido se houvesse além de mim outro alguém na rua, que me veria, se assustaria, me amaria ou me ignoraria. A Lua, cansada de tutelar-me em vão, pois afinal minha ingratidão é de proporções espaciais, estava fechada em nuvens sem cor. O que me iluminava era o reflexo da lareira do meu coração, que por sinal também estava com suspeita escassez de combustível, pois só enxergava a cinco palmos de mim (e quando ela está bem alimentada, enxergo inclusive através das pessoas).
Mas eu entendia quase tudo. Lutando emergentemente contra uma certa solidão, decidi ir ao cinema. Só que as pessoas se esqueceram de sair de casa na véspera do ano novo, e o cinema esqueceu de ir chamá-las em casa. E foi triste, muito triste, porque eu fui ao cinema sozinho, no mesmo cinema onde um dia estivemos, juntos, unidos pelo suor de nossas mãos, e a sala estava vazia, e os cinco reais e cinquenta centavos berraram de horror para mim da bilheteria, porque queriam me avisar que a sala estaria vazia, e a minha solidão só ecoaria mais e mais e mais, porque o filme era ruim, mas não os ouvi, e eu não voltei.
Parei de gargalhar, continuei andando. A rua ainda olhava com aqueles olhos sombrios de ofensa, úmida, preta, inflexível. Mas, como sempre, não me impediu de chegar em casa. As luzes funcionam em casa, em casa não tenho a quem desafiar. Mas minha casa só serve pra dormir. Mas quando eu tiver um piano, ela será a extensão da rua, que então será minha amiga, tolerante, acesa. Um dia a rua será a minha casa. No outro dia será o cinema. E então será depois o metrô. Bobagem. Minha casa é este mundo. Com ou sem estrelas, não tenho opção, mutilado e decomposto em um terreno baldio, minha casa será este lugar.

Tudo isso para dizer que as coisas não precisam de você.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Caça.

ou 'Uganda em mim'

