segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Biorragia #1

estourei uma bolha do joelho e rumei ao xópim. dois quilômetros daqui, e tinha algo de cruel no cinza-claro, algo entre o roseclér e o turquesa, que era particularmente inapropriado e perturbador para o frio desonesto. o Cantante Amabile do meu andar não escondia a natureza da minha trôpega elegância, qual seja, a fome que começara bem quando eu mastigava o último aipo duro que ainda havia em casa pela onze horas. já era dezessete, e eu tinha que sair com antecedência para chegar na hora da janta, tendo em vista o ritmo das minhas pernas fracas. para entrar em condições na galeria, vesti algo como a minha melhor roupa, que não passava de umas flanelas meio empoeiradas. mas entrei sem caô, o bom e velho segurança era meu bom e velho parceiro, e juntos costumávamos roubar caixas de chocolate na Furdúncia, e também na Liisa. nunca soubemos porque chamavam-na de Furdúncia, mas tínhamos a ideia de que Liisa tinha mesmo esse nome, com dois is, porque havia sido batizada assim. o bom velho segurança costumava ter um nome quando éramos dois demônios pré-púberes, mas como hoje é ele quem protege os chocolates, e se veste de maneira alinhada e sofisticada, o fato de ele nunca ter me barrado justifica-se pela mera nostalgia dos tempos de infância, que a minha figura torpe hoje evocava. Kerouac, Ginsberg e todos aqueles chupadores de rola disfarçados _mas às vezes nem tanto_ não me convencem mais. o que há de mais precioso no mundo nunca esteve em estantes banais e empoeiradas, mas na trivialidade, algo que só os burgueses têm tempo para se debruçar sobre. a trivialidade, dos pequenos furtos, das notícias populares, das gotas de suor no metrô, no sabor divino de um bife duro rejeitado por um filho médio de paladar exigente. exigente não por gosto, e sim por frescura. um temaki pela metade _não gosto de pensar em comida porque salivo_ mas aquele temaki constava em uma mesma bandeja onde outro havia sido inteiramente consumido. aquele sim eu comi com gosto, e era fruto de uma mente refinada e um paladar justo. o consumidor do bife duro não é o mesmo do temaki, pois se ao primeiro tivessem servido o prato do segundo, ele certamente sequer teria dado uma segunda mordida. contudo, não estou em posição suficiente para me sublevar contra quem quer que seja, são todos invisíveis, suas salivas, gripes, sapinhos, herpes e hepatites, e eu não me importo, pois é como beijar a mesma quantidade de bocas que estou acostumado a beijar em uma noite de farra por calçadas lotadas por long necks e latas de alumínio vazias e malcheirosas. na minha cidade é impossível discernir o sabor e o gosto de um resto de cerveja de milho da urina fresca de um viado. alguns anarco-fodidos que eu atrevi a dizer que conhecia há dez anos atrás chamariam o que faço de freegan, freeganismo, mas de tão fodidos, nunca se deram conta que toda a teoria que tinham era enlatada, por isso chamavam tudo com o nome de coisas em inglês, e hoje as bichas mais bichas da sociedade, ou aquelas que se pretendem as mais bichas, criam termos colonizados tirados do hímen para sexualidades tão fractais que nunca as terão, enquanto as bichas mais bichas de verdade comem o pão que a sociedade amassou, dando a bunda por temporadas inteiras para conquistar uma barra de knorr sabor carne. felizmente eu passei no teste da fachada, e estava na praça de alimentação comendo algo um pouco além de um tablete. já havia perdido as contas de há quanto tempo vinha fazendo aquilo _decidi que não era rentável contar a partir do décimo primeiro dia seguido. enquanto os dias passavam, trabalhava em um projeto para além da penúria. contando assim, agora, vai soar equivocado ou ridículo, mas era em um instrumento musical em que você usava tão somente os pés, senão a boca e os pés, não lembro direito porque perdi meus cadernos, mas aquilo era muito sério, e a primeira versão se chamava pedofone, ou melhor, podofone, ou algo que o valha. enfim, eu comia metade de uma parmegiana, se frango ou carne, melhor ignorar, e um sujeito bem vestido se aproximou de mim, anunciando um diálogo. eu imaginei, e para fim era extremamente óbvio, de que se tratava de um magnata caçador de talentos que, em um momento de tédio, decidira entrevar-se pelos xópins de classe C, e que puxaria um assunto comigo, logo nos tornando amigos, e eu alçado ao mundo da expertise, o podofone seria mundialmente conhecido e eu coadunaria da fraternidade universal dos grandes pensadores.
_boa noite.
_tudo bem?
_tudo. eu sou o gerente da equipe de segurança, e tenho que dizer, estamos intrigados com a sua postura dentro deste xópim. não julgamos adequado que se alimente dos restos de outras pessoas, o xópim, nem qualquer restaurante a ele vinculado se responsabiliza pela sua conduta. entende isso?
_sim.
_gostaríamos que você se retirasse.
_vocês não podem fazer isso.
_é para o seu bem.
_vocês estão me ameaçando? não estou cometendo nenhum crime.
_eu sei. mas não é adequado o que está fazendo.
_tentem outro dia.
_tem que ser hoje.
_por quê?
_simplesmente acate pacificamente o convite.
_conheço meus direitos, e vocês não vão me intimidar.
_você fez sua escolha.
_exato!


