terça-feira, 27 de abril de 2010

Texto das Manhãs

"Como eu não posso lhe dar um emprego, dou-lhe um Bom Dia!" foi o que pensei, mas apenas efetuei mecânico uma porta as duas últimas.
Axiomas à parte, sento, eu não sento, não estou certo se imediatamente. A espera não importa, sento, afinal. Um texto do antropólogo das dádivas passeia indeciso entre minha atenção, que trafega intermitentemente pelo cenário da cidade, e entre a falta dela também. A caneta, que podia ser vermelha, verde, cinza, preta ou marrom, afinal essas são as cores das minhas canetas -muito embora eu bem saiba que as dos textos de Antropologia são a cinza, a vermelha e a verde-, grifava na proporção de tempo 1:3, onde 3 é igual aos momentos de pausa e reflexão do nada.
Chove, pinga, esquenta, o ônibus é uma verdadeira sauna, e alguém atrás de mim ainda tem coragem de roncar -um ronco doente, o ronco da cidade, que não tem coragem de dormir, somatiza, somatiza, somatiza...
Penso no amor irreversível, no amor marginal, no amor suicida, esses amores da cidade, olho para baixo, e a caneta -lembrei, era a vermelha!- mancha de sangue toda a obra do etnógrafo, só resta no rodapé uma esperança intacta, mas a tradução literal é provavelmente a seguinte: Tanto Maru dá, quanto Maru toma, e isso é certo, certo. (Maru é o deus da guerra e da justiça.) 15. Bucher 1893: 73, percebeu esses fenômenos econômicos, mas subestimou sua importância ao reduzi-los à hospitalidade.
Alguém com o perfume dos dias repugna a tinta assassina, na metropolitana porta das manhãs. Mas o meu amor irreversível derramou-se sobre a ciência dos homens. O Cemitério da Consolação dança sobre os olhos cansados e muito vivos dos paulistanos.

Um cardume de estrelas se afasta, quer a liberdade.

domingo, 4 de abril de 2010

Eu quis escrever este texto #1

Na segunda vez em que fui na Cinemateca Brasileira ela estava vazia como na primeira. Só alguns cinéfilos superficialmente neuróticos e uma velhas burguesas -muito bem vestidas, diga-se de passagem. Porque ninguém é de ferro (e porque a minha faculdade laica deu aos seus súditos uma semana livre para... estudar -e talvez ir ao cinema) fui à Cinemateca Brasileira neste domingo -armado com um texto do Claude Lévi-Strauss numa mão e uma caneta na outra.
Mais uma vez um filme realista contemporâneo brasileiro -nada tem me deixado mais eufórico do que notar como esses novos diretores conseguem dissecar tão bem a mente do brasileiro com tanta realidade-, embora todos nós saibamos que o realismo, no que tange à arte, é um modelo ideal. Chamava "Hotel Atlântico". Assisti em uma sala chamada BNDES, patrocinada por várias empresas muito ricas e preocupadas em abater o imposto de renda.
O último filme brasileiro que eu havia visto antes desse -que por sinal era também um filme realista e contemporâneo- chamava "Os Inquilinos", em cartaz no HSBC Belas Artes. Indico os filmes, mas este texto não tem a pretensão de ser uma resenha -pelo menos uma pretensão consciente.
Georg Simmel faz distinção, em seu texto "As grandes cidades e a vida do espírito", entre a conduta dos indivíduos em cidades pequenas e cidades grandes. Na primeira imperam as relações pessoais entre os indivíduos, na segunda o indivíduo adquire relativa repulsa às relações pessoais, limitando seu convívio social a círculos restritos. Logo, o morador da cidade pequena possuiria, segundo os termos do autor, ânimo, e o da cidade, pelo excesso de estímulos e adaptações necessárias, seria indiferente (o que Simmel chama de caráter blasé).
Nesse sentido eu acredito que "Hotel Atlântico" e "Os Inquilinos" sejam duas películas onde esses temas são muito bem explorados -temas clássicos, tendo em vista que Simmel em seu texto se refere a um contexto específico: senão a Alemanha, simplesmente os países europeus recém-industrializados, no fim do século XIX, início do XX.
No primeiro, uma personagem completamente indiferente a tudo que lhe acontece -Ele só toma decisões para que o enredo do filme possa se desenvolver-, sem nome, representando um ator -o que também é bastante significativo- viaja por cidades cada vez mais ao interior. O resultado é um conflito entre o marcante caráter blasé da personagem e a necessidade de se impor que o convívio na cidade pequena obriga. O estudo feito a respeito do comportamento das pessoas e das relações de poder dentro dessa sociedade interiorana brasileira semi-feudal é fantástico.
O segundo filme também traz uma análise bem significativa a respeito do cidadão oprimido na cidade grande. Uma família de classe média baixa (nem rica nem pobre) em um bairro periférico de São Paulo se vê oprimida em sua própria comunidade. Todos os meios de comunicação, e mesmo a própria opinião pública influenciam seriamente a conduta da família, que se sente ameaçada quando inquilinos muito suspeitos se hospedam no vizinho ao lado. O resultado é um enclausuramento progressivo dentro da própria casa, onde os integrantes da família passam a nutrir um certo sentimento de ódio pelos novos vizinhos. A lógica do medo na cabeça do cidadão de classe média paulistano é muito bem trabalhada, e nos remete a um debate que não necessariamente está de total acordo com Simmel, mas que de alguma forma tem alguma relação: por que o morador da cidade grande se protege das relações pessoais? tem a ver com o caráter blasé ou é simplesmente um dispositivo de auto-proteção?
Ando cada vez mais preocupado com a minha própria maneira de ver as coisas. Será que o preço que nós pagamos por vivermos em grandes cidades, ou mesmo o preço que eu pago por ter optado por um curso onde o neutro tem um papel tão relevante, seja a completa indiferença em relação às coisas que nos cercam? Antes eu considerava a frieza não apenas como algo necessário, mas como um aspecto positivo. Será que eu estava certo? Será que o futuro do indivíduo moderno da cidade é estar indiferente a todos os sentimentos e fatos tão caros aos interioranos, tais como a morte, o medo, o amor, a doença, o sexo e o inesperado?