terça-feira, 29 de junho de 2010

Declarações de amor com palavras ao vento I

#1
Aproveitando o jogo do Brasil, vesti aquela camisa verde-abacate que eu não usava há muito tempo por vergonha, e fui andar de bicicleta. Quanto verde, quanto amarelo... Mas o mérito verdadeiramente paulistano, e verdadeiramente verdadeiro, é o cinza.
Eu te amo, inferno.

#2
-Sim, gato, nós temos que resolver uma coisa sobre a tua cama.

#3
Acho que a sola do meu pé nunca mais será fina de novo. Não o temo, sinto-me protegido.
Acho que os calos que o guidão da bicicleta produziram na minha mão jamais sumirão. Não os temo, sinto-me parte de alguma da coisa da qual jamais terei vergonha.
Acho que o meu coração sofreu um acidente e jamais conseguirá respirar por conta própria. Não o temo, desde que você esteja lá para alimentá-lo, até que um dos dois primeiro se vá.


Cigarros Voadores!

Um cigarro voador muito bem planejado não significa que em tal processo se constitua como agente da perfeição. Mesmo porque tal processo está fadado à imperfeição se esquecido pelos delegadores de critério: a ciência é relativa.
Pés-de-galinha fenestradas estão dançando paradas. Apenas o foco míope defenestra a si próprio, acompanhando a catapulta digital. O arco descrito é luminoso feixe, faísca laranja na rua planejada. Ou quase planejada.
O importante é que assim começou o diálogo.
-Cigarros voadores!
-Opa! Foi mal aí!
-Que é isso!
Uma gargalhada inapropriada.
-Escuta campeão, como chego na Flores Campos?
-Aonde?
-Na Flores Campos.
-Ah! Vish! Acho que você tá meio longe.
Da fenestra os míopes olhos notaram os cansados interlocutores, comportados em bolsões cor-de-terra. Entretanto não cessavam de brilhar. Logo completou!
-Ah! Espera aí que eu te dou uma carona.
-Ah! Não! Não! Não precisa, eu vou ligar pro táxi.
-Preciso comprar cigarros, o Premium é o supermercado...
-Isso!
-Que fica...
-Então, é lá perto, me falaram.
-Na Flores Campos.
-Perto de onde preciso ir, quer dizer.
-Então peraí um pouco, vou só pegar uma blusa e avisar a velha.
No caminho não trocaram palavra. Um súbito constrangimento apossou-se do carona. Contas eram feitas a título de passatempo. Unhas, contudo, não foram poupadas da mutilação do acompanhante avulso. "Por enquanto foram dez minutos. Como é meia noite e meia e praticamente não há trânsito, a pé eu demoraria uma meia hora. Acho. Então, se disser à Lucinha quando chegar que..."
-Desculpa!
Disse antes da não-calculada parada. O carro fez doente ruído.
-Preciso ver uma coisa.
Assustado.
-Ah! Okay! Digo, já está perto? Posso ir andando.
Nenhuma resposta. Suave ré. Olhos arregalados.
-Que que há campeão? Tá tudo bem contigo? Tá passando bem?
Olhos estáticos. O novo amigo resolveu segui-los.
Em um beco insuspeito silhuetas brincavam. O campeão chora.
-Que foi? Acho que você está tendo alguma crise, né? Espera aí, eu já volto, vou buscar ajuda.
E no final da história, nem o dono dos pés-de-galinha esperou seu companheiro instantâneo-ocasional, nem este último voltou com recursos para auxiliar o primeiro a voltar ao estado de normalidade.
E, eu garanto, como que como um milagre, o cigarro arremessado só se apagou com o primeiro raio de luz arrogante matinal.

fim de junho
2010


a melhor poesia que eu escrevo
tem as letras do meu amor
eu luto pela poesia - do meu amor cogniscível
subcuecante e supracardíaco, o amor difícil
das centenas de horas, agoras, aforas
que chora, que flora, que adoro, deploro, que adôrno, que chôro

a melhor poesia que eu canto
tem o cheiro do meu amor
eu luto pelo aroma - do meu amor reconhecível
lácteo-pigiante, naso-sudoríparo, o amor sensível
meu amor escovado, lavado, chupado
lambido, marido, na cama, sacana, deitado, jogado...

