sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Cena I

a sopa rançosa da melancolia desceu melodiosa e sedutora pelas paredes de concreto. os mosquitos nunca se dão conta porque não têm sentimentos, e atacam as placas ensebadas com uma paixão furiosa. isso enquanto o céu esbraveja a sua cantiga da noite, e o horizonte cor-de-nada suspira um flutuar vertical. mariposas gordas e outros abraços voadores, feito lepidópteros amassados pelas cortinas-de-ar cor-de-fogo, completam a cena.
-Na noite do meu ser, peças e mais peças, tantas peças juntas que formam uma lista noelesca. Um suspiro com aroma de toca-de-rato é o primeiro item desta lista, e cada um dos novecentos e oito itens listados aqui supera o anterior em dificuldade.
deita em uma rede de cabelos vindos de cometas e luas confortáveis em plasma de frutas vermelhas. prossegue a cena.
-Com este isqueiro, cataliso as dores e os amores, catapultando esta lista ao cemitério de cinzas preocupadas e doutrinantes. O combustível é o meu sangue.
a lista pega fogo, mas se apaga depressa, pois a ordem requer que tudo volte ao planejado. torres exóticas feitas de tijolos, duas ao todo, sorriem panópticas jorrando toneladas de esperma fresco a cada segundo. e o mar é branco por este motivo.
o poeta deitado na rede se vitrifica.
e cena está acabada, e o quadro será guardado em um porão de poeira indecisa.

18 1 2010


Carta aos amores

as manhãs regurgitam.
e sob a minha cueca azul berrante o meu pinto suado cheira a pinto suado.
na praia eu quero sempre assim: de dia rede, inóspito, e leitura marxista, à noite cerveja & coração fraterno. sabe? nun. ca. consegui.
controlável saudade de um peniano beijo. nastalgia invisível.
diga ao amor da semana passada que tudo acabou -não sei se ele se importa-, que não se preocupe, por. que. aqui. tá. tudo. bem.
centenas de mosquitos, zumbido stereo -insetos à esquerda, o roncar-arroto insone insone praia à direit, ao centro a coluna sans culotte, mudinha, olha para os meus pés fálicos, presa ao gancho que sustenta a rede, de longe é um sorriso-, algumas corujas, céu preto, sem estrelas -mas que bosta! se as estrelas não estão aqui, onde estão afinal? Miami?
diga aos amores atrasados que São Paulo infelizmente voltará esfumaçada para os meus braços de pernilongo, perto do fim-de-semana, então não há motivo para pânico. afinal, alegria só existe porque existe também a tristeza.
e aos amores escoteiros, a minha glândula pineal dá um salve -em nítido francês, bon voyage!
a carta tem fim: dedico agora atenção ao meu pinto suado, isto é, ao seu cheiro lácteo.

20 1 2010



Declaração de Amor Sem Nexo Selvagem

Se eu apoiar minha cabeça no teu travesseiro de nuvens, não haverá mais filosofia, porque darei aos lexicógrafos e políticos o comando para que esqueçam o termo "guerra". Significa que deixarei de pagar os impostos da realidade, pois meus pés não estarão mais no chão. Significa que a gravidade, se acionada caso eu me jogue no teu poço cardíaco tornando cada segundo o mais irreversível, será a entidade responsável pelo meu arbítrio. Significa que o último livro será fechado e a última rubrica será assinada, porque o mundo finito terminará para que se reconheça a infinitude de uma vida plenamente ilimitada, cujo início será incomensuravelmente enigmático e o destino obscuramente inexistente -até que a morte assuma o comando. Significa a perda dos meus bigodes, desgraçadamente hipotecados na mais desgraçada das horas, o que causaria a minha falta de equilíbrio -compensada nos teus braços no pós-queda. Significa que as coisas todas pegarão fogo.
Amigo, se eu apoiar a minha cabeça no teu travesseiro de nuvens, e tu dormires na minha cama de sonhos, é porque vencemos, e da janela da nossa vida apontaremos pros babacas sortidos e riremos intermitentemente (jabuticaba-beijo-sarro).