Porque a minha principal ideologia é a vida -especialmente a minha- saí correndo, em uma atitude que costumo chamar de pânico, de outra atitude, a qual qualifico como terror, insolitamente personificada na figura de quatro sujeitos, ou mais, altos e musculosos, sem camisa e de calça preta, carecas, segurando facões. Alguns deles não eram exatamente brancos. Isso poderá -ou não- ser importante mais tarde. Porque a minha principal ideologia é a vida saí correndo, em uma atitude que os outros qualificariam como covarde, mas é porque não conhecem o significado real do termo "terrorismo".
Esta cidade é demasiadamente grande. Olhei com o coração exausto de tantos slides para o fim dessa Radial Leste, que na verdade não existia. Não tem fim. São Paulo não tem fim. Pensei em todas essas pessoas consumidas completamente pelo medo, pensei no medo que eu sinto, no medo que eu nego.
Quando cheguei perto do shopping e vi que um pedaço da calçada estava vazio de novo pensei "puta que pariu esses seguranças... o pior é o rebanho que sai mesmo", porque os seguranças do shopping inventaram uma história, que não pode ficar naquela calçada -reparem que a calçada é pública, mesmo a do shopping, eles ainda não têm direito de isolá-las-, e os integrantes daquele grupo gigantesco, composto por principalmente gays, lésbicas e simpatizantes, obedecem direitinho conforme o pedido, quer dizer, conforme o obrigado. É quase obrigado sim, porque se você resiste, acaba sozinho na calçada, visto como subvertor pelos funcionários do shopping e isolado do grupo.
O shopping Tatuapé tomou várias providências em relação ao encontro que acontece toda segunda-feira há um bom tempo em uma de suas fachadas. A maioria delas é recente. Por causa da aglomeração de pessoas, os seguranças foram instruídos para dispersarem o grupo dentro do shopping, de forma a não obstruírem a passagem dos consumidores em potencial -como se os próprios homossexuais não fossem consumidores em potencial também. No pátio da fachada onde ocorre o encontro iniciou-se uma reforma. Uma reforma que nunca tem continuidade. Isso deslocou parte da massa do encontro para a calçada, pois a passagem entre a porta automática do shopping e a calçada também passou a contar com um chato anti-obstrução. Só que esse chato anti-obstrução só foi necessário pois a) as pessoas não podem ficar estáticas dentro do shopping, b) o pátio foi cercado para uma reforma infinita, c) as pessoas não podem ficar estáticas dentro do shopping e atrapalhar ou ofender a saída dos consumidores em potencial pedestres do shopping.
Uma quarta medida tomada foi a de fechar os portões daquela fachada meia hora mais cedo, talvez para evitar os problemas que os trombadinhas e batedores de carteira traziam para dentro do shopping (uma multidão em pânico, às vezes tossindo por causa de ataques avulsos com spray de pimenta, entrando ensandecida no shopping e causando uma mixórdia). A quinta medida é a de cercar o bordo da calçada, para evitar que o trânsito se torne um caos, isto é, evitar que o grupo ocupe ou dificulte a passagem nas pistas da Rua Domingos Agostim. Mas é também uma atitude controversa (que ninguém questiona), já que o bordo é importante no trânsito, para carros que necessitam estacionar urgentemente, e para os motociclistas e ciclistas, já que a pista mais próxima ao bordo direito é preferencial a estes, e quem diz isso não sou eu, é o Código de Trânsito Brasileiro. Esta providência é controversa, mas a última é simplesmente ilegal. É o isolamento de uma seção da calçada.
Lembrando que todas essas medidas são tomadas apenas na fachada do encontro às segundas-feiras.
A "política" do shopping é uma coisa. Não sei se a CET autorizou o uso de cavaletes na calçada. Agora, que o Estado não permite essa atitude que eu qualifico como discriminatória (não pelo fato de o grupo ser de homossexuais, mas sim pelo fato de assustarem o público homófobo do shopping) de impedir a permanência na calçada, é óbvio que é mentira. Mas o rebanho não está preocupado com isso, e nisso consiste o meu ressentimento. Pensam feito perus, só estão preocupados com imagem e beijar na boca, obviamente jamais boicotarão o shopping porque são conformados, porque não associam uma coisa à outra, porque eles mesmos são consumidores, porque acham que os maiores culpados são os seguranças "chatos" do shopping, e não os administradores da logística da salvaguarda.
As ovelhas estúpidas, naquele gramado, onde a periferia da Zona Leste, da Zona Norte e de outros lados de São Paulo, porque São Paulo tem muitos lados, vêm abastecer seus cérebros televisivos agindo como devem agir, pensando feito perus, dispostas como ovelhas que são. Então hoje, contrariando as minhas expectativas, um grupo pequeno mas assustador de rottweilers enfurecidos, xiitas adeptos de uma ideologia chamada skinhead, transformou o calmo rebanho em uma manada histérica. Contrariando minhas expectativas, porque depois da semana que antecedeu esta, quando um arrastão gigantesco escapou ileso de cinco viaturas de policiais (ah! os policiais, tão simpáticos, pedindo passagem com spray de pimenta), eu jurava que alguma providência seria tomada. Doce sonhar. Nenhuma providência, da parte do rebanho, da parte do comércio, da parte do shopping e da parte do Estado, isto é, da própria polícia, em relação à criminalidade e à violação dos direitos humanos. Hoje, isolados do shopping, sem proteção policial, um enorme grupo GLS foi intimidado por um minúsculo grupo de skinheads aqui no meu bairro chamado Tatuapé.
E o pior? Nenhuma providência será tomada.
Nenhuma precaução.
Nenhuma medida.
Nada.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Todas as contraculturas apontam para a defesa da hegemonia do self-made man.