passaram-se alguns meses, e eu já havia feito amizade com toda a equipe de segurança _aliás, restaurado a amizade com o guarda da frente que, vim a descobrir, nunca fora meu amigo_ e estabelecido laços com os demais funcionários dos restaurantes de fast-food, de forma que passou a ser desnecessária a procura por restos; quando as funcionárias que recolhiam os pratos não me traziam meia salada caesar, era o Indian tribe quem me fornecia um prato de cortesia _neste caso, em função da proximidade entre eu a balconista coxuda. abandonara o projeto do podofone, e agora estava envolvido com a carreira de assistente pedagógico em festas infantis, algo como alguém que presta assistência psicológica para crianças que, por ventura, sejam encontradas no meio de crises existenciais ocasionadas pelo contato com outras crianças em ambientes de lazer. poderia falar mais, mas perdi meus cadernos. nunca consegui distribuir meu portifólio. cruzei a ponte do córrego que dava acesso ao meu bairro _se é que assim posso chamá-lo_ e, num momento de despreparo, precipitei-me contra o barro em curso. foi bom, por um lado, pois pude pensar bastante no hospital, ou pelo menos houve algo dentro do conjunto de delírios que eu tive que me fez ter uma epifania.


quando voltei a beber, percebi que não era mais o mesmo, pois parei de bater nas pessoas. ficar internado deve ser menos angustiante que preso, e não sei por que me deixaram tanto tempo em um hospital mulambento, algo como dois meses, um período que só seria justificável se eu fosse portador de uma doença rara. não fui portador de nenhuma degeneração crônica, até onde sei, mas cuidaram de mim como um interno, dando comidas que eu não seria capaz de dar para um amigo na solitária. a primeira coisa que fiz depois que saí, foi beber. por algum motivo misterioso, eles me deram um cheque, nunca entendi muito bem por quê. talvez fosse alguma indenização. gastei metade em bebida, afinal, não era muito. o retorno à bebida foi pacífico. a balconista do Indian tribe me visitava quinzenalmente no hospital _só Deus sabe como eu gostaria de lembrar seu nome. pude apresentá-la ao gim. quando o dinheiro do cheque começou a minguar, mudamos para vinhos baratos e coquetéis. quando acabou, voltei para a praça de alimentação, e conheci a balconista do Frisée Gourmet, que tinha coxas ainda maiores, mas menos ânimo, o que de certa forma era confortável. no hospital comecei um novo projeto, que logo abandonei. chamava Luzes, e não lembro do que se trata, era ambicioso demais, e eu vivia dopado. mas lembro de ter tido o insight quando vi a luz do ambulatório refletida no purê de batatas aguado _tão aguado ele o era. contudo, minha maior epifania veio nos últimos dias de internação, porque estava pensando nos Idiotas do Lars, e de como eu poderia me apropriar das benesses daquele espaço. me reuni com a balconista do Frisée _esta, de fato, não era portadora de um nome apropriado_, que era a pessoa em quem eu depositava mais confiança, e, em um momento de idílio, confessei quais eram meus planos. desde então, fui barrado peremptoriamente do xópim, e das coxas dela, o que me deixa muito comovido. mas acredito que tudo isso tenha sido bom, a internação, os dias no xópim, as coxas, as ideias. não me queixo. se meu plano terrorista tivesse logrado, talvez não teria tempo para deitar aqui minhas palavras, uma vez que me tornaria uma grande celebridade, e grandes celebridades não têm tempo para nada, como todos sabem, e se tornam pessoas extremamente dependentes de tudo e todos. é famoso o caso da Brigitta, não preciso mencionar o episódio do flagrante. antes que eu fosse surpreendido com papparazzi em uma cena desconcertante, a funcionária do Frisée fez o grande favor. vendo de uma perspectiva otimista, eu escapei de ser preso naquela época.


