Este texto ia ficar guardadinho. Melhor não!
"O que não falta é militantizinho de esquerda fazendo esse discursinho falso moralista, né? O problema do Brasil não são as drogas não, é uma coisinha chamada hipocrisia, tá bom? E hipocrisia não se bebe! Hipocrisia não se fuma! Hipocrisia não se cheira!"
Rafucko está certo. Parece que por aqui (aqui é muita coisa, decerto) a opressão tem todo um jeitinho, um consenso sem consenso, uma compensação desequilibrada.
Acho que conheci um lado da hipocrisia muito B. Talvez C, de Coxinha!
O falso moralismo de esquerda a que se Rafucko se refere em "O desabafo da cocaína" é essa história, de defender o fim das opressões, o fim do capitalismo e o escambau, e daí todo mundo tem namorad_, casa na igreja e no civil, aposta na sacralização do corpo - de um corpo que resiste e sucumbe sistematicamente à sacralização -, chama de pós-moderno tudo aquilo que refutar o pilar materialista da teoria revolucionária trotskista, interpela com o dedo em riste aquel_s que desafiam sua epistemologia com as mesmas mãos que Althusser usou estrangulando sua esposa em um surto psicótico em 1980.
[Esse mesmo dedo que acusa ferozmente, mas que omite a vida sexual do autor d(o libelo evolucionista)e "A origem da família, da propriedade privada e do Estado". Gente, o Engels é a cara da controvérsia!]
Eu estou de acordo com o manual pós-estruturalista: "O pós-estruturalismo rompe com o marxismo, mas trabalha com Marx" (James, 2005). Olha só, isso não é um método, é uma constatação: as pessoas apenas trabalham com Marx, embora acreditem estar fazendo marxismo.
O que resta de uma esquerda que, sentindo-se amparada em uma epistemologia-foice-martelo - que de confortável nada tem -, vaticina um futuro que se envereda a partir dos motins julinos e dúbios de 2013?: desabam os pilares da sociedade de classes, e as pautas são disputadas em franca queda d'água do desejo que irrompe das massas. Mas a única coisa que é franca é a ingenuidade generalizada, uma ingenuidade desigual e combinada.
[O que interessa pra mim não são as correlações de força d_s partidári_s, mas daquilo que se convencionou chamar relações de poder: não é o conteúdo dos panfletos traduzido em estatística, é o preciso: é o que fazem os panfletos! o que fazem as estatísticas!]
Detalhe: essas pautas não são putas. As pautas são insensíveis ao reconhecer o sopro cáustico das multidões de tecnocordeiros - aquel_s que, de acordo com Bia Preciado, se apropriam de tecnologias de produção de subjetividades. A minha pauta é honestamente atenta à opressão PUTA: Partido Ultra-Tesônico do Amor; Posso Usar Todas as Armas, Prostituto Urbano Teme Acéfalos.
Tudo que é aparentemente sólido destrói-se em um jato de $êmen quando se olha para um problema como o da prostituição masculina. Existem lupas - que a Nancy Fraser achou jogadas lá pelo início dos anos 1990s - que enxergam o patriarcado e o heterocapitalismo. Há lupas que enxergam sexismo e hegemonia. Há lupas que enxergam heteronormatividade e différance. Mas a minha lupa, furta-cor, enxerga tudo isso junto, e mais um pouco, e distorcida, por favor!
A minha lupa tem tons de Perlongher, uma bicha que soube muito bem trabalhar com Marx para produzir artefatos culturais severamente cáusticos, mas de cujo uso é subestimado dentro dessa esquerda falso moralista.
Ele poetifica, teorifica (1984):
Insistimos em remarcar a precariedade desse contrato. (...) Esta conversão de intensidades libidinais a quantidades econômicas conforme atributos possíveis de serem agrupados em séries de oposições binárias que, resumidamente, se processa no negócio do michê, todo esse complexo dispositivo de trocas microscópicas, moleculares, no nível das sensações corporais, funcionaria transparentemente se não estivesse LAMBUZADO PELA PAIXÃO.