Discute-se que o principal problema da esquerda atual é a hiperfragmentação dos movimentos sociais. Isso significa que cada vez mais existem grupos interessados em problemas específicos e pontuais em relação à suas constituições, e em consequência disso, menos grupos interessados em resistir simplesmente ao sistema vigente levantando uma bandeira. Ou seja, no final das contas temos como balanço o seguinte: um mosaico de grupos minoritários que visam combater o sistema defendendo ideologias egoístas (não é muito difícil falar aqui de ego, já que os grupos acabam assumindo identidades), o que nada mais é reflexo da necessidade de se pôr em defesa individualmente que a ideologia do self-made man criou, isto é, a versão moderna e revisitada pela sociologia eugenista do senso de sobrevivência -que não passa de história. Ou seja, o capitalismo triunfa impregnando de medo todos os homens, impedindo que os insatisfeitos com a ordem neoliberal dêem as mãos e assim façam verão.
Mas o leitor questionará o porquê de tanto marxismo fora de época. Eu explico! É que ontem eu fui na Rua Augusta, pólo pluricultural daqui desta cidade sem estrelas chamada São Paulo, e nada mais vi lá do que um sem-número de grupos organizados feito bolhas, muitos com várias intersecções, claro, porém todos preocupados em defender um estilo (aparentemente apolítico, mas como a apolítica é utópica... vamos simplesmente fingir que há um mínimo de consistência no meio daqueles adolescentes -todos adolescentes, apesar da idade- deficitários metidos a ingleses, junkies, punks, rockers, skaters, emos, "alternativos", vida loka, hippies, amantes livres, anarquistas etc), apenas um estilo. Apenas sim, e prejudicialmente apenas. Prejudicialmente apenas porque fadando um movimento, como uma tribo urbana, a apenas um conjunto de esteriótipos e imagens, seus integrantes estarão se rendendo à sociedade do espetáculo do Guy Debord, onde as relações sociais se dão justamente por imagens, e nessa defesa absurda da aparência, diz também o Raoul Vaneigem, é que consiste o segredo da infelicidade tão bem cultivado pelo capitalismo no coração de cada um dos homens ocidentais.
Vejo como mecanismo decidido de resistência à ordem o cultivo de um estilo de vida automutilador e proibido. Não estou aqui em defesa do cristianismo, por isso não qualifico tais condutas como desregradoras ou pervertidas. Mas há de se prestar muito bem atenção no que essas ações significam. Apelar para discursos ofensivos e escandalosos, o uso clandestino de drogas ilícitas, mudanças corporais estéticas e o amor livre podem ser sim maneiras de se resistir tanto à moral quanto resistir à lei. Só que, desculpem-me pela franqueza, acho que o suspeito conforto que todas essas ações "proporcionam" deixaram há muito de serem agentes subvertores e hoje só estão cumprindo essa ideologia hedonista que a Mídia tanto defende.
O tratamento que se dá ao corpo, incluindo o uso de anabolizantes, e o consumo desenfreado de bebidas e cigarros por menores de idade, e de alucinógenos ilegais por todas as faixas etárias, são condutas condenadas pelo Estado nacional, mas legitimadas, institucionalizadas e incentivadas pelo Estado hedonista do capital (mais lubrificante no processo de alienação na máquina social, e mais uma alavanca no capital financeiro, mais mercados rentáveis no sistema que gira em torno do dinheiro, e não da vida).
O intuito do texto não era ser um manifesto comunista, e sim uma defesa da tese de que as contraculturas deixaram de ser contra há muito tempo, e hoje apenas sustentam uma imagem de rebeldia que é inclusive defendida nos comerciais da televisão. Não quero generalizar, fiquei descontente com o que vi na Rua Augusta. Sei de uma galera que, embora não seja perfeita -a incompatibilidade com o Outro oprimido, que embora seja também oprimido como eu também é o Outro, é a principal dessas falhas-, dentro da minha visão realista e arrogante, é bastante engajada e atua notavelmente aqui em São Paulo (mesmo que algumas propostas sejam bobas, temos os vegans, os freegans, os straight edges compromissados, os vários grupos de socialistas, os humanistas, os anarquistas ontológicos, a galera da Bicicletada etc).

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Balanço de dois mil e nove.

(Senti desde o início que ninguém leria este post inteiro.
Mas o mais importante pra mim foi simplesmente
ter feito este balanço e publicado esta antologia)


No final de 2008 e no início de 2009 eu tinha um bloquinho da Globo.com que a filha da mina que o meu pai pegava quando ia ao Rio de Janeiro desprezou, e por isso acabou em minhas mãos como um presente de natal. No primeiro bimestre de 2009 conheci o Ed e fiquei inspirado pelo tédio no curso técnico de Museu (aliás fiquei entediado no semestre inteiro). No Parque da Juventude e durante as aulas do curso escrevia bastante coisa.

Quero que tirem meus pingos dos is
Só assim que serei ferrugem
Quero que limpem, quero que sujem
Assim como escrevo e as vacas mudas
Quero que plantes, quero que acudas
Mas não vou trair, feito certo Júri
Quero que fume, quero que cure
Preciso de nada mais que atum
Quero que arranhem, quero beber rum
Mas que tal tirar meus pingos dos is?

