terça-feira, 1 de junho de 2010

Manual do Amor em Segredo

(para homens Homossexuais normais)

(Gostaria de esclarecer que este manual é uma brincadeira -talvez de mau gosto, visto que as linhas de raciocínio aqui esboçadas são estritamente opostas àquilo que de fato acredito. O mais triste é pensar que praticamente tudo o que nele está escrito foi baseado em experiências reais.)

I
Esqueça tudo aquilo que os teus companheiros fizeram para que você pudesse conquistar os direitos que você tem hoje. Pode fazer mal pensar a respeito. Mas interprete da seguinte maneira: se todos eles se esforçaram e, minha nossa!, alguns até morreram, que pena! Foi tudo em vão, porque "a sociedade é preconceituosa" (uma novidade, uma lei, um princípio estático). Ela é preconceituosa e extremamente intolerante, o que é uma pena!, já que você tem que alcançar os seus objetivos, suas metas, e a sua "vida pessoal" (aqui "pessoal" tem praticamente o mesmo sentido do termo "individual") não pode conferir obstáculo ao seu alcance pessoal de um status social desejável e decente.
Este é o pressuposto central deste manual.


II
Jamais estabeleça vínculos fortes com seu parceiro.
(a) O sentimento de reconhecimento em relação ao parceiro é um ponto delicado. Não se pode estabelecer um vínculo tal com um parceiro de forma que se queira honrar uma possível união (isso pode significar: utilizar aliança, morar junto declaradamente, assumir o parceiro publicamente -o que de alguma forma significaria assumir a própria sexualidade publicamente também).
É necessário, para conservar-se a condição de autonomia em relação ao parceiro, uma certa medida de autocontrole. Em termos práticos, significa tomar uma série de medidas para evitar relacionamentos fixos ou perigosamente passíveis de se tornarem simbióticos: estabelecer um relacionamento aberto (mesmo que não se sinta necessário) pode ser uma boa saída; uma outra possível saída é simplesmente negar sistematicamente relacionamentos que não sejam imediatamente afetivos ou puramente sexuais. Adotar uma postura de autonomia em relação a parceiros é uma maneira eficaz de evitar vínculos afetivos fortes o suficiente para que se perca a cabeça.
(b) A regra da discrição é o princípio sobre o qual se estrutura um conjunto de condutas e procedimentos normativos, inspirada pelo senso comum e criada como método de sobrevivência e blindagem de possíveis hostilidades sociais. Essa regra torna desnecessária a luta política por substituir a conduta homossexual pública por atitudes de fachada, criando assim um momento de ação permitido.
Para as interações que ocorrem neste momento, existe um papel artificial correspondente. Como este papel artificial contém aspectos sentimentais genuínos, podemos dizer que um papel que representasse uma faceta genuína deixaria de existir, do que depreendemos que: passam a existir dois papéis artificiais, um para a vida pública e outro para momentos de ação permitidos, na medida que os papéis que tais situações demandam são dissimulados.
Portanto, o amor secreto diz respeito não apenas à criação de uma máscara, mas no caráter instrínseco de autocontrole e rigidez na distinção.
(c) Como você não quer relacionamentos de vínculos estreitos, você nunca saberá com quem realmente está se relacionando. Deve-se tomar cuidado com parceiros dependentes sentimentais, assumidos publicamente, ou que podem de alguma maneira pôr em risco o seu status perante a sociedade, de heterossexual.
Dos problemas elencados em (a), proponho então a aceitação da regra da discrição (parte b), o que significaria adquirir um autocontrole necessário para que se permita expressar os verdadeiros sentimentos em limites estritos (como será tratado em VI), imunes a vínculos muito intensos e malignos. Em (c) e, como será imediatamente tratado, em III, vimos que deve-se previnir de relacionamentos perigosos e desfavoráveis.
Logo, jamais ame plenamente.


III
Felizmente as DSTs não são exclusivas e dependentes de orientação sexual, mas você bem sabe que o homossexualismo (e aqui o sufixo -ismo é usado propositadamente) é a característica determinante do grupo de risco "homossexuais". Evite mostrar-se doente e, por extensão, previna-se!


IV
A sua orientação sexual (como já citado no item I) é sua, e ninguém além de você precisa saber disso. Logo, você não precisa agir de forma a estimular uma posição alheia em relação a sua sexualidade, afinal ela é só sua.
Na verdade a regra da discrição (IIb) é importante neste ponto, já que reserva determinadas condutas a determinados momentos. Para manter a decência da faceta pública de um homem, este deve adotar um modelo de conduta não-agressivo para os outros, deve afastar daqueles que o cercam sua sexualidade. Forjar uma naturalidade, que na verdade significa forjar uma sexualidade por meio de papéis e esteriótipos heteronormativos*.
O amor secreto então pressupõe a existência de uma conduta uniforme, que nega sistematicamente as verdadeiras vontades do indivíduo.
*Por heteronormatividade entenda-se o conjunto de práticas de conduta e procedimentos impostos segundo um parâmetro normativo heterossexual de distinção sexual. O conceito de heteronormatividade em alguma medida relaciona-se também ao sexismo, já que pressupõe papéis distintos para os gêneros; no que tange ao nosso ponto, espera-se de um homem afeminado, por exemplo, que adote uma posição -inferior- feminina (seja passivo e sensível, por exemplo).