Essa suposta modernidade em que estamos, em que (rei!) o capitalismo regula, monetiza, territorializa corpos, práticas e zonas, suporta também linhas de fuga que desafiam a lógica da burocracia, a lógica das territorializações heteroterroristas do desejo, a lógica do contrato, a lógica da profissão e da clientela, a lógica do gênero e da "orientação sexual",
PORQUE CRIAM DESAFIANDO A REGULAÇÃO CAPITALISTA,
com aquilo que é a própria matéria-prima (matéria-das-prima) das opressões molarmente organizadas (hegemônicas).
Capazes de decorar o manual de instruções, não podem ver como o brinquedo se oferece com outra mecânica, porque são incapazes de enxergar dois palmos à frente do rosto: a prostituição masculina não é só lumpemproletariante ou contrarrevolucionária, mas é uma bricolagem gerada no seio de relações complexas e esmagadoras (como a disciplinarização dos corpos, como a capitalização do gesto, como o sistema sexo-gênero, como a exploração da mais-valia a partir do trabalho humano abstrato transformado em valor de troca), que na prática expressa outra coisa: falamos de genuína e notável AGÊNCIA!
Ando a Galope por Espaços Nodais na Companhia da Inteligência Anal.
Opor-se à prostituição feminina acusando-a de conluio com o patriarcado e situando as mulheres como meras vítimas da objetificação e exploração do corpo feminino, é sobre-estimar a sujeição das mulheres e negar a agência incrível que se enreda nos meandros da prática de puta.
Como, a partir da perspectiva do patriarcado, interpretar a prostituição masculina, senão como extensão de uma sociedade doentia pautada pela valorização do homem em detrimento da mulher? Como um ritual de consagração do machismo! Exército de reserva - reserva de porra!
O puto faz uma coisa incrível: ele é pura encenação, pura performance, sua masculinidade é iminentemente prostética! (Estou falando do putanhismo que conheço - e pratico.) O puto aciona marcadores de masculinidades distintos/as para alcançar efeitos distintos, que o conduzam ao sucesso financeiro! O puto sabe que seu corpo e sua apresentação impactam seus clientes. Sabe também da quantidade infindável de micro-nichos mercadológicos a partir dos quais a plasticidade (versatilidade) desse corpo torna-se objeto de interesse. Um puto não é uma mera mercadoria, ele é mercadorias mil!
O puto tem chance de bloquear, evitar ou ultrapassar mediações. Se na ausência de regulação profissional reside iminente precarização do trabalho, o puto pode escapar das mediações burocráticas e controladoras do Estado! Suas plataformas de trabalho (a rua, a web, a sauna) tendem a permitir com que barganhe no corpo a corpo. A conversão do tesão em moeda é lambuzada pelo desejo! O puto processa uma tarefa de utopia urbana: ri do capitalismo no seio do capitalismo! Faz no tête-a-tête aquilo pelo que ciência da propaganda passou a ser obcecada no século XX: monetariza subjetividade, transforma representação em cifra.
Com uma mão o puto se rende aos anseios dos megalomaníacos e das reconstruções culpáveis (Hocquenghem), mas com a outra esfaqueia Pasolinis, circula por mundos que passam a ser autorizados, maneja um capital-sexo, capital-homossexual, capital-puto.
Capital-puto: ter acesso a bens, referências, pessoas e lugares a partir da subjetividade em devir-puto. Não fosse puto, este puto que aqui serve de referência jamais teria vivido coisas, consumido coisas, se transformado em coisas.
E jamais teria descoberto ser possível viver com uma renda gratificante, com tão pouca carga de trabalho. E o melhor: sinto, como uma forma de justiça de classe - e por que não, de gozo -, júbilo em tirar (não pouco) dinheiro do vício pervertido de engenheiros casados, profissionais liberais, jornalistas bem-sucedidos, empresários e moradores dos bairros mais caros de São Paulo.
Pois é, para satisfazer seus desejos mais podres, o playboy de Perdizes, escravo das rígidas convenções sociais de seu meio, me dá trezentos paus pra que eu o chame de putinha enquanto ele chupa o dedão do meu pé. Enfim...