23 1 2009


-Por que você lê Dom Casmurro?
Por que você é burro?
-Eu sou escravo da FUVEST
E nem que isso não preste...
-Apague aqui o seu cigarro.

11 2 2009


não, tudo bem, pode ir, eu sou sem sal
pode crer que o teu melhor é ir pular o Carnaval
não preciso mais procurar teu olhar no reflexo
o espelho que eu comprei só me deixa ver teu sexo

eu não gosto do que gostas e não ligo pra tua vida
não sou parte do bom tipo de gente com o qual lidas
não, tudo bem, não vou ser um mala sem alça
eu recolho minhas coisas, minha blusa, minha calça
(não quero ter uma vida falsa)
-mas eu te adoro

s.d.



Depois disso, em Março, veio o platonismo por um cara de Guararema (que sumiu) -falta minha de maturidade-, a uretrite e a superação desse cara, quando eu saí com um monte de gente -inclusive com o Ed de novo.
Aí eu já tinha um bloquinho que comprei em Itatiaia com minha tia Ivete (acho que era início de Abril), e um que comprei (devia ser Maio) com a Letícia e a Ingrid no shopping Anália Franco -na Saraiva.

hoje acordei com uma vontade louca
de pular da cama, tirar a roupa
de cantar até vomitar de alegria
uma vontade de compor poesia sem nexo
uma vontade louca de fazer sexo
de acabar com toda a tua melancolia

componho um aforismo
escolho até um lema
minha gente, eu cismo em ir a Guararema
-mas que celeuma

s.d.


eu olhei pra ti no shopping e pensei: hum! esse deve dar um chá
você olhou pra mim e disse: vamos pra casa, eu moro lá
trocamos juras de amor e várias injúrias de dor
e coisas do tipo "ah! você pode ser a minha sorte grande, eu lhe dou minha boca e você sua glande"
e à tua casa eu ia umas três vezes por semana
e eu nem te conhecia, só o teu lado sacana
eu fantasiava que era um urso -você era minha colmeia
mas eu jamais ia imaginar que você tinha gonorreia
foi! foi! estou certo, foi! foi com você
que eu peguei a minha primeira DST
(e agora você me chuta --azar filho da puta)

s.d.


bandido!
você roubou meus olhos.
você roubou minha orelha, minha boca, meus sentidos.
você roubou minha cabeça, violou meus pensamentos, roubou minha poesia.
você roubou meu tempo.
você roubou minha tarde, minha noite, meus sonhos.
roubou meu dia inteiro. as minhas horas todas.
roubou o meu domingo, roubou minha atenção.
você... você roubou meu coração.
você roubou o meu amor, o meu tesão, a minha respiração, a minha capacidade de acreditar no inacreditável. você roubou a minha normalidade, a minha calma, a minha raiva.
você roubou meus olhos.
você me roubou tudo e levou pra Guararema.
o que eu faço agora?

s.d.


neste presente dia
estou estou abstraindo
fazendo mas quase traindo
a minha melancolia
dezesseis anos sem balas
sem balas redondas de canela
que guardas, minha boca sela
tão viva de violar jaulas
neste presente dia
te beijo, simples, não falas

1 3 2009


olha Geórgia! olha!
a Lua 'tá cheia!
e hoje é dia 10!
que lindo

oh! Lua linda
não fique nua
teu brilho finda
no fim da rua

10 4 2009, Resende, RJ


trova

Oh! meu bloco amigo
Eu te consigo
Teu Oh! com sigo
Compro um jegue
Teu Oh! com segue
Pagou meu sigo
Oh! meu, teu jegue
Já espirrou a porra
Meu jegue, morra
Teu Oh! com segue
O sábado jorra
Oh! meu bloco amigo
Eu te consigo?

s.d.


