quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Teoria Geral das Coisas I: Notas de rodapé

Anexo A: Do Sexo

A revolução estética será iminente quando da supressão da dualidade (e bipolaridade) sexual. Durkheim, Mauss, Hertz e todos esses antropólogos nos tentaram provar a a recíproca entre sociabilidade e religiosidade, polaridade "estrutural" e funções sociais. A mulher sexual é socialmente construída enquanto função para ser submissa na relação de poder entre os gêneros sexuais. Não é tanto uma relação natural e necessária com fins de reprodução como Aristóteles o concebeu: é antes um efeito do movimento social, algo cujo pioneirismo de Mead acusou, tornando patente a condição de maleabilidade das funções sociais sexuais. A polaridade religiosa portanto não responde totalmente às intenções da dimensão sexual.
Eu nunca li Clarice Lispector. Isto é, não a li por enquanto. Entretanto, certa vez um amigo disse em uma discussão -que por sua causa tornou-se caótica (seja lá o que possa ser interpretado como caótico)- que a celebrada ucraniana escrevia como uma mulher. O comentário pode ser considerado incendiário, polêmico, radical e perigoso como uma porta -que, para machucar alguém necessita que tal alguém seja talentoso. Entretanto, existe algo que escapa do alcance da interpretação de que se tratou de puro machismo. Não sei se é verdade, porque a minha ignorância acerca do assunto -como já colocado- não me permite conjecturar nada consistente (apenas hipotético, mas vocês entenderão o porquê de tudo isto logo), mas eu creio que, no fundo, o que o meu amigo queria dizer, era que a condição de mulher inevitavelmente trazia uma carga de feminilidade patente na obra da autora (o que soa como óbvio), o que para o meu amigo -e aí haveria um pouco de machismo, de fato- seria a dificuldade das mulheres, em relação às quais os homens seriam mais versáteis.
Quis dizer isso tudo porque hoje, ouvindo a feminíssima Andreia Dias, que é um produto pop, entendi com precisão que, pressupondo que a sociedade é sujeita a mudanças de seus membros sexuais e sociais, a supressão da polaridade tradicional nesse aspecto, que me soa como uma tendência da metrópole. Acho que posso citar Regina Spektor como um símbolo dessa geração de mulheres que impõe seu respeito na concepção de um estilo pretensamente inovador, mas inequivocamente feminino, não apenas vaginal.
No fundo, o sonho universal pós-tropicalista (e talvez neo-tropicalista), o sonho da brasilidade paulistana, me aparece intuitivamente -e agora eu posso explicá-lo racionalmente- simpático à androgenia e à teoria queer; ontem os Dzi Croquettes (talvez Secos & Molhados também), e hoje Solange, Tô Aberta! e Teu Pai Já Sabe?, contribuintes underground (o último, contudo, em menor medida, simplesmente pelo pedante caráter doutrinário da cultura punk) da subversão das funções sociais (inclusive das extra-heterossexuais) são personagens de biologia masculina (e aqui eu de fato corro o risco de parecer controverso com meu próprio argumento). Entendo agora o projeto político d'Os Mutantes e da banda americana The United States Of America; Arnaldo, Sérgio e Rita, Moskowitz e Byrd: pioneiros do som universal que efetivamente suprimiram as divisões sexuais em suas carreiras.
Dentre as mulheres cito Hilda Hilst (que conheço pouquíssimo, a única referência que tenho de sua versatilidade é de duas páginas de um texto ótimo -cujo nome não faço ideia qual seja- que foi recitado para mim há um ou dois anos) e Marli. Aquilo que portanto não foi realizado nas duas bandas supracitadas -no fim do último parágrafo- foi, para além da inclusão, a subversão dos papéis sexuais.
A crescente liberalidade sexual, em relação à qual os pais da geração do ego-herói citadina fazem parte por seu legado, é um dos termos da brasilidade paulistana.
Tentei, neste anexo, esclarecer as mudanças da dimensão sexual e social que são patentes na brasilidade paulistana. Tentei fazê-lo explorando os padrões de gosto, o movimento contemporâneo da arte pop e, especificamente e predominantemente, dentro disto tudo, o gênero musical de massa. A Arte de uma sociedade é reflexo da produção efetiva dos homens dessa sociedade (codificada ou não em pluralidade, ideologia, espetáculo, indústria cultural e todos esses termos). Espero que tenham entendido por que este texto é um anexo da Teoria Geral das Coisas I: a subversão dos papéis, a revolução estética, o sonho do domínio da brasilidade paulistana devidamente historiografado etcætera, são algumas de suas facetas.
Discordarão de mim do caos da universalização? Discordarão do quão bom será? Discordarão do processo? Discordarão de conceber juntas esteticamente a sub-humanização do Projeto B, a política de Marli, a agressividade de Solange, Tô Aberta! e a feminilidade elétrica da Andreia Dias?
O surf acontece aqui efetivamente. Espero ter contribuído para a cognoscibilidade dessa teoria geral.


