segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Leigo não!

"A maior parte das obras de arte trai a poesia. Como poderia ser de outra forma já que a poesia e o poder são inconciliáveis?"
Raoul Vaneigem

Leigo não!

Pensei em começar me justificando. Mas me chafurdando voluntariamente na protocolagem de fazê-lo, contradiria-me. WhatEva, estive falando 'ses dia com um_ arqui-teta, num muquifo arrumado na 13 de maio (ou seja, dois dias depois do meu aniversário), também à luz negra das minhas incursões recentes a duas "grandes" exposições de arte "contemporânea" - como, no afã de historicizar essa produção artística residisse a busca possível por um conforto (não menos que precário) no mundo. Abrindo o fulcro - sutiã do argumento - o estado da arte me sugere encaminhamento para a polissemia abissal entre produtor e espectador de arte.

A persona dO artista como virtuose, [cronista ou vanguardeiro], cede hoje ao deslocamento da autoridade artística - por vezes encenada, que a crítica ainda opera construindo consensos, um tanto quanto esquizofrenicamente. A profissão de artista se abre conceitualmente, a crítica e o mercado reiteram a produção das diretrizes que definam _s artistas em termos de tendências estéticas e redes mercadológicas de circulação.

Pensando a história da antropologia, James Clifford retoma argumentos de Mikhail Bakhtin para pensar a produção da autoridade etnográfica no seio da disciplina antropológica. Se, metade de uma palavra, na linguagem, pertence a outra pessoa, isto equivale a reconhecer o quinhão de subjetividade implícito no diálogo entre produtor artístico e seu intérprete. Cito mais, inclusive outro trecho co-autoral
A recente teoria literária sugere que a eficácia de um texto em fazer sentido de uma forma coerente depende menos das intenções pretendidas pelo autor do que da atividade criativa de um leitor. Para citar Roland Barthes, se um texto é "a trama de citações retiradas de inumeráveis centros de cultura", então "a unidade de um texto repousa não em sua origem, mas em seu destino" ... A escrita da etnografia, uma atividade não controlada e multissubjetiva, ganha coerência por meio de atos específicos de leitura.
Parece que nos reencontramos entre um polo onde a relação de fruição e contemplação da obra chamada "de arte" se define por um processo plurívoco marcado pelas vicissitudes individuais do espectador e pela irreversibilidade da contemplação implícita no suporte expográfico (paradigma contemporâneo); e outro polo, onde as condições para a apreciação supõe uma sorte de embasamento previamente adquirido, o reconhecimento da figura legítima do artista como portador de um ethos essencialmente diferenciado do espectador, e o domínio de uma série de códigos que tornam possível a relação artista-obra-espectador.

Um exemplo surgido na conversa com _ arqui-teta: passar cocô na parede pode ser uma forma de estender o vínculo entre artista e o lócus de inscrição criativa; uma crítica à expografia; investigação de pigmentação; investigação metodológica aplicada à expansão dos sentidos na contemplação (meio John Waters); pós-pornô; détournement do establishedcollage mista, arte experimental, releitura fecal de Jackson Pollock, crítica política à territorialização fascista do corpo; nonsense etc. etc. etc.

Da mesma forma, a unha que eu descarto, no ímpeto ansioso da minha roeção cotidiana, ela própria, isolada, pode se transformar em uma metáfora da ação temporal (à la Damien Hirst), um happening pós-humano (à la Ana Mendieta), ou mesmo um deslocamento radical dos processos que conferem estatuto ontológico à obra de arte (à la Marcel Duchamp). Na verdade, qualquer coisa, na mão de um artista e de uma comunidade que o reconheça como tal, pode ser qualquer coisa.

Longe de restaurar um equilíbrio entre os polos da polissemia total e da crítica dinossaura, prefiro pensar em alternativas práticas e conceituais ao caolhismo que me tem assustado.

A minha experiência recente com o teatro tem me feito pensar sobre dois aspectos que me remetem a discussões empreendidas pelo situacionista belga Raoul Vaneigem em [atenção para o título] "A arte de viver para as novas gerações" - embora tod_s saibamos que o guru da arte de viver é aquele sadomasoquista francês careca soropositivo -, panfleto que circulou pelos idos de 1968 pelos desocupados estudantes da USP parisiense.