esperando minha boca

5 4 2010

domingo, 27 de junho de 2010

Amor Irreversível III

Eu tenho o péssimo defeito de não saber de cor as letras das músicas da moda. Depois de ancorar no porto seguro (olhos, um par de botões) me resta apenas determinada simpatia e um fascínio de sociólogo sobre o que é este êxtase artificial e celular no qual esta galera moderna é viciada.

Te falar que não me exerce fascínio é te assumir alguma medida de hipocrisia. Meu rapaz, essas coisas são gostosas, eu sei. Sabes também. Não o negaremos. Mas até agora o que me resta é simplesmente a curiosidade sociológica. Descobri o amor na porta das manhãs, foi à tarde, e eu o estou vivendo nas barbas da eternidade.

Amo irreversivelmente. As senhoras sentadas em estrelas despencaram terrivelmente. As cores que pediram a conta do analista voltaram; estão quase em alta. Tirei do freezer algumas das estrelas. A cidade tem feito por merecê-las. Se minha felicidade tivesse um nome -e seria maldoso da minha parte batizar um sentimento imensurável, mas estamos falando de estética-, seria Eduardo. Nome de uma felicidade eduarda.

Eduardo, guardião das riquezas, virará o meu adjetivo predileto: qualidade daquilo que guarda as riquezas. O meu coração eduardo tem lugar para o que sente uma pessoa eduarda (aliás, que é a mesma pessoa que a minha: simbiose total). O meu amor eduardo comporta o meu amor Eduardo. Vamos eduardar os corações, torná-los possuidores e ricos. Não tenho palpites que possam ser seguidos, eu por ora tive sorte. Não sei se o caminho é a casa noturna. Esqueci de tudo, o único endereço que eu tenho é o número do celular do meu amor, que me leva até a eternidade. A eternidade eduarda.



Amor Irreversível IV (Outono em mim)

(I)

O amor que me espera na porta das manhãs tem me dado fôlego. Há uma semana, jantar em casa, e as flores na imbuia 'inda respiram, se pá com o mesmo vigor com que faço o mesmo agora.
As fotocópias agora são só amigas, com quem pratico queda de braço -sempre me vencem, mas eu gosto-, com excessão de algumas com quem 'inda tento estabelecer conversa. Às vezes eu não entendo palavra do que dizem. Pobres antiquados versus pobre mim, que não sou um clássico.
Mas o amor que me espera na porta das manhãs é supra-pulmonar, meus mecanismos biológicos não são mais da ordem normativa das fisiologias; a fisiologia do amor está me convencendo a revolucionar o fator consuetudinário daquilo que agencio.
Não tenho escolha. Acho que o doutor Marinho da Silva, que roubou o meu coração sob pretexto de melhor estudá-lo (furá-lo, espetá-lo, maltratá-lo, testá-lo, aprová-lo, tomá-lo para si e então me chutar feito sarnento cão, sem coração, sem Eduardo, sem nada) faz um bom trabalho. Senão como médico, como feiticeiro, porque eu estou enfeitiçado (ele deve ser algo parecido com um quimbanda, ou um sacerdote do vodu, com seu cajado de palavras sensíveis e seu bisturi -que mais parece um sorriso- de operações espirituais). Portando ainda seu sorriso maligno -que corta feito um bisturi- temo que me hipnotize. Ou então é tarde demais, e não domino maneira de resgate. Mas nele confio, e no seu senso de comme il faut. Ipso facto ipso jure me submeto: cruzo as pernas de lábios indecisos, cruzadas de amor, indecisos de ansiedade, I never loved a man the way I love him, a Aretha Franklin desabafa.
Mas meus pulmões não me enganam, meu sorriso está aí para tudo quanto sou eu, e de alguma forma Eduardo também está. Quanto mais passam as horas mais me sinto seu, e mais o sinto meu. Tudo tem constituído sentido singular. O Malinowski compartilha disto. De jeito símile as próprias cores, as minhas refeições e a rua. E as pessoas, que são vício tão feliz quanto o que tenho pelas minha unhas.
É esquisito, mas sinto algo de pleno. Desprezo o inverno, a poeira me enfastia. Senão de verão, de outono. Em pleno outono.
Em pleno. Outono.