Vender-se não é uma vergonha! Posso atestar isto de dois modos. Em primeiro lugar, o puto, diante da lógica capitalista, não é mais ou menos contribuinte da opressão - senão existe em função de uma série de opressões. Até onde eu sei, no capitalismo, as coisas e as pessoas são passíveis de serem capturadas e agirem como mercadorias. A força de trabalho, naturalmente, passa por essa captura. Então os gestos e actantes convivem num regime de devir-mercadoria. O puto não é menos colaborador do capitalismo e da mercantilização do desejo e dos sentimentos que o operador de telemarketing, o alto executivo e o funcionário público.
Como se, cultivando determinada carreira, se estivesse mais próximo da transformação da força de trabalho em valor-moeda. Isto não é apenas uma aberração teórica. É como se determinada forma de mercantilizar a força de trabalho fosse mais pró-capitalista do que outra. E é também ignorar que, no seio da sociedade do espetáculo, todos os sentimentos são passíveis de mercantilização - e a captura da sensação é o bem mais precioso da pulsão capitalista no processo de "supermodernização".
Mas, se o puto não está isolado das "mazelas do capitalismo", ele pelo menos, em potencial, e como qualquer operador de telemarketing ou alto executivo, possui uma propriedade da experiência-vida chamada AGÊNCIA.
Agora Gongarei Esse Nojento, Coxinha e Ignóbil Argumento.
Assim, é curioso mesmo que se acuse _ prostitut_ - profissão que resiste à história da luta de classes, tanto quanto a do funcionário administrativo - de conluio com o capitalismo, sendo que na contemporaneidade existem formas bem mais capilarizadas e tentaculares de divisão do trabalho (como a existência do quatermiére - a pessoa que, na França, era incubida de que um jantar não tivesse treze pessoas - mencionado por Simmel no início do século, um exemplo de profissionalização possível na cidade grande, o que um marxista caolho chamaria de mercantilização da superstição). Temos o diagnóstico de que a sociedade capitalista é - ironicamente - anti-essencialista (de acordo com Antonio Negri e Michael Hardt, para os quais a produção de identidades híbridas acompanha a produção de um mercado-alvo em devir). Mas o trottoir dos michês de Néstor opera com desterritorializações e reterritorializações, desafiando a lógica de enraização arbórea do capitalismo burocrático, fazendo brotar criativos rizomas ao redor das territorializações molares do desejo e do trabalho.
Em segundo lugar, vender-se não é uma vergonha não apenas porque todos são - compulsoriamente - vendidos, mas, e isso descobri quando me assumi viado, porque cair na corredeira do controle resistindo à linguagem hegemônica requer força. E uma espécie de dignidade - fictícia, claro, mas estratégica.
É preciso ter orgulho de resistir às correntes da estigmatização, patologização e disciplinarização do corpo. Eu tenho orgulho de ser viado, eu tenho orgulho de praticar pegação, eu tenho orgulho de fumar maconha, eu tenho orgulho de ser capaz de adestrar meu desejo. Triste ver como o michê - assim como o soropositivo, a puta, o viciado, o compulsivo - observa organicamente a criação de um armário particular. E, como os demais armários, você pode ser lançado violentamente de dentro pra fora, e sua subjetividade pode tornar-se vítima de territorializações escrotas.
E, fui ensinado recentemente - uma referência da política anti-racista estadunidense -, é preciso ser angry. E eu cultivo esses dois sentimentos - orgulho e raiva - dentro do meu peito. Eles são prerrogativa da minha existência. E não há abuso policial, homofobia institucional ou falso moralismo de esquerda que vá me fazer dobrar às minhas convicções políticas. Estas, felizmente, são informadas por uma bricolagem de experiências e referências que me permitem pensar em formas de agenciar meu corpo para além das mazelas do capitalismo.
Gozaram na minha cara:
ANTONIO Negri e MICHAEL Hardt. Império. Rio de Janeiro: Record, 2006.
BEATRIZ Preciado. Biopolítica del género - La invención del género, o El tecnocordero que devora a los lobos. S/d, disponível na web.
GEORG Simmel. "As grandes cidades e a vida do espírito". In: Mana, vol.11, n.2, 2005.
JAMES Williams. Pós-estruturalismo. Petrópolis: Vozes, 2013.
NÉSTOR Perlongher. "Amor e comércio na prostituição viril". In: Anais da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, 1984.