Funcionalismo Sexual

Mais ou menos bonito, o que é em medida controverso.
-Opa, você sabe onde é o puteiro?
-O puteiro?
-É, onde tem um puteirinho aqui. Não tem um puteiro aqui na região?
-Olha amigo, tem um mas, hum, eu acho que 'tá fechado. Lá na Bonsucesso.
-Ah é? Mas como eu chego lá, é...
-Segue aqui e vira a direita e é lá na esquina, você vai ver, é uma casa amarela, mas eu não sei se 'tá aberto, não 'tá com jeito.
-Ah, beleza, eu vou lá. Obrigado!
-Por nada.
Eu fui para casa, e ele foi tentar dar uminha na noite sem estrelas.


Amor Irreversível VI

Não apenas difícil, mas impossível amar outro.
Penso nas possíveis noites regadas a beijos, madrugadas beijadas até o suspirar do dia, no êxtase da vida na mais potente das atemporalidades.
Impotente, na verdade, na mentira o luxo do hedonismo.
Hedonismo na cidade tem nome, e se chama impotência.
A ciência não descobriu ainda o milagre do prazer pleno. Simplesmente porque o prazer pleno não deve existir mesmo; se existisse fórmula que efetivasse essa quimera onírica, certamente ela seria o tiro no pé da humanidade. Pois olha só o que nós fizemos com essa fração minúscula do que podemos chamar de amor pleno: desvastamos cidades, engravidamos crianças (com moralismo e amor-alismo), passamos em décadas a seres vegetantes e carentes de anti-depressivos.
Não dá, não dá, e não é nem fruto da crítica social moderna.
Não dá pra amar se não for você. Não dá pra gozar se não contigo. Eu não quero ter que lamentar simbiose, porque a real graça de viver é justamente acompanhar os altos e baixos dos diversos vínculos nos quais estamos acorrentados. E aquele que não tem vínculos certamente, se nunca os teve, é o mais feliz, e se os já teve no passado, é o mais infeliz dos homens.
Não dá pra ser feliz se não for com você.
Não me importo se daqui a dez anos eu direi esta mesma frase para outro. Me importa agora, a saber você, que eu não posso me imaginar sem que você consista em parte, que a minha vida seria outra, intuitivamente uma menor, sem você, que te estimo, e esta estima só tem uma inimiga, ou amiga incondicional, que é o tempo.
Não dá pra ser feliz se não for com você.
Eu te amo.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Peça: Domingos na vida (Não faz a'loca!)

Deve acontecer na cidade sem estrelas, e absolutamente ao acaso.
A cena é composta por um vagão de trem razoavelmente vazio, em um metrô de um bairro médio de emergentes, também um polo social da região. Acontece no limiar entre as quinze e as dezesseis horas, em um domingo mais ou menos frio em medida nublado.


Personagens:

o homofóbico militante gay: roupas escuras, calça, blusa de manga comprida deixando à mostra algumas tatuagens (uma delas lembra uma cruz), boné, provavelmente tênis, cabelo curto ma non troppo, alargador, óculos sem contorno de armação em volta das lentes, magro, cara de louco;
o bissexual discreto: barba por fazer, inchado, óculos de armação unissex, cabelo curto ma non troppo, camiseta preta de manga comprida, calça jeans, tênis, segurando uma folha do jornal da Igreja Universal do Reino de Deus, que tinha cruzadinhas (o miolo do jornal havia sido recém-jogado fora, por motivos evidentes);
o homossexual havaiano: camisa florida, bermuda xadrez marrom com azul claro, chinelo, mais inchado que o homofóbico gay mas menos inchado que o bissexual discreto, ponta do cabelo com gel descolorida e mezzo desbotada mezzo violeta versus rosa.


Prólogo

O bissexual discreto senta em um banco duplo paralelo ao do metrô, enquanto o homossexual havaiano no banco duplo perpendicular. O homofóbico gay militante senta no banco duplo perpendicular que forma uma linha contínua com o banco perpendicular em que está sentado o homossexual havaiano. As portas fecham. O metrô começa a andar, deixando à mostra a pequena ponte estaiada prestes a ser inaugurada.
O homofóbico gay militante começa a encarar o bissexual discreto. Olha fixamente para ele, em uma expressão crescente que aparentemente misturava medo, perplexidade, ódio e vários outros sentimentos mistos. Ainda não estava evidente que de fato ele olhava para o bissexual discreto, que apenas achava graça.
Tem início o diálogo.


