quinta-feira, 20 de outubro de 2016

O garoto de programa é qualificado? – Notas de um anarco-puto sobre mercado de trabalho, ética profissional e Estado

O puto é um artista?

Há um mês fui cortar o cabelo. Uma mapô. R$25. Quarenta minutos. Desses R$25, parte substancial a casa lhe vai arrancar. Pus-me a perguntar, por que eu, sendo homem jovem, ganho pela mesma quantidade de tempo várias vezes mais que aquela mulher de meia idade. Qual é a qualificação (possível) do garoto de programa?

Creio que essa pergunta é exequível em dois intervalos: um antropológico e um atinente à ética profissional, o primeiro etnograficamente ancorado e o segundo um ato prescritivo ficcionalmente elaborado.

Do ponto de vista antropológico, a pergunta equivale ao exame do como uma atividade supostamente limiar emerge como uma prática profissional, ou sexual, ou contratual, ou jurídica, e até política, ou contingencialmente marcada por esses aspectos... Senão, a pergunta-investigação da liminaridade emergente enquanto tal, como o mundo força a prostituição como uma forma de vida liminar, um ponto de estrangulamento privilegiado para a definição dos limites entre humano/sub-humano, intelegível/ininteligível, oficial/hipócrita, moral/ameaçador...

Essa investigação é habitualmente levada a cabo por antropólogos, e por isso periga às vezes quedar-se formalista e blasé, cheia de perguntas respondidas pelos seus enunciados. Arrogante em sua elaboração, a pergunta muitas vezes contém o germe de sua desconstrução, quanto toma a liminaridade como suposta, quando capturada pelo olhar colonizador de um antropo-escandalizado. Contudo, é esse ponto de vista etnográfico, metodologicamente aposteriorístico, que facilita uma reflexão densa e situada sobre a prostituição. Assim, o que é uma qualificação para um garoto de programa? deve ser estrategicamente precedida de outras perguntas de valia antropológica, acerca da produção de um sujeito-GP, um imaginário social do gênero e do trabalho, uma pesquisa acerca de territorializações ao nível molecular, acerca do corpo e o que ele pode/fode etc.

A mesma pergunta, no entanto, entendida aprioristicamente, é que me interessa aqui, pois é uma pergunta sobre a condução política (agenciada e consciente) de uma ética profissional em construção (como qualquer ética, historicamente situada). A prática de GP (ou cyber-GP, como vou chamar aqueles que anunciam em sites especializados) tem me aproximado da compreensão de que (1) alguma qualificação é (entendida como) necessária, (2) essa qualificação é dinâmica, processual e transdisciplinar, (3) qualificação agrega valor, (4) qualificação é pesquisa e (5) qualificação-como-processo possui limites exógenos.

(1) Qualificação, quando operacionalizada, é o que define os contornos do marketing-puto, sendo construída não apenas a partir de uma matriz material, mas também representacional e performática. Quando você se anuncia na internet, não existe superfície e volume, mas texto e imagem a evocá-la. Diferentes plataformas favorecem diferentes formas de representação. O conteúdo dessas representações (cujos limites são dados [a] pela matriz que reconhece um corpo como pertencível a um GP e [b] pela interface da plataforma virtual) é performático, e é dentro desses registros que vimos a variação entre garotos contribuir para a consolidação de um valor de uso e, logo, de um mercado.
Método: qualificar é operacionalizar algo como qualificação.
Dificuldade: É fácil entender o mercado virtual para GPs, ele é estruturante; uma vez que você seja reconhecido como pertencente ao mundão, não terá dificuldade em operacionalizar o que for (tamanho do pau, performance sexual, habilidades sociais e terapêuticas etc.) como qualificação.

(2) Como já dito em outros textos, o devir-puto envolve aprendizado e contato com diversas áreas de atuação.
Passo tardes e noites – e inclusive manhãs! – praticando um treinamento baseado em uma formação eclética e interdisciplinar: teatro amador experimental, antropólogo e sociólogo, militante LGBT, bichassexual, treino em diferentes meninossexualidades, figurinista, cinismo aplicado, agenciador de um repertório de práticas sexuais atualizante, convivência com campos semânticos distintos – estrategicamente acionados –, circulante paulistano, domínio de ferramentas virtuais, marketing pessoal, empresariado autônomo etc. etc. etc.
Método: Qualificar é estar aberto a diferentes forma de qualificação.
Dificuldade: Depende da sua disponibilidade em aprender e experimentar.

(3) Minha experiência-cyber-GP aponta que, à semelhança de outras áreas, esse aprendizado tem grande potencial cumulativo, e que uma qualificação sólida (que valorize originalidade, dinamismo e ética) tende a exprimir crescimento de valor agregado ao uso.
Método: (A forma) como se qualificar é decisivo para explorar as potencialidades do valor de uso.
Dificuldade: Grande. Converter aprendizado, originalidade, dinamismo e ética em valor agregado é desafiador e depende da capacidade criativa do GP de agenciar tudo isso.