(II)

As flores da semana passada se esforçam para me entender. Conheço o potencial que têm. Mas vão morrer bem antes de mim. Depois que terminar o player, o pai-dos-burros virtual, e fechar o bloco-de-notas da pós-modernidade, terei uma conversa tête-à-tête com elas.
Expio os crimes de mim -cada vez mais de porre- até lá, com o riso safado do hipócrita: ai que falta de vergonha eu tenho, de ser tão feliz.


(III)

Sinto algo em nós que é maior do que todo o resto, algo que compartilho, que compartilha, que compartilhamos...
Sorrisos se desfazem na poeira das manhãs: é meu amor que vem me buscar mais uma vez para o dia que se anuncia, ninado, ninando, me ninando, meninando...
E eu nunca tive tanto poder.

5:15
20 6 2010

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Desabafo

Descobri em alguém mais um vez, e ao contrário das expectativas -tão murchas após um período de inferno astral secular-, alguma coisa que eu pudesse julgar mais próxima do que considero "ânimo". Depois de muito, muito tempo espe(rma)culando a respeito do que seria uma ideia de vida a dois (e as várias possibilidades e possibilidades de legitimação de tais etc) eu tive uma comprovação de que na verdade eu quero morrer ao lado de um anti-príncipe. O mais assustador é notar como esta figura familiar retornou à cena não apenas de cara, nome e roupa trocados, mas surpreendentemente de forma muito mais sedutora do que todos os outros episódios, o que eu por um instante -confesso- julgara impossível -em virtude, é claro, de muitas horas solitárias, sendo essa última estima "impossível" o estágio final de uma linha temporal que começara no "fácil", passara pelo "complicado" e precedera o "dificílimo".
A mescla de características de importantes camaradas que o precederam foi algo que me chamou a atenção. Não sei se tem a ver com alguma nostalgia latente -sou tentado a acreditar que tem, mesmo eu não querendo-, ou se é simplesmente o caráter antiintelectualista do meu novo amigo que me seduzia, a ponto de confundir a minha libido sem eu nem mesmo tê-lo possuído ainda -característica pessoal manifesta apenas em momentos específicos posteriores a encantamentos.
A corrente de metal que eu usava como colar pode ou não ter relação com isso. Mas o sujeito que eu conheci simplesmente representava uma grande medida percentual daquilo que eu aspirava (com alguma confiança não absoluta) como sendo a possibilidade de efetiva interação supra-superficial -e realização da aparência e dos papéis por mim imaginados no que toca o social, o que é podre, assumo.
Ser legal -e aqui eu me refiro a "legal" no sentido individual e próprio da concepção- não é coisa muito fácil. Ser parceiro e ser legal é praticamente meta de uma epopeia cotidiana, mesmo se tratando de uma cidade megalomaníaca como São Paulo (onde não se pode sequer ver mais as estrelas, porque elas se enfurnaram em quitinetes no COPAN).
Ainda assim não posso ser merecedor dos gritos de vítor, não porque eu esteja interessado em provar que não existe realização estrita e sim relativa, mas porque, se eu estiver falando de uma dimensão prática, porque Ele não me procurou mais, fazendo com que eu entrasse mais uma vez em um estado paranóico e talvez até de enlutamento. A analogia com as cinco fases do reconhecimento da própria morte é tentadora, mesmo que eu careça de base empírica para provar cientificamente uma relação com o caso da minha nova e velha perda. Vale a metáfora então: Choque -> I.Negação -> II.Cólera -> III.Barganha -> IV.Depressão -> V.Aceitação. José Luiz de Souza Martins, de quem eu tirei esta construção, assinala dizendo que o moribundo ainda pode morrer estagnado em uma das fases.