mas o melhor devia mesmo ser a boca. enorme, eu quase não coube nela, mas foi pelo sorriso, por causa do seu sorriso gigante. tão longo era o seu sorriso, que eu sonhei que ele por um instante fosse a eternidade, de tão contente que parecia. e com um bigode, mas um ligeiro bigode; um bigode não daqueles ingênuos, mas experiente, bem criado, um bigode de família, esperando para me ferir e para me pentear com a sua alma com toda a sua rígida maciez de garoto sorridente. e a sua voz, tão macia quanto sua boca, simpática porque parecia ter nascido simpática (alguém com aquela voz conquista qualquer algo, com aquela voz domina sem nenhuma psicologia acadêmica, qualquer indivíduo, domina o espaço, hipnotiza a Lua). eu acho que se ele abrisse a boca para cantar, a sua voz grave de Karen Carpenter encheria todos os meus pulmões, o metrô, os túneis, as cavernas, as grutas da minha cabeça. mas uma boca daquelas não tem dono. aquilo é tombado pela e para a humanidade, cercar aquilo seria egoísmo com os meus colegas de mundo. mentira. sonho mesmo é em desvirginar o magno cargo, ser rei de uma fono-monarquia, déspota absoluto daquele paladar lúdico e cruel, príncipe, o príncipe que tem direito àquela macia coroa de lábios, de sabor tão impossivelmente tênue, tão sensível, e que eu só deduzo por causa do sabor que aquela voz tem, de easygoing simpatia. mas eu sou só um plebeu para ter esse direito. eu sonho com a ingenuidade que uma criança tem de se tornar modelo ou jogador de futebol, eu te beijo durante um concerto de música clássica antes de dormir, eu ando de bicicleta e vou a um museu de arte contemporânea domingo de manhã. então trocamos bobagens em uma cafeteria, eu submisso sempre à sua voz. à noite eu te beijo e me despeço, você entra em um trem e eu sou feliz. mas eu sou apenas um plebeu, para sonhar com tanta intensidade. troco as pessoas verbais de entorpecimento. será que eu não te vejo mais?

s.d.


sufoco. e então não há mais filosofia. os vinte e um gramas da minha alma ouviram, cada um deles, soar a hora fatal. não haverá dodecafonismo, cafonismo ou Coca-Cola que me tornará livre para, despertado pela música do meu tempo, descobrir que ainda falta meia hora para a ponta do dia mostrar toda a sua fumaça, que eu espero. não há mais fumaça, a fumaça sou eu. eu sou o movimento no vácuo, que jamais me provaram na escola. declina o dia, acorda a metrópole, dorme o campo, e tudo que se saberá de mim será nada. nasço cimento, mas nos livros de história sou algodão. a História é uma mentira, por isso não passa de história. eu já pouco existo enquanto vivo, quando padeço não morro porque nunca estreei. mas tudo isso não passa de um blefe. fosse mais fácil administrar a minha neurose morto-vivo, e é. eu estou vivo-morto. eu me esquivo dos dardos extra-mentais e estamentais, hipotéticos e patéticos, mas de repente me flagro investindo todo o meu ouro, minhas posses, meus bens, em um iminente golpe, cavo o meu próprio túmulo. e aqui me desencontro, na presença mais mórbida e bucólica que o próprio parque. cada folha que cai é uma lágrima que eu não derramei: eu lido com o valor errado, eu mecanizo as minhas ações, mas elas são muito falsas se eu não as sinto. culpa do meu medievalismo, eu divago a planta de um feudo, que construo com tijolos de abstração, que desaba antes de existir, o projeto natimorto, pedaço de mim, terra conquistada. eu sou um imperador que vive a retração de sua herança, o gato que perde os bigodes ao hipotecá-los. maldito cassino do amor, dos santos que elegem qual das especulações de cortejo burocrático é mais proveitosa ou lucrativa, enquanto eu vivo-morro em um parque, esperando o momento onde serei o parque, onde choverei em sua janela. mas ele não se importa. frio, fecha a cortina e vai à cozinha preparar a janta. derramado, chovido, assisto à cena. sufoco. e então não há filosofia.

s.d.


você é a razão da minha uretrite
você é a razão do meu apetite
você é a razão, mas eu caí, eu caí:

você é a minha irracionalidade
apesar do pesar da minha tenra idade
você é o pesar, mas eu fali, eu fali:

você é o meu lucro, minha mais-valia
você é meu prejuízo, minha porcaria
você é o lixão, eu pequei, eu pequei:

você é a minha igreja, meu pastor, minha cruz
o meu conhecimento, meu talento, luz
você é a minha arma, eu matei, eu matei:

eu sou teu homicida, teu pintor, freguês
não creio no maldito o tanto quanto crês
eu sou teu tudo... e... não! eu brisei, eu brisei