(4) Qualificação é saber qualificar, é saber pesquisar, é saber converter pesquisa em cifra e... É também pesquisa contínua; sobre performance sexual, formas de inserção no mercado, formas de se colocar profissionalmente, encarnar etiquetas diversas, experimentar limites do corpo, uma série de habilidades, consciência corporal.
Método: Qualificar tem uma dimensão longitudinal.
Dificuldade: Equivalente ao desenvolvimento de um feeling particular para compreender mudanças, intervalos, sazonalidades. Vai da sua disposição e habilidade de converter experiência em corpus de análise.

(5) Os limites exógenos à qualificação são aqueles que definem previamente a capacidade alguém ser reconhecível como GP ou não. Eles atuam dentro do próprio campo mercadológico, operando ora diferenciações (cor e silhueta como tensores libidinais são bastante evidentes), ora exclusões (do gordo, do velho, do afeminado). Eles, contudo, podem vir (aliás, virão) encarnados na figura do deus Cronos.
Método: Cuidar de si, se agenciar, mas...
Dificuldade: Os limites são, como disse, exógenos, e o tempo destrói tudo.

Toda essa descrição, que ora apresento em forma-manual (para demonstrar aquilo que considero a pergunta da qualificação de um ponto de vista apriorístico), me aproxima da compreensão do puto como um performer. A arte de ser puto, tanto quanto a do performer, é (1) fruto da qualificação de aspectos subjetivos, cujo agenciamento é orientado por um repertório social consolidado, (2) iminentemente transdisciplinar, (3) cumulativa, (4) fruto de pesquisa contínua, e (5) sujeita à força do tempo. É, como toda boa arte, controvertida e sujeita a censuras, seja do falso moralismo, seja do senso comum ou da elite acomodada. Mas, como toda boa arte no hedonista hodierno, é feita do pacto silencioso de um público que a engole e regurgita.

Esse conjunto de assertivas referem-se menos a como um puto se torna puto, e sim a como deve ser essa modalidade de putanhismo que ora apresento. Assim, falo menos de condicionantes para a emergência de um sujeito com dignidade ontológica, mas como esses condicionantes mesmos podem ser e são entrajados pelo puto.

Esse entrajamento equivale à performatização da profissão e do profissionalismo. Produzir e exercer uma ética profissional em um mundo onde tal profissão (e, logo, tal ética) não existe formalmente, é prontamente um jeito de vivê-la. Liberdade, se existe, é prática.

Gostaria de sustentar que o pleito desse ato performativo, contudo, não é e não deve ser pela mediação do Estado. Enquanto essa ética profissional for praticada no negativo daquele, o mel subversivo da prostituição há de se conservar. O agenciamento de que se beneficia o puto, depende da aversão do Estado acerca da burocratização do negócio.

Como sugerido em outro ensaio, a falta de mediação do Estado é o que permite com que as trocas sejam simulacros da gestão financeira formal, e que a autonomia de ganho se processe horizontalmente, no tête-a-tête, sem a triangulação estatal. Padrões de beleza, desigualdade de classe, racismo, sexismo e homofobia já compõe um repertório bastante carregado para as tensões e tensores dos jogos eróticos cliente-GP; por que crer que a intervenção estatal agregaria benesses de qualquer ordem aí? O logro financeiro, e mais, a dignidade de mercado deflagram-se na prática de uma ética profissional, no melhor estilo Do it yourself.

Alguém me dirá: você delira, puto! Esse mundo perfeito só existe nessa tua primavera beatnik-pequeno-burguesa. Hei de concordar, e acrescentar, ainda por cima, que a mulheres, as trans* e as mais pobres sobretudo, têm experimentado severos contornos nas margens dessa agência de mercado. Mas é porque este rascunho fala menos sobre como as coisas são, e mais sobre como devem ser (de volta à utopia), e o meu argumento é pela política do DIY, da livre-associação, do cooperativismo, e de uma ética profissional não mediada pelo Estado, humana, real life, concreta.

Então, (i) quis dissertar acerca não do que contingencialmente tem sido ou não encarado como qualificação, mas sim, sobre que qualificação é desejável (para o GP), e (ii) a qualificação que eu desejo é a aparentada à forma-performer. (iii) Essa qualificação, contudo, reside nos ruídos de um sistema de representação, o que nos coloca um dilema político-existencial (vide Parágrafo último).

Resta, talvez como um desafio aos economistas, entender que expediente é esse que se abriu para os cyber-GPs para que eles pudessem cobrar um valor/hora tão superior a uma série de trabalhos extremamente qualificados. Rio de quem leu esta última frase comprando-a inteiramente. O verdadeiro desafio do economista anarco-puto é explicar por que uma cabeleireira (cuja dignidade profissional é engolida pelo patronato e pelo asco estatal), uma performer do couro cabeludo, é quem ganha tão pouco na relação. Não se trata de nivelar por baixo, mas de conquistar e celebrar dignidade para todos e todas.

Parágrafo último.

No rastro dessas trôpegas reflexões, deixo um post-scriptumscriptum e vomitadumcontradição embutida em toda a minha argumentação: o agenciamento que resulta na performatização da profissão e da ética é, por sua vez, tributário e dependente de uma estrutura sócio-econômica brutalmente consolidada, o heterocapitalismo. A libertação do puto é Zona Autônoma Temporária ou Sociedade Anônima? Entender logro financeiro como libertador não é antes zombaria liberal? Como dar contornos mais realistas a dimensão do desafio-vida para o anarco-puto?