O Diálogo
HH: I guess, he's with a fork, and he's going to start killing us.
Risos.
O homofóbico gay militante se levanta põe o dedo em riste, acusando o bissexual discreto. Quando fala, fala gravemente, com muito sentimento, misturando alerta com ameaça, e com assustador fôlego. O primeiro clímax.
HGM: Não faz a'loca! Não faz a'loca.
Acusa o bissexual discreto mais um tempo, fazendo ameaças e também com sentido de ofensa. Vai se afastando de repente em passos largos e desajeitados, e também hesitantes e chega até próximo do fim do vagão em pouco tempo. Entretanto, o homossexual havaiano não parava de provocá-lo.
HH: Ei, cara, vamos conversar, vamos conversar! Vamos bater um papo! [E quando ele se afasta,] Olha só, mas que homem nós temos aqui!
Enfurecido com a última provocação, o homofóbico gay militante volta rapidamente, enquanto o homossexual havaiano levanta, e posteriormente o bissexual discreto. Enquanto o primeiro, peitando reciprocamente o segundo (de forma que este notou o doce hálito daquele) continua a praguejar, e o terceiro se esforça em previnir qualquer contato físico apartando os dois primeiros, o segundo consegue engendrar uma conversa mais ou menos lógica no sentido narrativo, que consiste no segundo clímax da peça.
HH: Cara, vamo bater um papinho. A gente desce na próxima estação e vai conversar com os policiais.
HGM: Pra quê?
HH: Porque você está me discriminando.
HGM, surpreendemente, em uma voz mais ou menos audível: Você acha que eu não sou veado igual a você?
Chegavam à seguida estação. Encaminhavam-se para a porta de saída, as vítimas insistentes para que o louco (como se as próprias vítimas fossem sãs) com elas descesse para que a conversa chegasse de fato em termos mais sérios e efetivos -não necessariamente graves. A porta se abre, o homossexual havaiano desce, o homofóbico gay militante fica do lado de dentro mas próximo do limite da porta para o lado de fora, e o bissexual discreto entre o chão da plataforma e o trem. E é este último que engendra o terceiro grande clímax (logo, as três principais personagens da peça são suas três protagonistas).
BD, acusando: Você está preso! Eu como cidadão estou te prendendo por discriminação!
A porta apita. O bissexual discreto tenta trazê-lo para a plataforma, mas não conseguindo, empurra o homofóbico gay militante, que neste ato arranca do primeiro o resto do jornal da Igreja Universal do Reino de Deus que continha as cruzadinhas.
A porta se fecha. O bissexual discreto mostra-lhe o dedo do meio, o homossexual havaiano manda-lhe um beijo, o homofóbico gay militante continua olhando odiosamente através do vidro da porta do metrô.


Epílogo

HH: Gente, que cara loucão, velho!
BD: Eu prendi ele!
Risos.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Teoria Geral das Coisas I