25 5 2009



Então no início de junho eu conheci o Daniel, que inaugurou a melhor fase do meu ano, entre o final do primeiro semestre e a primeira metade do segundo semestre. Minha segunda uretrite é dessa época, mas não lhe dei muita importância. Durante as férias de Julho, especialmente quando estive na Praia Grande com a minha amiga Ingrid, escrevi no DIÁRIO DE ESTUDOS FIGURATIVOS ou PARTE X da MINHA PRODUÇÃO DOENTIA E ENDEDIADA com fragmentos já publicados aqui. Inaugurei o meu melhor caderno do ano, chamado a lógica do amor, comprado em Itatiaia com a minha tia, que começa no primeiro de agosto e termina no dez de setembro, com participação de muitos amigos. Foi nesse período também que eu conheci a Luciana, e que eu comecei o cursinho pré-vestibular -ainda no técnico e no colégio. Grande parte do que eu fazia era entusiasmado pelo ótimo relacionamento que eu estava tendo. A crise começou no início de outubro.

você é foda
o mundo é foda
e gente é foda
o amor é foda
e eu te amo
porque eu te amo
e eu te amo. eu te amo, eu te amo
e é com você que eu vou andar de mãos dadas
e eu vou rir pra você, rir de você
e eu te amo.
(esqueça das ruínas
e esqueça e esqueça)

8 6 2009


prólogo

enquanto você se odeia
eu me odeio
e assim construímos um mundo unidos

1 8 2009


-com'está?
-'stou 'stável.

-qu'é 'stável?
-mano do permanecível.

3 8 2009


eu acho que tenho bastante sorte.

9 8 2009


se eu fosse um buraco, provavelmente me preocuparia menos.
então eu certamente tenho bastante sorte mesmo.

10 8 2009


a lógica do amor me disse que eu não sou real. me disse que eu devo andar de pés no chão e de cabeça erguida. mas eu tropeço.
a lógica do amor me contou que você me ama, mas me disse que eu devo ser racional como um número irracional. mas eu não mensuro.
a lógica do amor arguiu que nós devemos temer o amor, porque de tão grande ele irá nos sufocar. mas eu já não respiro.
a lógica do amor falou que o salário do amor é a saudade, que o lucro do amor é a distância. mas eu sou apenas um plebeu.
a lógica do amor concluiu que eu te amo entre as vinte e duas horas do sábado e as catorze horas do domingo, mas eu te amo com todas as palavras feias de xingar que me fulminam quando eu dou as costas, quando eu fecho a porta, quando estou te amando.
a lógica do amor ACHA que eu não sou real.

23 8 2009


o grã

a minha vida é tão, mas tão legal que, se eu morrer, vai ser uma merda.
tão legal que, se eu fosse bicho, Deus ia se ver comigo.
tão legal que, se eu fosse você, me matava de tédio.
-e a minha cidade é um grande sorriso.

30 8 2009


a noite mais linda tem os mosquitos mais insuportáveis.

1 9 2009


depois de ontem, qualquer vento é um arrepio. suspiro. você me deixou que...

5 9 2009



Então o Daniel se despediu de mim e eu vivi vários meses vazios, e nenhuma das trocentas atividades que eu fazia parecia me completar. Minha situação melhorou mais pro final do ano. Veio o Meu Primeiro Caderno de Sacanagem, que começou no final de outubro. Houve mais um momento de ruptura quando eu vi um filme sueco chamado Prinsessa durante as minhas excursões solitárias. Acho que tenho me divertido mais por agora, contudo.

na Vila Mariana lembrei de você. tropecei em alguma coisa humana. mas era desimportante, como qualquer coisa humana. lembrei de um papel, daqueles que envolvem canudinhos, de como flertei aquela tira branca que contrastava o negro piso da Avenida Paulista. ela era o moderador da nossa discussão. da nossa discussão humana.