22 1 2010


noite venenosa -sem lua, sem estrela, sem nada-, eu quero morrer sob a sufocante fragrância do teu olor venenoso, que se confundirá ao meu sangue venoso e trará dialética (feito) um punhal a vermelha e hemorrágico-vertical mancha no meu róseo-manchado punho sangrento e furioso, içando o meu ser-sem-ser ao infinito e radical céu (brilhante feito o simétrico-radial Sol -ali em cima, sorrindo no consuetudinário império das seis horas) redimensionando o ciclo consueto e me trazendo (levando-ando desconcreta & cretinamente) algodoado ao invisível mundo dos séculos.
a mensura é muito perigosa.

23 1 2010

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

é nas horas. todas elas.
tem florescido Ele, dentes.
barba, olhinhos, carinho, cadeira. um alargador.
eu chacoalho a cabeça e dá sujeira.
é hora de limpar: vamos arrumar o passeio. vamos arrumar o passado.
o futuro está na esquina, ele vem me visitar.
FECHO
vontade de atacar esta poltrona, que insiste em me levar para o futuro.
fecho os olhos e desfunciona. temo sufocar de amor da morte.
a poltrona não para. a paisagem nunca foi tão torturada.
FECHO
você me assombra

depois de muito tempo, 15 1 2010


em uma corrente de esperma
minha cara brancacenta se perde
navego quase um palerma
e a alvura ao devaneio cede
a cama, a mesa, a cadeira, o céu
tudo está alvamente branco
e eu respondo sob cândido véu
te amo, te amo, te amo...