Lendo um livro muito pesado (para mim) chamado O que é Corpo(latria), de Wanderley Codo e Wilson Alvez Senne, deparei-me com a seguinte frase:
O prazer maior está exatamente na perda, no descobrimento do outro em mim, único caminho da construção da individualidade.
No contexto, os autores se referiam ao orgasmo e à sexualidade humana (o argumento era de que o exercício da sexualidade -pra ser mais específico, do orgasmo- é, paradoxalmente à concepção corpólatra do prazer individualizado, impossível sem o outro e que, como o trecho supracitado propõe, o prazer do orgasmo está na alienação do indivíduo de um êxtase que é simbiótico). Podemos considerar este axioma além da esfera sexual, ampliando o campo conceitual proposto para um que seja pertinente a qualquer tipo de interação social (em um sentido estrito, mais ou menos weberiano).
Posso então exprimir meu descontentamento neste desabafo, e mais especificamente, em uma pergunta (passível de entedimento dados os argumentos elencados até agora, porém de resposta aparentemente incognoscível).
Como, após mais uma desilusão como a problematizada, e lendo um texto igual a esse, posso então erguer o nariz e com uma convicção que não seja falsa dizer que posso acreditar ou que acredito no amor, mesmo que no sentido prático?

2:16
4 6 2010


Bipolaridade Mentirosa

Um sentimento. Não sei se frio, ou uma angústia intensa. Intensa de saudade. Saudade de alguém.
Parei de sofisticar as dores: as coisas são fáceis efetivamente, elas de fato dão certo. Pode ser um otimismo cego. Se for, quando eu acordar desse sonho maravilhoso (caso isso aconteça, o que é possível, mas atualmente inverossímil) não terei entraves para assumi-lo. Pago então o preço do ridículo, caso se trate disto a situação; o risco que eu assumo é maior do que o mundo, vai me sufocar de vontade, temo estar possuído: as coisas são fáceis efetivamente, elas de fato dão certo.
Anti-príncipe? De onde eu tirei essa bobagem de mensurar nessa dimensão o amor, sendo que ele jamais será racional, e portanto mensurável? Não posso confundir simples "quedas" estritamente com aquilo que eu posso esperar de um deus estático.
Não condeno minhas crises. Elas sempre estiveram aí para serem superadas. Entendo agora que uma crise demorada merece também uma revanche demorada.
Eu não vou mais me culpar a respeito de nada, ou culpar o mundo, as coisas, a sociedade, São Paulo -que não tem estrelas-, ou a Sociologia; estou num estado de transe, um êxtase egoísta que não quer saber de mais nada senão retroalimentar-se, embriagado por um sorriso, encantado pelo acaso.
As coisas são fáceis efetivamente, elas de fato dão certo. Ficam as dicas.
Minha paranoia me rendeu linhas e mais linhas, mas eu não as deslegitimo: olho para elas agora com curiosa atenção e penso em como as coisas mais terríveis no mundo já conseguiram inspirar os homens tão brilhantemente. Posso julgá-las (as linhas) ingênuas, mas sei que a princípio não são, nunca serão, são parte de mim.
O barulho da semana passada não me diz respeito no exato momento. Um dia, quando eu voltar a mim mesmo e puder fazer um balanço, eu vos informarei das coisas direito (se bem que vós já deveis estar entediados com a minha bipolaridade mentirosa). Por enquanto eu quero continuar de mãos dadas com a vida, absorto em um sorvete sem fim e amando em completo silêncio.
E este silêncio é tudo.