24 10 2009


quando uso sapatos furados e meus pés estão encharcados parece a eternidade. um desespero presente.
passo por uma pessoa com o mesmo perfume de alguém que eu amo.
outro alguém me olha com olhos de desejo, mas quem está no comando sou eu, amizade!
minha distância, meu naufrágio, minha distração me furtam mais um vulto.
todos aqui me olham com pena. mas só eu tenho o direito de ter pena de mim.
quanto eu dirigir a Terra -e por isso ser famoso- minhas roupas pobres serão as mais caras.
e continuo a pensar, que quem aqui olho tem um sentimento instantâneo de pena.
meus pés ainda estão encharcados numa meia-eternidade. do que preciso afinal?
tenho uma fome intermitente. devem ser distúrbios de atenção -ou sequelas do péssimo filme que acabei de ver.
acho que vou fechar este caderno de pornografia e voltar à chuva, que ainda não cansou de molhar meus pés.
uma chuva cansada, maníaca e inconveniente. como eu.

26 10 2009


internalizei suas dores
simbiótico e leso
que amei teus amores
-como tanto os prezo...
agora externo e louco,
vivo rindo, lindo
-e chato mesmo, um saco,
como um domingo.

28 10 2009


ressequei meus lábios de desespero. com o pior desespero que tem, aquele desespero mudo.
agora, um desespero mudo com lábios secos e sulcados, dores quentes sufocantes.
você tem uma dor surda -se bem parece mesmo uma conveniência hipersensível.
não sei se aquele foi o nosso último abraço. mas no dia seguinte meus lábios ressecaram.
de desespero.

28 10 2009


supus amante,
não é todo mundo que escolhe a vizinhança.
a cruz brilhante
cega o olho da galera, da vovó, da criança.
ah! não dá mais
pra mim, eu vou beijar outro, vou beijar, eu vou
tens uma paz
super-cristã, ser cristão que és, mas eu não sou.

29 10 2009


o meu coração gritou tanto que fez coceguinha no meu cérebro surdo.

minhas espinhas devem me odiar. mas a morte não tem que ter juízo, quanto mais de valor.

s.d.


você feriu de amor
as minhas pernas peludas
estão n'agora chorando
contraídas ou irritadas
irrigadas de pouco suor
mas de cristalino castanho
brancas, maciez rígida
estão me contando as espinhas irritadas: você me feriu de amor
de vermelho
as minhas pernas peludas
n'agora chorando

s.d.


fingi que você 'tava indeciso,
mas te vi colecionando paixões

s.d.


na banca de jornal

eram duas mulheres. explicitamente mulheres e explicitamente duas. estavam explicitamente quase-nuas. explicitamente empilhadas.
explicitamente explícitas.
dois oficiais de polícia da plebe (unidade de autoridade pré-potente) fingiam conversar, porque não sabiam conversar. era uma com cerva: conversa em conserva.
-filho da puta! fi-lho da puta!
-mas e a Luza?
-ficô-se rindo. e a bicha cabrêra, cabrêra. se eu encontro aquele vêado ôtra vez eu mato, eu mato.
e as duas moças empilhadas no pôster se esforçavam para continuar sorrindo.

s.d.


você precisa de um amor ou de um bom livro?
-livro!
alarme-falso.
o que me morfina não quer receber ligação minha.
que mar de arrogância e prepotência é isto que me tornei?
o meu amor eu não quero precisar dele. mas o meu querer é um querer dos homens.
invento um lado e o disputo, é a ordem. mas eu não visto as camisetas da lei. não me governo tanto quanto penso que o faço.
a coragem que eu tenho das coisas é um medo maquiado. por que não resta mais nada de inútil na cidade? as estrelas já não brilham mais, e quem se importa?
se eu vestisse uma camiseta preta estaria de luto. se eu tivesse músculos bem definidos venderia o meu corpo. se eu fosse preto as palmas das minhas mãos seriam mais claras que o resto do meu corpo. se eu tivesse sardas talvez ficasse bem de cabelos ruivos. se eu não tivesse cu morreria cedo.
os anjos de mim motocicletam atrás das alcachofras dos meus ouvidos.
esta cidade chamada São Paulo é um sonho esquisito. o meu mundo é cinza e tem formato de cruz.
eu não sou da lei. não sei por que isso, mas eu não tenho chicote.