Lendo um artigo de política (sobre a desconfiança como vetor de ação no mundo democrático), logo após assistir a um documentário de um dos acontecimentos históricos que mais me fascinam (este, em especial, desde a minha infância, o Terceiro Festival Nacional de Música Popular Brasileira produzido na Record no ano de 1967), tive um insight mais ou menos fosco a respeito de mais um dos membros da teoria geral das coisas, no sentido que esta se apresenta para mim.
Estou numa curva que, segundo o meu palpite esperançoso, jamais acabará até que o próprio sistema social do homo sapiens finde. Essa curva é esta sociedade para mim palpável, aquela que conhecemos por moderna ou pós-moderna, e que pode, com esforço, ainda ser reconhecida enquanto era representada (ainda que, para os historiografadores, seja cada vez mais incomensurável e evolua sem qualquer tipo de estratégia narrativa definida para traçar marcos definitivos).
Sou parte deste monstro mutante cuja maior tensão é a expressão fabulosa do diálogo com o passado: a pessoalidade versus a impessoalidade.
Viver em uma sociedade que se diz civilizada, embora arbitre estimas e estigmas aos seus estratos (e, aliás, suponha a existência de camadas e níveis), permitindo-os viver conforme uma vontade que os homens não conhecem (e aqui nós tentamos diversas teorias, desde a metafísica, a fortuna divina, o liberalismo, o marxismo, o ces't la vie, até o sonho positivista, a teoria da conspiração, a física quântica, o anarquismo ontológico), é sem dúvida a experiência mais prazerosa para aquele que acredita que a vida pode ser divertida -embora este, eu não duvido, esteja mais sujeito ao suicídio em uma queda da fortuna do que o republicano que pode simplesmente escapar ileso e viver até o fim fingindo todas as noites que ainda é um conselheiro do magistrado-mor: as coisas na cidade são, sem pieguice, mais intensas.
O anarquismo ontológico funcionaria muito bem nesse sentido (ou não, nós nunca saberemos), se os homens fossem diretamente catequizados para serem ratos na brecha do sistema em uma socialização primária (mas também, nada que para uma socialização secundária violenta não fosse também impossível, apenas menos viável). Fora disso parece que reina aquele velho ciclo das coisas; existe uma idade em que os pequeno-burgueses têm de extravasar seus sentimentos impetuosos em relação às mazelas da sociedade. É um grande axioma dos grupos escolarizados: não ser comunista antes dos trinta é falta de sensibilidade, ser comunista depois dos trinta é burrice.
E o discurso sempre se resume a isto.
O caso brasileiro é peculiar nesse sentido. Às vezes, em busca de uma identidade legítima brasileira, penso que os pós-tropicalistas (porque nós não tivemos neo-tropicalistas; a arte brasileira estacionou no Hélio Oiticica, e o documento de óbito foi assinado pelo Cildo Meireles), estes jovens e quase-jovens da classe média alta, cuja ilustração predileta para mim seria a Praça Benedito Calixto aos sábados, são heróis de si próprios que representam aquilo que tenho vontade de chamar de brasilidade paulistana (não duvido que no Rio de Janeiro ou em Brasília seja muito diferente). Parece que não teremos mais heróis de fato, e a História se mostra uma empreitada tão absurdamente intransitável que não duvidaria que os historiografadores simplesmente passem a esquecer a pluralidade e a legitimar os costumes brasileiros no futuro como simples reflexos da Lady GaGa.
Sinto vindo no ar uma réplica neo-marxista, me acusando de fascismo simplesmente pelo fato de que, nessa minha visão romântica do que é a juventude, possivelmente enviesei meu discurso em um foco classista, acadêmico, segregacionista e o escambau. A minha resposta é mais ou menos frustrante: as guerrilhas em São Paulo (e aqui me refiro às tribos urbanas legítimas -e não às tribos civilizadas ou às tribos policiais), as feiras de troca-troca nos bairros paupérrimos, o patriotismo do teatro político, os shoppings, a novela, o futebol e as rádios brasileiras não podem, para mim, servir de critérios para delinear o que é o brasileiro e seu estilo-de-vida, simplesmente porque não há unidade. Os brasileiros nunca sempre foram apenas pretos, índios, pícaros, varguistas, corruptos, dançarinos de teatro de revista, cangaceiros, honestos, estudantes, caras-pintadas, baladeiros, teventes ou brasileiros; o meu esforço em eleger um tipo de estilo-de-vida como representante da nossa identidade, é um capricho subjetivo. Está claro?
Recapitulando. Parto do pressuposto de que minhas interpretações não fogem do contexto social em que eu, por exemplo, como homossexual, sou caçado, ao mesmo tempo que vários homossexuais vão atrás de se afirmar como seres sociais, seja como integrantes emergentes de um mercado em expansão que enxergam no horizonte a possibilidade de obter respeito com a estima econômica, seja como defensores dos seus direitos civis, políticos e sociais que -em virtude de um processo histórico que, obviamente, como histórico, teve origem no passado (neste caso, mais ou menos longínquo)- são sistematicamente negados a ponto de ainda serem caçados por isso. Ou seja, pessoalidade versus impessoalidade; o controle exercido por uma ideologia local versus o dissipar dos conflitos dos indivíduos qualitativos através do reconhecimento das funções quantitativas.
Tendo esse pressuposto claro, quero fazer entender como se dá a vida e a criação de estratégias de exercício dos vínculos sociais nesta sociedade de curva, em especial no caso brasileiro, e na expressão de uma juventude artificial, qual seja, a escolarizada, que vive: a) copiando uma trajetória paterna (porque ainda somos os mesmos e vivemos como eles); b) segundo critérios normativos (que são uma mistura dos valores tradicionais brasileiros, da disciplina europeia e da estética americana), que acompanham a identidade que nomeio como brasilidade paulistana; e c) sem definir de forma concreta personagens muito bem delimitadas como heróis de seu tempo.
Definitivamente, a sociedade pós-moderna e toda a sua confusão semântica simplesmente deu um nó na cuca da História. Não consigo definir de maneira clara a expressão da juventude, e nem unificar em uma só palavra e faceta o modo de viver desse grupo. Meu último argumento, entretanto, diz respeito justamente ao tentar. Já que simplesmente não posso convencer ninguém a conseguir. Imagino as coisas e os fatos como no surf bem surfado; algo previsível, perigoso e cansativo, mas também emocionante, ativo e prazeroso.