0:13
7 6 2010


Texto do Domingo Gelado

Quando acordei, às três horas da tarde, ainda estava um pouco tonto, ressaca da pinga. Deve ser por isso que aceitei comer o macarrão requentado -surpreendemente palatável- da noite passada, com molho de pimentão, abacaxi e café, pela minha mãe.
A noite e a seguida madrugada passadas foram muito especiais. Uma noite divertida. E romântica.
-Você quer namorar comigo?
-Sim.
Antes de sair de casa pus as músicas da Ella Fitzgerald no celular. Foi isto que ouvi no resto da tarde e na noite tão gelada. Mas a mania das bermudas não me abandona.
-Eu estou disposto a viver este amor irreversível.
Nunca pensei que fosse dizer aquilo. O capítulo d'O Suicídio, do Durkheim, era fantástico. Foi o que eu li indo de metrô até o Centro Cultural São Paulo. A Catherine Deneuve, novíssima, em uma atuação fantástica no filme do Polanski chamado Repulsion (título traduzido para Repulsão ao Sexo no português brasileiro) era tão surpreendente quanto as metáforas do filme, o enredo, o movimento do filme e as câmeras competentíssimas. A trilha sonora foi feita por um tal Chico Hamilton. Era boa.
Saindo da sessão, um pouco mais de Durkheim. Os arranjos do Nelson Riddle para as músicas da dupla Gershwin -competentissimamente interpretadas por Fitzgerald- ainda me acompanhavam. Não me dei por satisfeito, a noite geladíssima merecia um café.
-Eu estou apaixonado por você.
Quero viver um amor irreversível declarado, com data de nascimento, registro geral, e formalizações de cacau. Quando que eu ia pensar uma coisa dessas há três anos atrás?
Na padaria Lisboa, recém-reformada, aqui neste meu bairro chamado Tatuapé, pretensamente tradicional (o bairro e a padaria), pedi um café grande e um croissant, só para poder cruzar as pernas no balcão e terminar o fantástico capítulo d'O Suicídio, O Suicídio Egoísta. Não é com demonstrações dialéticas que se desenraíza a fé, simplesmente brilhante. Não entendo como a Sociologia é privilégio apenas de meia dúzia de graduandos de carreiras de humanas, e foi rejeitada da grade da educação básica durante tanto tempo. Esconder Durkheim das crianças é uma maldade tão grande, tão egoísta, não sei o que pode ser pior.
Quando terminei, descruzei as pernas, e ainda sob efeito de Ella fui à lan house tratar da minha faceta virtual -na verdade, socializar um pouco, no fim de mais um paulistano, gelado e solitário domingo sem estrelas, porém suficiente.
Voltando para casa, avistei uma embalagem violada de Kissy graviola. Mais pessoas de bom gosto na Cidade Mãe do Céu.
Estou enjoado de tanto verde e amarelo. A Cathy Deneuve realmente estava boa no filme. Achei as pessoas meio irritadas no cinema e na padaria. Será o frio? Será a copa?
-Nenhum homem jamais disse algo tão lindo para mim.
Enjoo de patriotismo-mercadoria, ...mas ele não se mata por se instruir, o man I love, Billie Holliday foi violentada, a Maria Callas é bonita, é tudo tão sórdido.
-Barreira, olha a minha nova aquisição. Comprei na Benedito Calixto, uma pechincha!
-Olha como você trata os seus homens, Eros.
(Mais) um domingo (paulistano, sem estrelas, e) gelado.
A gente namora, namorado.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Manual do Amor em Segredo

(para homens Homossexuais normais)

(Gostaria de esclarecer que este manual é uma brincadeira -talvez de mau gosto, visto que as linhas de raciocínio aqui esboçadas são estritamente opostas àquilo que de fato acredito. O mais triste é pensar que praticamente tudo o que nele está escrito foi baseado em experiências reais.)

I
Esqueça tudo aquilo que os teus companheiros fizeram para que você pudesse conquistar os direitos que você tem hoje. Pode fazer mal pensar a respeito. Mas interprete da seguinte maneira: se todos eles se esforçaram e, minha nossa!, alguns até morreram, que pena! Foi tudo em vão, porque "a sociedade é preconceituosa" (uma novidade, uma lei, um princípio estático). Ela é preconceituosa e extremamente intolerante, o que é uma pena!, já que você tem que alcançar os seus objetivos, suas metas, e a sua "vida pessoal" (aqui "pessoal" tem praticamente o mesmo sentido do termo "individual") não pode conferir obstáculo ao seu alcance pessoal de um status social desejável e decente.
Este é o pressuposto central deste manual.