2 12 2009


gosto de olhos que brilhem. que sejam pulsantes como uma manhã. que me permitam uma felicidade instantânea e imprudente. olhos que me seguem são olhos eternos, de um segundo, eternos, são meus durante um segundo eterno. --e quando eles se fecham, eu deixo de respirar. mas se eles voltam a brilhar, eu volto a viver. por isso amo vibrar com os olhos intermitentes das manhãs.

s.d.


centenas de crianças passeando. sementes brotando sem critério. amores que deixaram o hospício e uma voz que aqui ecoa:
-Beto, me dá um cigarro.
demora.
-Beto, me dá um cigarro.
e mais uma vez.
-Beto, me dá um cigarro.
uma maquiagem pesada e cabelos raspados ignoram as fezes anticapitalistas. a fumaça dos cigarros forma uma curiosa nuvem no inverno perene. cinzas, os tons de cinza, passeam de mãos dadas buscando um analista -de sistemas.
-Beto, me dá um cigarro.
Beto, cigarros cedidos, nuvem tóxica prostituída, flores de marca. vozes. senhoras que mentem para si na quase-noite da vida paulistana. tudo isso me abandona, exceto o eterno eco:
-Beto, me dá um cigarro.

s.d.

domingo, 3 de janeiro de 2010

me perdoa por ter encostado o dedo no teu rancor guardado
estou alérgico, alérgico, alérgico, alérgico estou
eu esbarro nas cores que me atraem --culpa o magnetismo, preciso ser teu amigo
mas que pena que você não quis, senhor parede
só perdeu a única oportunidade da sua vida de ser feliz ao lado de alguém

28 12 2009



decolar toda manhã.

livros deitados no chão, que não contam histórias a mais ninguém. flores mentirosas na parede. o martelo ali na escrivaninha fora do meu alcance não para de martelar meu coração. uma alegria sapeca está jogada no canto, junto com as roupas suadas de cansaço. diz assim em letras ilegíveis que "eu estou entre o guidão e o freio, você não é bonito mas também não é feio, o que me importa é que você não é uma porta". vento mentiroso do meu ventilador mutilado, porque não ventila dor nenhuma. mas hoje a dor foi passear, e é sobre uma nuvem -que, diga-se de passagem, se parece muito com um travesseiro- que escrevo estas memórias esquecidas. sob a vitrola envenenada, o que resta de uma rena de natal luta contra as arânhas nômades. estalactites de tinta branca penetram na minha cabeça, e o martelo continuava martelando meu coração listrado. a dor bate na porta mas eu aumento o volume do rádio. as flores mentirosas crescem na parede até se tornarem verdadeiras. na poeira setentrional do meu ser, uma saudade suspira. a Santa Ceia brinda a chuva sobre a cristaleira -que abriga qualquer coisa, menos cristais. (Pedro olha com olhos de cobiça para o meu teclado, mas se contenta com o ronco das tomadas.) o relógio me grita que a noite está aqui. eu entendo, ergo meus olhos para o além e sonho acordado, com um sorriso mais longo que o braço da floresta, porque amanhã vai ser outro dia.

28 12 2009



Amor Irreversível. (II)

sentada em um piano em uma praça, a Juventude me contou a história do meu amor: que começa com olhos brilhantes e um sorriso violento, passa bolinando as sombras, assombrando o pântano e entra em um apartamento onde será celebrada a vida, um altar de falos e garrafas de aguardente, passa pela cozinha e prepara um destilado, e então o sofá -que pela mágica do destino transforma-se depois em uma cama-, com uma intragável trilha sonora de techno e gemidos de dissimulação importada (a mais cara do mercado), tecem o ambiente inenarravelmente propício para o encontro entre uma garganta sedenta e aqueles valiosos (não muitos, não obstante bonitos) centímetros de rola, joga sensualmente na cozinha, vomita lamentos roxos, cheirando a saudade, catarro, vodka e fanta uva, pensa no passado, liga pro passado, dorme no chão carente e se despede na manhã polvilhada, branca e inchada, com a promessa de outras noites de amor suicida.

29 12 2009



Poema.

miragem, que cristalizada torna-se nada.
meu peito não tem voz para berrar.
a dor, como uma gota de suor perdida pingando da minha axila, só eu a sinto.
meu ventilador esteve ligado o dia inteiro, mas desta vez não funcionou, estéril.
é contar segundos, nem vou perceber quando o sorriso que há em mim sufocar isto que agora me sufoca.
é a graça de viver. a certeza de que as coisas morrem.
ai. se. não.

31 12 2009