Arte como forma de segregação III

Talvez o mais sensato seja mostrar de uma vez por todas quais são os pressupostos da minha análise a respeito do fenômeno Arte.

Podemos vê-la segundo, por exemplo, uma dimensão histórica. Essa dimensão consiste na divisão entre a Arte legitimada pela História e tudo aquilo que está fora dessa legitimação. Aquilo que está dentro funciona como forma de segregação; o que está fora fica guardado ou não em registros ou documentos históricos, tutelados pela biblioteconomia, arqueologia, etnografia, e demais artes do empacotamento.
Sem querer parecer polar ou maniqueísta demais, reconheço ainda aquelas clivagens artificiais que a nossa sociedade adora: a Arte popular, a Arte folclórica e a Arte erudita (como se, em níveis práticos, toda a produção artística possa ser mensurada nesses termos).
A nossa sociedade democrática então consideraria essas três modalidades de Arte e as estudaria segundo um viés próprio. Embora, portanto, nos livros de História da Arte já se veja um esforço em tratar dos três tipos (ainda que, por enquanto, em medidas obscenamente díspares), admite-se tal estudo segundo um viés específico: o erudito é reconhecidamente o carro-chefe (mesmo porque a tarefa implícita do erudito sempre foi destruir sistematicamente aquilo que não o represente; na atual sociedade em que as relações de poder se dão de forma microscópica essa análise se torna mais complexa). Nietzsche já nos mostrou, na sua Genealogia da Moral, que aquilo que nasce com uma estima negativa, só pode ser a negação (e ele o prova por meio da filologia) de uma estima positiva precedente. A Arte que não seja boa jamais terá uma estima que não seja pejorativa. Acho que toda a teoria marxista corrobora esta tese.

A Arte, segundo uma outra dimensão, a conceitual, pode ser vista em termos, não de uma disputa histórica, mas de uma conceitualização que justamente só foi possível com a margem dada pela democratização dos meios de acesso à produção e contemplação artística no século XX. Por democratização da contemplação artística estou me referindo ao fato da Arte adquirir um lugar definitivo no debate cultural (um dos legados da indústria cultural, talvez), seja por meio da abertura pública dos museus ou através da veiculação artística pelo rádio, televisão ou internet.
Posso dizer que tem relação com o quadro geral a descoberta de que a Arte Contemporânea é pluri-significativa e multi-interpretativa; isto é, ela supõe a superação do conceito de observação como imprescindível para a contemplação artística, abrindo espaço para interpretações muito variadas. Muito variadas, porque observações distintas geram obrigatoriamente interpretações distintas, e mesmo observações equivalentes geram em grande medida também interpretações díspares entre si.
Gosto de definir, portanto, a experiência artística como aquela em que sua contemplação (tal como se contempla uma obra de Arte, uma experiência subjetiva) se dá por um ou mais espectadores em um tempo e espaço quaisquer.
No fundo, essa máxima é uma tentativa de a) tornar palpável o que viria a ser o sonho situacionista da supressão do artista, pois na concepção supracitada qualquer um tem potência de ser ao mesmo tempo um produtor e um crítico de Arte, e b) persuadir quem quer que seja que a paradoxal relativização da Arte tem que ter um limite, que é o critério subjetivo, compartilhado ou não, em parte ou inteiramente, com outros indivíduos (sendo este indivíduo uma personagem específica da nossa sociedade, aquela em que há a democratização da contemplação artística).

Tentei levar o alcance do significado artístico às últimas consequências. Mas quero fazer entender também que é essa mesma aparentemente vazia filosofia, dialogando com os limites da sociedade, que determina dentro desta aquilo que pode ser considerado Arte.
Temos um mundo incomensurável. Nossa Ciência, nossa Filosofia e nossa História serão sempre falhas nesse sentido. A Sociologia também. Mas eu simplesmente prefiro esta última porque é a que me permite tornar analiticamente articuláveis movimentos sócio-culturais (algo que a História não conhece com tanta profundidade), sem necessariamente me debruçar sobre a teoria geral das coisas para continuar fluindo (algo em que a Ciência em geral e a Filosofia vivem esbarrando sempre).
Vivemos a posteriori.