II
Jamais estabeleça vínculos fortes com seu parceiro.
(a) O sentimento de reconhecimento em relação ao parceiro é um ponto delicado. Não se pode estabelecer um vínculo tal com um parceiro de forma que se queira honrar uma possível união (isso pode significar: utilizar aliança, morar junto declaradamente, assumir o parceiro publicamente -o que de alguma forma significaria assumir a própria sexualidade publicamente também).
É necessário, para conservar-se a condição de autonomia em relação ao parceiro, uma certa medida de autocontrole. Em termos práticos, significa tomar uma série de medidas para evitar relacionamentos fixos ou perigosamente passíveis de se tornarem simbióticos: estabelecer um relacionamento aberto (mesmo que não se sinta necessário) pode ser uma boa saída; uma outra possível saída é simplesmente negar sistematicamente relacionamentos que não sejam imediatamente afetivos ou puramente sexuais. Adotar uma postura de autonomia em relação a parceiros é uma maneira eficaz de evitar vínculos afetivos fortes o suficiente para que se perca a cabeça.
(b) A regra da discrição é o princípio sobre o qual se estrutura um conjunto de condutas e procedimentos normativos, inspirada pelo senso comum e criada como método de sobrevivência e blindagem de possíveis hostilidades sociais. Essa regra torna desnecessária a luta política por substituir a conduta homossexual pública por atitudes de fachada, criando assim um momento de ação permitido.
Para as interações que ocorrem neste momento, existe um papel artificial correspondente. Como este papel artificial contém aspectos sentimentais genuínos, podemos dizer que um papel que representasse uma faceta genuína deixaria de existir, do que depreendemos que: passam a existir dois papéis artificiais, um para a vida pública e outro para momentos de ação permitidos, na medida que os papéis que tais situações demandam são dissimulados.
Portanto, o amor secreto diz respeito não apenas à criação de uma máscara, mas no caráter instrínseco de autocontrole e rigidez na distinção.
(c) Como você não quer relacionamentos de vínculos estreitos, você nunca saberá com quem realmente está se relacionando. Deve-se tomar cuidado com parceiros dependentes sentimentais, assumidos publicamente, ou que podem de alguma maneira pôr em risco o seu status perante a sociedade, de heterossexual.
Dos problemas elencados em (a), proponho então a aceitação da regra da discrição (parte b), o que significaria adquirir um autocontrole necessário para que se permita expressar os verdadeiros sentimentos em limites estritos (como será tratado em VI), imunes a vínculos muito intensos e malignos. Em (c) e, como será imediatamente tratado, em III, vimos que deve-se previnir de relacionamentos perigosos e desfavoráveis.
Logo, jamais ame plenamente.


III
Felizmente as DSTs não são exclusivas e dependentes de orientação sexual, mas você bem sabe que o homossexualismo (e aqui o sufixo -ismo é usado propositadamente) é a característica determinante do grupo de risco "homossexuais". Evite mostrar-se doente e, por extensão, previna-se!


IV
A sua orientação sexual (como já citado no item I) é sua, e ninguém além de você precisa saber disso. Logo, você não precisa agir de forma a estimular uma posição alheia em relação a sua sexualidade, afinal ela é só sua.
Na verdade a regra da discrição (IIb) é importante neste ponto, já que reserva determinadas condutas a determinados momentos. Para manter a decência da faceta pública de um homem, este deve adotar um modelo de conduta não-agressivo para os outros, deve afastar daqueles que o cercam sua sexualidade. Forjar uma naturalidade, que na verdade significa forjar uma sexualidade por meio de papéis e esteriótipos heteronormativos*.
O amor secreto então pressupõe a existência de uma conduta uniforme, que nega sistematicamente as verdadeiras vontades do indivíduo.
*Por heteronormatividade entenda-se o conjunto de práticas de conduta e procedimentos impostos segundo um parâmetro normativo heterossexual de distinção sexual. O conceito de heteronormatividade em alguma medida relaciona-se também ao sexismo, já que pressupõe papéis distintos para os gêneros; no que tange ao nosso ponto, espera-se de um homem afeminado, por exemplo, que adote uma posição -inferior- feminina (seja passivo e sensível, por exemplo).


