eu deveria prestar atenção em tanta coisa, gente.
no cabelo da garota, na mala do garoto. no perfume da professora. no pomo de Adão da Luana. na frescura do saco voador, cheio de pentelhinhos, e prestar atenção nos nós dos pentelhinhos do saco também, e na doçura pipocante das auréolas de Angélica, e as auréolas são angelicais mesmo.
deveria prestar atenção durante a lactação, não me entorpecer, e nem deixar que a maconha faça eu dormir e o bebê bater o côco, e nem deixar que o pó me faça chorar. eu, pelo contrário, deveria prestar atenção nos meus sentidos, autocontrole autoconsciente, deveria fazer ioga, teatro e compostagem caseira. e, claro, prestar atenção, como cidadão, ou como cidadã, no meio ambiente, deixar o modem em standby, jogar o conteúdo do meu moon cup no quintal.
deveria prestar atenção no que diz a minha mãe, porque eu sinto que ela vai revelar um grande mistério. e deveria prestar atenção também no grande mistério da política, pois não sabemos quando virá o golpe, se virá, ou se será revolução, de quem, e contra quem, e quais cabeças serão erguidas, quais encerradas, quais rolarão.
deveria prestar atenção no zodíaco do twitter, porque sinto que uma faceta importante da minha subjetividade está sendo jogada fora por eu não ter acesso aos significados astrológicos. deveria prestar atenção no que fala a minha analista, pois ela estudou pra me entender e, se ela me entende, por mais que isso possa doer, eu devo ouvi-la.
devo prestar atenção na tabela do Brasileirão, pois, se meu time me decepcionar pela sexta vez seguida, pode ser conveniente estudar uma mudança de filiação. também devo prestar atenção na vizinha, porque deve ser um sinal que, toda vez que ela passe por mim, ela ajeite o cós, de forma que sempre eu tenha chance de vislumbrar o contorno rendado da sua calcinha invariavelmente lilás.
devo prestar atenção no trampo, porque a meta está chegando, e se eu não fizer quinze rounds no período de quatro dias, periga da minha chefe sofrer decréscimo de cinco pontos, atrasando meu bônus e forçando um remanejamento da equipe. daí, meu filho, seriam uns sete shoot downs consecutivos.
devo prestar atenção nos textos da disciplina de Cultura Brasileira. não quero repetir nesta altura do campeonato, procrastinar só vai fazer minha mãe ficar puta e eu gastar dinheiro que poderia ser aplicado no presente de aniversário da Luana ou em Smirnoff Ice.
devo prestar atenção nas dálias, que estão baratas, mas também nas espadas-de-são-jorge, que, crescendo portentosas, certamente têm algo a me dizer no plano espiritual.
deveria prestar atenção na opressão cometida contra a minha subjetividade, e também olhar para o sofrimento do outro. deveria dar meu ombro para o repouso da cabeça cansada, e ainda com o braço oposto erguer a mão em riste contra o sistema e lutar pela transformação. e, no meio disso tudo, deveria prestar atenção até em ser feliz.
mas por enquanto eu só olho atônito a vitrine de chocolates enquanto minha cabeça esmagada exala o cheiro sanguíneo da convalescência e o chão tinge de enrubrescido horror pela fatalidade do acidente na madrugada de quinta.