Brigitta foi flagrada enquanto sua terapeuta limpava a sua bunda. e eu gostaria de ter o que limpar, mas o meu intestino não sabia o que era bolo fecal há uma semana. foi quando adaptei meu plano inicial, que era fazer desmaiar todos aqueles que estivessem dentro do xópim, por meio de um sofisticado projeto de engenharia que, por algum infortúnio, eu perdi, mas tinha um nome. o gás etéreo permitiria que eu, com agilidade, e munido de uma máscara de gás, retirasse quantias disponíveis em bolsos e caixas, e certamente todas aquelas pessoas receberiam indenizações em cheques como o que eu recebi. a adaptação consistia de uma montagem eclética entre hipnose e um encadeamento discursivo do tipo Polishop. comecei treinando com Brigitta, nome que dei à cadela com quem fiz amizade. a vantagem desta Brigitta, é que eu não precisava limpar a sua bunda. acredito que, com algum êxito, a cadela cedeu e, se tivesse dinheiro, certamente me daria. como se alimentava melhor do que eu, tinha muito mais ânimo, tive que admitir que, em uma ocasião específica, fora ela quem me hipnotizou. mas pelo menos foi uma vez só.


comecei a perder a paciência, e tirei o componente psicológico da minha abordagem, tornando-a cada vez mais transparente e política. percebi que lograva igual, o que por si só não era um bom sinal. a última vez em que apostei nessa abordagem, recebi uma iluminação.
_oi.
_...
_me dá dinheiro.
_não tenho. 
não tenho, não tenho, não tenho... essa frase rodou na minha cabeça, rodou muito. algo dentro dela parecia prometer muito alento, paz, e dias queridos. nos meus dias de CL, tinha um conhecido, que eu chamava de amigo, que me apresentou Irreversível do Gaspar Noé e dizia que Jorge Ben era o maior poeta dadaísta da MPB, citando trechos supostamente surrealistas, e ele coadunava de todos os preceitos do anarquismo ontológico de Hakim Bey, mas já era extremamente crítico, e eu estava começando a ser crítico, e ele mencionava Nietzsche com uma naturalidade anormal para um jovem de sua idade. hoje ele opera no mercado financeiro, mas ainda lê Deleuze e pensa em semiótica. algumas coisas mudam, lhe disse um dia. acho que ele pensa que é anarquista, e talvez seja. talvez a insônia faça algumas pessoas geniais, e a inércia e a indolência congele outras. acho que não posso mais dormir. tenho um livro na minha estante que fala sobre como o capitalismo tardio criou um exército de pessoas que dormem o mínimo possível. não li, tenho muito sono quando começo. esses dias conheci um sujeito que disse ter renunciado ao dinheiro para viver. ele evita ter e gastar. eu era muito parecido com ele, em termos de penúria. mas o dinheiro, ah!, eu o queria.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Confiar

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu”.

Olhar para o horizonte tem sido desafiador. O horizonte, que servia para alentar, hoje me dá arrepios. É por esse costume de pensar no que vai ser de nós amanhã. O horizonte está dando tchau mais cedo, estamos desintegrando o horizonte. Até ontem acreditávamos em dragões. Hoje sequer podemos sustentar a fé no retorno do Sol. Já sabemos que somos parte irrisória da história. Já sabemos que a nossa existência equivale a menos que um milésimo de segundo na escala do universo. E ainda trabalhamos obstinadamente em detonar essa parca existência com o medo recorrente de que tudo vai explodir. A crise vai nos dizimar, se as armas de destruição em massa não fizerem isso antes. Se um cometa não se precipitar contra nossas cabeças, o metano vai retirar o chão sob nossos pés. Se os hormônios não nos matarem de câncer, as ondas eletromagnéticas o farão. O melhor jeito de escapar da violência urbana é se amarrando a um divã. Antes que os mísseis atinjam São Paulo, as tropas virtuais terão sido engolidas pelo acelerador de partículas. E ainda nos vemos confortáveis, achando que, pelo menos, nos livraremos do HIV ou do zika, mas o nosso consolo, com um olhar pouco arguto, sincero, se materializará no coquetel cerveja e TV, café e Rivotril. Nunca entendi como tudo isso poderia ser conciliável!
Até ontem deitávamos sobre o oceano, livres, destemidos, nossos temores eram outros, outras eram nossas preocupações. Hoje o firmamento nos ameaça. O medo de atravessá-lo nos paralisa. Se optamos por cruzá-lo, é no ímpeto de firmar territórios. Uma bandeira por metro, estamos a salvo, a Terra foi inteiramente colonizada pelo olhar, e o que sobra dessa arrogância, é que sempre achamos que sabíamos tudo, quando na verdade estávamos mentindo para nós mesmos, fingindo saber lidar com a imensidão, na qual hoje simplesmente não podemos mais confiar.
Confiar, acreditar com. Qualquer convicção é suspeita. Como fiar algo cuja fiança é moeda morta? Em tempos de individualismo generalizado, como crer em conjunto? Não soa sequer possível. Parece que foi ontem, acreditávamos em deuses, em monstros, em revoluções. Hoje preferimos nos desgarrar do contrato de mentiras que assegurava a nossa unidade, para nos tornarmos um Leviatã de micro-verdades antipáticas e sanguessugas.
Francamente, a doença do século é essa dificuldade de tecer junto. Criamos uma vida de revista científica, nossa visão de mundo se sustenta até a semana que vem. Criamos uma vida de novela, nos desapontamos muito quando não conseguimos ter uma vida medíocre, uma paixão e um final feliz. Se a vida fosse uma poesia, dificilmente acreditaríamos nela. Lemos poesias como bulas de remédio e receitas de bolos pré-prontos. Não, a vida não pode ser uma poesia!