V
Odeie os afeminados.
Como visto em IV, você deve adotar um modelo de conduta para se afastar de uma possível associação alheia da sua imagem com um status prejudicial de homossexual.
(a) Faz parte desse modelo não apenas a negação da própria sexualidade, mas também a necessidade de desqualificar* a própria modalidade de sexualidade. É de bom tom.
(b) Você não precisa adotar uma conduta afeminada, afinal você já adquiriu uma capacidade de negação das condutas externas ao padrão (ou acha que adquiriu) durante o processo de aquisição de um papel uniforme.
Logo, você não tem por que respeitar aqueles que não conseguiram rejeitar seus sentimentos em prol de um status social razoável; eles estão abaixo de você na pirâmide social.
*Aqui falo de humilhação pública.


VI
Apresente conduta homossexual apenas em ambientes especializados. Como mais ou menos foi tratado em IIb, a existência de um momento de ação permitido (um desdobramento da distinção intrínseca na regra da distinção), isto é, um instante, um aqui e agora, nos faz pensar em um modelo celular.
Aqui, células são os lugares onde se permite viver a sexualidade com segurança*. Elas podem assumir vários formatos (desde bairros nobres e globais, passando por ruas e encontros, shoppings e galerias, baladas e bares, cinemas e casas noturnas, até parques e banheiros públicos), podem constituir um tecido (que quase nunca é coeso, compõe sobre a cidade um punhado de retalhos espalhados -ou tristemente centralizados) e, se adotada em larga escala por amantes secretos, tende a se retroalimentar de forma a legitimar temporalmente a lógica da apartação entre orientações sexuais.
Você não deve ter orgulho apenas de ser discreto, e sim também de ter hora e lugar para amar e fomentar a perpetuação dos fatores que te obrigam a praticar o amor secreto indiretamente.
*Tal segurança é relativa: existem lugares mais ou menos seguros; indivíduos diferentes classificam lugares diferentes quanto à segurança conforme a percepção individual e a situação psicológica.


VII
Seja uma pessoa normal.
Se possível tenha uma esposa, uma religião (por mais desconforto que isso possa causar, você certamente encontrará, segundo uma leitura pessoal da sua religião, a legitimação da prática do amor secreto e a absolvição da hipocrisia, da traição, do preconceito etc, enfim, dos males por você praticados), tenha filhos (e ensine-os a ser heterossexuais) e viva uma vida em que você possa ser estimulado a odiar a própria sexualidade maligna de forma a legitimar seu amor secreto.
Ria dos afeminados da televisão -e fora dela!-, goste de coisas masculinas (como futebol e carros), enfim, aja como a pessoa que você quer ser publicamente.


VIII
Este manual buscou em linhas gerais traçar métodos de conduta baseados na regra da distinção (IIb) e situados em um elemento impessoal e desenredado de implicações históricas precedentes (isto é, alienado dos processos de busca por emancipação social dos homossexuais; I). Espero ter ajudado dando este pequeno suporte para que você se adapte a este mundo (que, como é muito injusto, não se adaptará a você jamais).
No caso de desmascaramento, regras alternativas podem -e devem- ser utilizadas, mas elas estariam fora do alcance deste manual. Penso, entretanto, que seguindo estritamente a filosofia desta cartilha, adotando uma conduta normal (IV, V, VI e VII) e previnindo-se dos riscos (IIc e III), dificilmente a lógica do amor secreto será ferida.