16 1 2010


Razão do Gozo

Tinha naquela casa um sujeito semi-acafetado, ligeiramente afetado -ou afetamente ligeiro-, de nome Edmilson Estevão (mas quando lhe perguntavam o nome, dizia "Ed, Ed Esteves, seu criado"), que ninguém sabia o que fazia nas horas livres, o que era bom, afinal, Edmilson não sofria com fofoca, e o fato de ninguém saber sua ocupação ociosa sinaliza que a vizinhança cuidava de seu próprio nariz. E que bom, pois se os moradores da Rua Juventude em incursões pelo olfato alheio descubrissem a que tipo de perversões a juventude de Pedolândia, cidade ao interior de algum lugar bem interior, era submetida no quarto dos fundos do salão de beleza de Ed Esteves, certamente sua cabeça seria separada do corpo no clímax de um processo de tortura -institucionalizado na região- inciado por um linchamento.
Regionalismo é arte.
E o Ed Esteves não precisava de muito para conseguir os garotos que o satisfazia: ele os conseguia de graça. Muitos eram frequentadores assíduos de seu salão, o que tornava tudo mais fácil. Edmilson, afeminadíssimo na frente das clientes, uma verdadeira flor, de meiguice insuperável, unhas sempre feitas, cabelo impecável e dono de um sedutor rebolado natural, despretensiosamente erótico para os hormônios púberes dos seus mais de trinta avulsos enteados, tornava-se uma fera quando ia para o quartinho com um -ou mais de um- de seus príncipes vespertinos. Agarrava-os com uma paixão sobrenatural descarregando toda a sua energia acumulada em um dia inteiro de trabalho exaustivo e humilhantemente dissimulado em movimentos intensos, transbordados de suor, saliva e jatos brancacentos de prazer instantâneo. Fazia tudo do alto de seus vinte e sete anos, onde nada mais importava senão a garantia de que todo dia depois do trampo pelo menos um rapaz sedento estaria disposto a relaxá-lo. E então eram aqueles arranhões, mordidas, puxões de cabelo, no mínimo durante uma hora até a coisa dar a ignição total.
(As cicatrizes, para as namoradas e os pais, sempre tinham explicações ingênuas -foi durante o jogo de futebol. As marcas no pescoço se tornavam alergias -vindas de alegrias-, as marcas dos dentes eram meras competições entre amigos.)
-Mas me conta aí, Ed, por que que tu tá sempre de bom humor?
-Ai, amiga, eu sou um rojão de felicidade, não sabe? Eu sou é feliz por poder ter vocês todas como amigas.
Risadas gerais.
-Ai, Ed, você é um amor. Olha, aí vem um cliente.
E era um menino do alto da arrogância em seus quinze anos, falando como alguém com o dobro de sua idade.
-Você é o Ed?
-Ed, Ed Esteves, seu criado.
-Me arranja um corte de homem, aí.
As dondocas do salão riram. Só tinha uma coisa que deixava o cabeleireiro Ed contrariado -e daí o criado Ed Esteves se tornava malcriado-, e essa coisa era piá grosso e querendo se aparecer. "Ah, esse aí eu curo na cama com uma boa surra de pinto mole", pensava. Já eram sete horas da noite quando o moleque apareceu. Todas as clientes já íam saindo e Ed, no seu silêncio de aranha foi tecendo o plano de como faria para enredar aquela figurinha. Quanto mais fios de cabelo caíam ao chão, mais subia-lhe o desejo de abusar daquela criancinha metida a adulto, de mostrar-lhe o quão criança ainda era, para ensinar-lhe a ser adulto sobre o colchão improvisado ali no fundo. O menino pareceu ignorar todas as medidas tomadas pelo cabeleireiro durante o corte, como se soubesse o que viria mais tarde -e sabia. Edmilson propôs o fechamento da vitrine argumentando que nenhuma cliente apareceria ali novamente ainda naquele dia, apagou metade das luzes dizendo que queria economizar, tirou sua camiseta dizendo que ali fazia muito calor, e fazia mesmo, e propôs o mesmo ao garoto, que prontamente o acatou.
Ed então agradeceu ao seu deus, pois já tinha entendido que as pretensões do baixinho transcendiam o simples corte de cabelo. Quando o som da tesoura cessou, Ed perguntou ao rapazote se ele não queria ir tomar um banho com ele para lavar o cabelo, ao invés de simplesmente usar o tanque de enxágue. O garoto aceitou, e o senhor Estevão teve mais uma noite longa, como todas as outras.
No dia seguinte, logo cedo, enquanto o barbeiro ainda abria a porta de seu estabelecimento, um homem d'uns trinta anos brotou e lhe disse:
-Você é o "seu" Ed?
-Ed Esteves, seu criado.
-Tu lembra daquele menino ali? -apontou para o mesmo moleque do dia anterior, que estampava um longo e amável sorriso.
-Lembro sim, cortei o pelo dele ontem. Por quê? -desconfiado.
-Tu lembra o nome dele?
-Lembro. É Fábio... Fê, Fá... Fernando, né?
-É! É Fernando. Eu sou o pai dele, "seu" Lúcio -apertou fortemente a mão do cada vez mais confuso e assutado cabeleireiro-, e vim aqui pra saber se tu não quer casar com o meu pequeno.
-Desculpa "seu" Lúcio, não ouvi direito.
-O pequeno quer casar contigo.
-Como assim casar?
-Ele me contou da relação entre vocês, e eu sei que tu é um sujeito trabalhador, honesto, independente -esta última palavra falou pausadamente dando batidas alegres no ombro cadenciado do amante eventual de seu filho-, e o pequeno é esforçado, gostou muito de ti, disse pra mim que queria era casar e eu vim aqui ver se tem um jeito, pelo menos dele morar contigo, eu ajudo no que for necessário. Como é? -e soltou uma sonora e simpática gargalhada.
Ed Esteves estava petrificado. Congelara-se em determinado momento do discurso de "seu" Lúcio e permanecia em choque. O garoto estava impaciente, olhinhos vidrados na cena, cujo diálogo estava impossibilitado de ouvir pela distância.
-Fa-faz o seguinte. De-deixa o seu ende-endereço aqui, que-que eu passo na-na tua casa e dô-dô-dou a resposta o mais cedo possível -e se esforçou terrivelmente para dissimular um sorriso.
"Seu" Lúcio anotou os dados satisfeito em um papel marginal e voltou para sua residência com o esperançoso pivete. No mesmo instante em que os dois dobraram a esquina, Edmilson Estevão fechou as portas de seu estabelecimento, fez rapidamente uma mala improvisada com os cacarecos que tinha nos fundos da loja, abandonou a Rua da Juventude e foi pegar o primeiro ônibus rodoviário para a cidade mais distante de Pedolândia.
Fernando superou bem a fuga do ex-parceiro. Fez administração em uma universidade federal e foi morar em São Francisco, onde casou com um bem-sucedido esteticista.
Já o Ed, pobrezinho, ninguém nunca mais viu. As pessoas dizem que ele foi atrás de um namorado na cidade, que no interior as bichas não querem nada sério.

18 1 2010