quarta-feira, 26 de maio de 2010

Ficção#2 (Canção do Ódio)

Não consigo imaginar para quem você se arruma (senão para mim). Não consigo-sigo imaginar para que você se arruma, senão para me esperar. Porque eu tomo muitos-vários banhos e para onde vou? Ou quando vou, se vou, para quem o faço, senão para você, que está ali na esquina parado, no corrimão de um metrô valente, sentado na mesa perto do bilhar, esperando criar coragem para me dar sua cerveja, ou então na balada (que me abalas) dando seu número para uma discagem inexistente-tente. Você está no impulso-pulso de sabonetar competentemente cada dia potente a minha genitália-mente, no meu impulso de apertar (de estar perto) contra minhas axilas (agora frias) o desodorante (meu calmante ou excitante), nas roupas que escolho-colho, você está impregnado nelas, naquelas do cabide, numas deitadas-empoeiradas no chão... É para você que me visto todo dia e cerco qualquer figura, é a sua que procuro em cada abordagem muda, ou em qualquer mudo diálogo...
Se eu não consigo pensar em ninguém mais, como pode você (ou supor eu que) aparentar assim ter enterrado tudo. Seu mal-sucedido, enterrou-me vivo! Maldito, maldito, maldito, maldito, maldito...


Canção do Ódio II

Flamejou, flamejou, flamejou... Dança das cinzas sobre o fogão imundo-mundo. Fagulhas cintilantes, diletantes, cantantes e a fumaça cinza que dançava em direção ao teto. Você ardeu como aquele papelão sem graça, pintado de lilás-sem-paz, recheado de ar do nada, na boca do fogão. Você não arde mais na boca de sujeito nenhum. Fulgurou-se na cozinha solitária, apenas um sorriso de expectação, reflexo das flamas nos meus dentes vermelhos.
De ódio.
Minhas gengivas brancas -de luz- viviam o chamejar daquele resto de passado com intensa sensação, fulgiam -estou certo- mais do que a vela acesa ali na minha frente indicando a tua partida, tua iluminada morte. Teu espírito clamando resplandecia chamejante, e assim o esteve até a última faísca.
Até o fim do ato abrasado, quando o quitado incêndio daquilo tudo que hoje são felizmente e apenas cinzas (e nada me causa mais pânico do que pensar na possível Fênix desse mal queimado), sorri inflamado de calor. Ateei fogo em ti até tostar carbonizado, pela imagem da ex-caixa de chocolate febril que em letras douradas era Jubileu. Mas quem estava em júbilo agora era eu.
Calmo, pus os restos de ti em um saco plástico, desci a rua da minha vida na bicicleta do meu ser, e com a música do meu tempo, te despejei na brisa noturna deste outono paulistano sem estrelas.
Você foi voando, voando...