Em primeiro lugar, destaco um tópico referente à produção dos estatutos de "obra de arte" e "artista" na sociedade do consumo.
É sabido que a sociedade de consumo reduz a arte a uma variedade de produtos de consumo. E quanto mais se vulgariza essa redução, mais a decomposição se acelera, mais crescem as possibilidades de uma superação. A comunicação tão imperativamente desejada pelo artista é impedida e proibida mesma nas relações mais simples da vida cotidiana. De tal modo que a busca de novos modos de comunicação, longe de estar reservada aos pintores ou aos poetas, é parte hoje de um esforço coletivo. Assim acaba a velha especialização da arte. Já não existem artistas uma vez que todos o são. A futura obra de arte é a construção de uma vida apaixonante.A criação importa menos que o processo que gera a obra, que o ato de criar. O que faz de alguém um artista é o estado de criatividade, e não o museu. Infelizmente, o artista raramente se reconhece como criador. Na maior parte do tempo, faz pose diante de um público, se exibe. A atitude contemplativa diante de uma obra de arte foi a primeira pedra lançada no criador. Inicialmente ele provocou essa atitude, mas agora tenta desfazê-la uma vez que, reduzido à necessidade de consumir, depende dos mais grosseiros imperativos econômicos. É por isso que não existe mais obra de arte no sentido clássico do termo. Já não pode haver obra de arte, e ainda bem. A poesia reside em outro lugar, nos fatos, nos acontecimentos que criamos. A poesia dos fatos, que sempre foi tratada marginalmente, reintegra hoje o centro dos interesses de todos, o centro da vida cotidiana, que na verdade ela nunca abandonou.
A sociedade de consumo não processou exatamente a superação da arte como vaticinou Raoul. Tampouco a poesia superou a museologização e galerização da arte contemporânea. Resta fresca, no entanto, a utopia.

Em segundo lugar, me parece que a importância atribuída à criatividade (conteúdo, diríamos?) em relação à técnica (forma, talvez?) pelo autor me remete a uma dicotomia que me soa parcialmente superada. [E fonte de equívocos. Por exemplo, Raoul grilado apontava a pop-art e sua técnica reprodutibilista como consagração do consumo através da elevação do mercado a obra de arte, o que é uma ingenuidade.] No entanto, essa oposição entre força poética e técnica-alienante é estratégica na crítica de Raoul: a fetichização da técnica na investigação de arte equivale ao esvaziamento político semântico das produções artísticas, na sociedade de consumo. A poesia é a promessa de uma forma de assumir processos já em andamento, superando a oposição técnica/criatividade.

Pude enfim no meu contato recente com o teatro reencontrar uma forma de engajamento foda, tanto no que se refere ao questionamento dos supostos limites entre forma e conteúdo, arte e não-arte e, sobretudo, através da incorporação da crítica social. [Sempre, ironicamente, o teatro de arte, aquele cult, aquele pretensamente lado B, não-comercial - recusa a hegemonia, mas se esquece que o nicho mercadológico é seu sustento existencial. Todo lado B tem um lado $.] No entanto, praticar teatro (na atividade criativa de espectador e ator em devir) tem convergido para perceber e pensar o mundo de maneira afim com minha (de)formação de antropólogo: relação é simulacro, interação é teatro, e a separação entre uma esfera teatral e não-teatral é atravessada por um conjunto de estruturas, redes, coletivos, convenções e actantes, que define um domínio epistemológico da ficção e um da realidade. Tais domínios, definidos em oposição, são precariamente sustentados, e socialmente construídos.

Tais ideias vão de encontro com minha adesão a uma definição particular de arte - finalmente! -, que tem um fundo sócio-antropológico relacional e um sentido particular. Em primeiro lugar, arte é algo situado em um domínio específico a partir de um processo de purificação entre artístico e não-artístico. Este processo tem sido mediado por uma comunidade que, através de uma cadeia de relações complexas, define as diretrizes do que pode ou não ser considerado arte. Eu entendo que a arte tenha se processado de tal maneira na modernidade e, assim, naturalmente rechaço essa ordem das coisas.

Em segundo lugar, há um sentido que eu elejo arbitrariamente como tópico central em um debate concernente à artice, artismo, artidade. Isto é sobre o que se convencionou chamar política, e se refere ao engajamento do produtor cultural, do artefato produzido e de seu diálogo potente com o produtor-leitor. Este engajamento visa poetificar a vida cotidiana (meio à la Raoul, mas pensando sobretudo nos limites epistemológicos entre ficção e realidade - não estou falando do chatíssimo fetiche da metalinguagem) e, sobretudo, à transformação social - cujo limite radical é a arte-sabotagem de Hakim Bey. Sinto que esse é um norte que nunca desamparou a produção de "arte" - termo cada vez mais vazio -, e resgato em tópico essa necessidade como forma de dotar de sentido a minha própria relação com a produção artística.

Portanto, é disto que se trata este insulto organizado: o engajamento crítico e radical é, pra mim, o remédio ao mesmismo da polissemia total e à crítica burguesa da arte burguesa. Aliás, eu poderia inclusive dizer que esse é o tema do cocô na parede.


Duas esporradas:

James Clifford. A experiência etnográfica - Antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: 1998.
Raoul Vaneigem. A arte de viver para as novas gerações. São Paulo: Conrad, 2002.

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