V
Odeie os afeminados.
Como visto em IV, você deve adotar um modelo de conduta para se afastar de uma possível associação alheia da sua imagem com um status prejudicial de homossexual.
(a) Faz parte desse modelo não apenas a negação da própria sexualidade, mas também a necessidade de desqualificar* a própria modalidade de sexualidade. É de bom tom.
(b) Você não precisa adotar uma conduta afeminada, afinal você já adquiriu uma capacidade de negação das condutas externas ao padrão (ou acha que adquiriu) durante o processo de aquisição de um papel uniforme.
Logo, você não tem por que respeitar aqueles que não conseguiram rejeitar seus sentimentos em prol de um status social razoável; eles estão abaixo de você na pirâmide social.
*Aqui falo de humilhação pública.


VI
Apresente conduta homossexual apenas em ambientes especializados. Como mais ou menos foi tratado em IIb, a existência de um momento de ação permitido (um desdobramento da distinção intrínseca na regra da distinção), isto é, um instante, um aqui e agora, nos faz pensar em um modelo celular.
Aqui, células são os lugares onde se permite viver a sexualidade com segurança*. Elas podem assumir vários formatos (desde bairros nobres e globais, passando por ruas e encontros, shoppings e galerias, baladas e bares, cinemas e casas noturnas, até parques e banheiros públicos), podem constituir um tecido (que quase nunca é coeso, compõe sobre a cidade um punhado de retalhos espalhados -ou tristemente centralizados) e, se adotada em larga escala por amantes secretos, tende a se retroalimentar de forma a legitimar temporalmente a lógica da apartação entre orientações sexuais.
Você não deve ter orgulho apenas de ser discreto, e sim também de ter hora e lugar para amar e fomentar a perpetuação dos fatores que te obrigam a praticar o amor secreto indiretamente.
*Tal segurança é relativa: existem lugares mais ou menos seguros; indivíduos diferentes classificam lugares diferentes quanto à segurança conforme a percepção individual e a situação psicológica.


VII
Seja uma pessoa normal.
Se possível tenha uma esposa, uma religião (por mais desconforto que isso possa causar, você certamente encontrará, segundo uma leitura pessoal da sua religião, a legitimação da prática do amor secreto e a absolvição da hipocrisia, da traição, do preconceito etc, enfim, dos males por você praticados), tenha filhos (e ensine-os a ser heterossexuais) e viva uma vida em que você possa ser estimulado a odiar a própria sexualidade maligna de forma a legitimar seu amor secreto.
Ria dos afeminados da televisão -e fora dela!-, goste de coisas masculinas (como futebol e carros), enfim, aja como a pessoa que você quer ser publicamente.


VIII
Este manual buscou em linhas gerais traçar métodos de conduta baseados na regra da distinção (IIb) e situados em um elemento impessoal e desenredado de implicações históricas precedentes (isto é, alienado dos processos de busca por emancipação social dos homossexuais; I). Espero ter ajudado dando este pequeno suporte para que você se adapte a este mundo (que, como é muito injusto, não se adaptará a você jamais).
No caso de desmascaramento, regras alternativas podem -e devem- ser utilizadas, mas elas estariam fora do alcance deste manual. Penso, entretanto, que seguindo estritamente a filosofia desta cartilha, adotando uma conduta normal (IV, V, VI e VII) e previnindo-se dos riscos (IIc e III), dificilmente a lógica do amor secreto será ferida.

7 comentários:

André Carvalho disse...

Sobre mários e armários, genial!!! descritivo e absolutamente fidedigno. crítica auspiciosa sobre lugares comuns referentes ao assunto

mad disse...

tem bem mais do que eu deveria saber Oo

LM disse...

:O

LM disse...

aposto minha mão que você nao conseguiria viver seguindo este manual!

valentina disse...

fatidicamente, este manual é de fato um choque, pois nele exprime o quão maquiada é essa questão da sexualidade e homossexualidade, onde as pessoas até para demonstrarem sua sexualidade devem seguir padrões.
E esse manual realmente conseguiu alcançar seu objetivo, que é mostrar o papel pérfido da sociedade que influência no comportamento das pessoas !
Homossexual bom é homossexual contido, que se esconde, não-explícito, ser homossexual é ofensa, mas um heterossexual pode ser total explícito sem pudor algum, pQ é " normal" , afinal é um homem e uma mulher e não duas pessoas do mesmo sexo.

valentina disse...

E não posso esquecer, seu texto está ótimo, muito bem escrito e coerente, ideias ótimas seguidas de uma originalidade e vivência social.

beijoo (:

nelson disse...

Este texto não é só para homossexuais.