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal?

Não importa muito a resposta atual.
Senão para as estatísticas.
falânsia #1

fazer dela,
a promiscuidade,
crime perpétuo
contra a humanidade,
que bela coerência
entre o que quero:
livrar a cidade
do que não há de sério
– o que eu aspiro só cabe
dentro,
bem dentro
do inferno.


romantismo realista

deveras conveniente.
a prática da deriva consciente só pode ser um exercício plausível para aquel_s que têm para onde retornar no fim do dia. os verdadeiros bastiões da deriva são anônimos, conhecem os verdadeiros benefícios e dissabores da reelaboração de sentido do espaço. temos muito a aprender com el_s.

deriva situacionista! eis um luxo que só cabe nas pesquisas cênicas ou filo-antropo-sociológicas dentro de editais – daquel_s pouc_s que conseguem transformar pesquisa séria e radical em cifra pública ou privada.

não que a deriva seja uma tarefa impossível. nosso realismo já é romântico, temos de nos lembrar do oposto.

[a ideia não é malhar aquel_s que estão lutando, qual recalcado, e sim fomentar a crítica]

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

fingiu recuperar-se de um susto e disse

– e aí?
– e aí que eu jamais trocaria aquilo por um Spoleto com bacon, milho, ervilha e molho branco. não é assim, também, tô exagerando, porque, por incrível que pareça, não foi traumático. foi divertido, até!
– cruzes!
– ah, tive um momento de crise existencial, mas já passou. quando eu bebo, qualquer crise parece decisiva para o que eu fui, sou e serei.
– me lembra a época dos programas.
– meus ou seus?
– meus, né?
– o nome dela era Susi, perguntei se era de verdade, não tenho a menor dúvida que ela mentiu. mesmo se tivesse dito a verdade estaria mentindo, seriam duas Susis para pessoas diferentes, meros homônimos.
– concordo com você. mas não sei se a sua perspicácia me ajudaria com uma contradição.
– não falamos mais de Susi.
– não, o tema programas com a minha rubrica.
– diga.
– por que as pessoas se importavam mais com o fato de eu tomar remédios para emagrecer do que me prostituir?
– para esse povo que somos nós, acho que a primeira coisa tem relação com a ideia de um corpo escravizado, e o seu uso da prostituição sinalizava uma ideia de corpo auto-consciente, produtor de agência...
– me soa hipócrita. tenho dois contra-argumentos. só que um depõe contra mim.
– sim?
– o primeiro, eu-friendly, é assim: por que eu sou mais auto-consciente pra me prostituir do que pra tomar remédios?
– e o outro?
– é inescapável: minha auto-consciência não existe.
– sou mais esse!
– pois é!
– será que poderiam dizer isso para mim agora, sobre a Susi, depois de tantos anos de perversão praticante?
– diriam sim. você é uma farsa!
– não me faça retornar aos meus bad feelings existenciais.
sorry, dear!
– sussi!
– bom, que tal então um Spoleto pra comemorar?
– prefiro ser um otário do Starbucks hoje.
– por que não?
– partiu!
– ...
– vou passar no crédito.
– sempre!

reunião de trabalho

exoesqueleto firme
endoesqueleto com osteoporose
torce a aperta o duodeno
o dissenso em overdose
o pretume obsceno
do aspartame hediondo
no café então em mira
- o acionista caipira
discursa em basso profondo -
e então é que atino
- como tudo isso gira
dentro do meu capuccino?